domingo, novembro 09, 2025

CRISTINA RIVERA GARZA, ISABEL WILKERSON, NADYA TOLOKONNIKOVA & NATARA NEY

 

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som dos álbuns CinePoesia (2020), A Mil Tons (2017), Cartas brasileiras (2006) e Quinteto (1999), da compositora, arranjadora e flautista Léa Freire (Léa Silvia de Carvalho Freire).

 

Elegia à catábase de Simone... - Ao despertar, aquela era a mais perfeita das manhãs e ela recendia iluminada pela satisfação, aspirando o sublime aroma de uma felicidade indestrutível, indizivelmente feliz. Transpirava às voltas com seus êxtases sentimentais e compreendia por si, sem que precisasse de maiores explicações. Era professora desde nascença, brincava ensinando os deveres às bonecas, dava aulas para aves e árvores do quintal, ou quem aparecesse às suas tranças na face rosada, fulgurava pelo ondulante canavial da paisagem, sentada à murada da cacimba, com suas fantasias eloquentes. Ali naquele quintal vestia-se hierática de todas as saudades, com o frescor adorável de imaculadas rosas nos canteiros de flores. Parecia viver numa fabulosa névoa onírica, o sorriso atravessava a primavera e nela o pássaro havia por toda parte. Quando não se fazia deliciosamente acolhedora pelas venerações outonais, pela casa toda, herdada dos pais, desde o terraço antigo dos inumeráveis momentos das risadas perduráveis no calor estival, em que ressoavam os ecos de sua infância, a intimidade invernosa de sua adolescência na visagem de seus antepassados flutuantes e dali o amor a fizera solitária, porém feliz. Assim todos os dias desde que se entendeu por gente e, obstinada, perseguia seus propósitos, como se nadasse um oceano imenso às braçadas por atravessá-lo triunfante, inteiramente alegre e segura. Inebriava com sua lindeza irrepreensível e ao seu modo, mesmo quando as nuvens roçavam a colina e a noite cobria todo o lugar, as pálpebras úmidas sobressaiam ao fechar os olhos contida, com as crepusculares sensações do dever cumprido. Estendia a mão às ocasiões e espargia condecorações e entusiasmos. Comoventemente formidável seguia seu caminho serena e imponente, o senso de justiça e a sinceridade à toda prova, feliz com o corpo que habitava esgueirando-se pelo tumulto das ruas, os transeuntes no tráfego, a dignidade extrema, a força do próprio esplendor. Conhecia as pessoas por instinto e delas aprendera o tanto quanto havia chorado no quarto, a perda dos pais e a perpétua sensação na ênfase da pulsação ressoante pelas boas recordações. Com ela tudo era digno de nota e desconhecia o quão perigoso era viver. Tinha de sