Ao som dos álbuns CinePoesia (2020), A
Mil Tons (2017), Cartas brasileiras (2006) e Quinteto (1999),
da compositora, arranjadora e flautista Léa Freire (Léa Silvia de
Carvalho Freire).
Elegia à catábase de Simone... - Ao despertar, aquela era a mais perfeita das manhãs e ela recendia
iluminada pela satisfação, aspirando o sublime aroma de uma felicidade
indestrutível, indizivelmente feliz. Transpirava às voltas com seus êxtases sentimentais
e compreendia por si, sem que precisasse de maiores explicações. Era professora
desde nascença, brincava ensinando os deveres às bonecas, dava aulas para aves
e árvores do quintal, ou quem aparecesse às suas tranças na face rosada, fulgurava pelo ondulante canavial da paisagem, sentada à murada da cacimba, com suas
fantasias eloquentes. Ali naquele quintal vestia-se hierática de todas as saudades,
com o frescor adorável de imaculadas rosas nos canteiros de flores. Parecia
viver numa fabulosa névoa onírica, o sorriso atravessava a primavera e nela o
pássaro havia por toda parte. Quando não se fazia deliciosamente acolhedora
pelas venerações outonais, pela casa toda, herdada dos pais, desde o terraço
antigo dos inumeráveis momentos das risadas perduráveis no calor estival, em
que ressoavam os ecos de sua infância, a intimidade invernosa de sua adolescência
na visagem de seus antepassados flutuantes e dali o amor a fizera solitária,
porém feliz. Assim todos os dias desde que se entendeu por gente e, obstinada, perseguia
seus propósitos, como se nadasse um oceano imenso às braçadas por atravessá-lo
triunfante, inteiramente alegre e segura. Inebriava com sua lindeza irrepreensível
e ao seu modo, mesmo quando as nuvens roçavam a colina e a noite cobria todo o
lugar, as pálpebras úmidas sobressaiam ao fechar os olhos contida, com as crepusculares
sensações do dever cumprido. Estendia a mão às ocasiões e espargia condecorações
e entusiasmos. Comoventemente formidável seguia seu caminho serena e imponente,
o senso de justiça e a sinceridade à toda prova, feliz com o corpo que habitava
esgueirando-se pelo tumulto das ruas, os transeuntes no tráfego, a dignidade extrema,
a força do próprio esplendor. Conhecia as pessoas por instinto e delas
aprendera o tanto quanto havia chorado no quarto, a perda dos pais e a perpétua
sensação na ênfase da pulsação ressoante pelas boas recordações. Com ela tudo
era digno de nota e desconhecia o quão perigoso era viver. Tinha de sair e assim
o fez. Aprontou-se, ganhou o mundo. Ao retornar de Porto de Galinhas depois do
meio dia, recolheu-se ao quintal e revivia, deparando-se consigo mesma: um lance
de dados e o inescrutável, quem estorvaria? Nem passava pela cabeça a malquerença
duma câmara de furiosos evangélicos se passando por tirânicos parlamentares,
vingativos legionários dementadores possuídos pelo ódio do deus deles, aos
berros propagadores de um inexorável Jesus armado até os dentes, implicados em
escusas malversações do erário público da edilidade, em conluio com gestores
municipais desse Brasilzão do Fecamepa. O ressentimento deles à flor da
pele e tudo estava perdido. Subitamente ela empalideceu, o mistério roçava e
por um imprevisível segundo o petardo do fuzil desfigurou sua face. Nem deu
tempo ao sobressalto, aterrorizada, o braço pendente, a dor física e o
arrepio, quedou com os vastos sonhos desabando desprevenidos pelo silêncio. Foi
às profundezas como se fosse Marielle no meio da tarde e, como o escândalo
de Ângela, ela caiu Mendietta, a vida interrompida e nem deu
tempo de entoar Loalwa: “Chorando se foi”... Não se despediu feito
Sharon, outra Grammont se calara... E era só a professora Simone de
Ipojuca, uma Marques da Silva incluída às estatísticas de cada 10 minutos. A
fisionomia esmagada no quintal, a identidade irreconhecível seria talvez a
recompensa, só Deus sabia, o enorme golpe, a vida violada, o sangue
esguichando, a brusca realidade e o sonho se dissipava ausente, chegava a hora irrevogável
e o último suspiro: a estase se confundia com as trevas, como se fosse o quanto
a dizer no seu cortejo. Até mais ver.
Bell Hooks: O amor verdadeiro raramente é um espaço emocional onde as necessidades são instantaneamente satisfeitas. Para conhecer o amor, precisamos investir tempo e comprometimento... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.
Liane Moriarty: Muitos segredos dolorosos são melhores ficando guardados. O
problema é que as pessoas acham tão difícil mantê-los... Veja mais aqui
& aqui.
Scholastique Mukasonga: Os
livros eram túmulos de papel que eu tinha que construir para minha família e
para cada vítima que, perdida no anonimato do genocídio, permanece sem
sepultura. Como esse túmulo tinha que ser digno delas, sempre me preocupei em
escrever bem... Veja mais aqui & aqui.
A GEOLOGIA DO LOCAL
Antes da destruição e da poeira roxa pálida \
antes do início daquele lento ajuntamento de \ ruínas feridas \ antes que os
edifícios de San Antonio Abad \ se transformassem em bolos de vários andares de
um estilo rococó distante. \ antes de percebermos que o Trovador de Tampico \ jazia
algures debaixo de La Roma \ Só se ouvia ruído. \ Esse barulho. \ Um tremor
áspero, \ um gemido tuberoso que vinha de longe e de dentro, \ o estertor de um
longo e sufocado bocejo, \ um facão polido, \ uma voz sem voz. \ o som
perseguindo-se dentro da própria \ garganta. \ Assim nasceu o antes e assim
nasceu o depois. \ Uma desgraça inaugural com um anel de morto no dedo. \ E
assim nasceram os quebrados. \ E nasceram as formigas que carregaram os restos \
pouco a pouco. \ E renasceram as baratas iridescentes voando \ de canto a
canto. \ Os cantos nasceram. \ Ângulos de luz onde a luz se tornava sinistra. \
Nichos gotejando sêmen e ozônio. \ Esse era o contexto. \ Ali, todos nós
nascemos \ caindo. \ Lascas espiraladas de hélio. \ Rodeada por soldados \ de
um cinza único, \ a cidade era um corpo encolhido em forma de bola no amplo \ leito
do seu vale, \ repleto de dor \ e carregado de milagres, \ como uma mulher que
sangra por baixo.
Poema da premiada escritora e professora mexicana
Cristina Rivera Garza. Veja mais aqui.
LEIA & REVOLTE-SE – [...] Não
queremos ser pessoas passivas e conformistas, falsas e entediantes, seduzidas
pelo conforto e presas a um ritual repetitivo e interminável de consumo, que
continuam comprando porcarias que nos são jogadas como migalhas, que esquecem
como fazer perguntas honestas e importantes, que apenas tentam sobreviver ao
dia a dia. [...] Os sistemas atuais
falharam em fornecer respostas aos cidadãos, e as pessoas estão buscando
alternativas fora do espectro político tradicional. Essas insatisfações estão
sendo exploradas por políticos de direita, nativistas, oportunistas, corruptos
e cínicos. Os mesmos que ajudaram a criar e alimentar toda essa situação agora
oferecem a salvação. Esse é o jogo deles. É a mesma estratégia de desfinanciar
um programa ou agência reguladora que desejam eliminar, para depois usar a
ineficácia resultante como prova de que precisa ser extinto. [...] Quero intensificar minha
vida. Quero atingir a densidade máxima, viver nove vidas em uma só. É uma busca
por vidas, não por experiências. [...]. Trechos
extraídos da obra Read & Riot: A Pussy Riot Guide to Activism (Coronet, 2020), da musicista, escritora,
artista conceitual e ativista russa Nadya Tolokonnikova (Nadejda Andreevna
Tolokonnikova). Veja mais aqui & aqui.
CASTA: AS ORIGENS DOS
NOSSOS DESCONTENTAMENTOS – [...] Na nossa era, não basta ser tolerante. Você tolera mosquitos no
verão, um barulho estranho no motor do carro, a lama cinzenta que se acumula na
faixa de pedestres no inverno. Você tolera aquilo com que preferiria não ter
que lidar e que gostaria que desaparecesse. Não há honra em ser tolerado. Todas
as tradições espirituais ensinam a amar o próximo como a si mesmo, e não a
apenas tolerá-lo. [...] A empatia radical significa dedicar-se a se educar
e a ouvir com humildade para compreender a experiência do outro a partir da
perspectiva dele, e não da forma como imaginamos que nos sentiríamos. A empatia
radical não se trata de você e do que você pensa que faria em uma situação que
nunca vivenciou e talvez nunca vivencie. É a conexão profunda, baseada em um
conhecimento profundo, que abre seu espírito para a dor do outro, tal como ele
a percebe. A empatia não substitui a experiência em si. Não podemos dizer a uma
pessoa com uma perna quebrada ou um ferimento a bala que ela não está sentindo
dor. E as pessoas que nasceram em uma posição privilegiada não têm o direito de
dizer a uma pessoa que sofreu sob a tirania do sistema de castas o que é
ofensivo, doloroso ou humilhante para aqueles que estão na base da pirâmide
social. O preço do privilégio é o dever moral de agir quando se vê outra pessoa
sendo tratada injustamente. E o mínimo que uma pessoa da casta dominante pode
fazer é não piorar ainda mais a dor do outro. [...] Um sistema de castas é uma construção
artificial, uma classificação fixa e enraizada do valor humano que estabelece a
suposta supremacia de um grupo em relação à suposta inferioridade de outros
grupos. [...] O sistema de castas é insidioso e, portanto, poderoso,
porque não se trata de ódio, nem é necessariamente algo pessoal. São os hábitos
arraigados de rotinas reconfortantes e expectativas irrefletidas, padrões de
uma ordem social que existem há tanto tempo que parecem a ordem natural das
coisas. [...] O preço do privilégio é o dever moral de agir quando se vê
outra pessoa sendo tratada injustamente. E o mínimo que uma pessoa da casta
dominante pode fazer é não piorar ainda mais o sofrimento. [...] Somos
responsáveis pela nossa própria ignorância ou, com o tempo e uma busca
sincera pelo conhecimento, pela nossa própria sabedoria. [...] Escolher não olhar,
porém, é por sua própria conta e risco. O dono de uma casa antiga sabe que
aquilo que você ignora nunca desaparecerá. O que quer que esteja à espreita
continuará a se deteriorar, quer você escolha olhar ou não. A ignorância não
oferece proteção contra as consequências da inação. Aquilo que você deseja que
desapareça continuará a te atormentar até que você reúna a coragem para
enfrentar o que preferiria não ver. [...] A escravidão não foi meramente um
acontecimento infeliz que atingiu as pessoas negras. Foi uma inovação
americana, uma instituição americana criada por e para o benefício das elites
da casta dominante e imposta por membros mais pobres da casta dominante que
vincularam seu destino ao sistema de castas em vez de à sua consciência. [...].
Trechos extraídos da obra Caste: The Origins of Our Discontents (Randon
House, 2020), da premiada jornalista estadunidense Isabel
Wilkerson. Veja mais aqui.
A ARTE DE NATARA NEY
ITINERARTE –
COLETIVO ARTEVISTA MULTIDESBRAVADOR:





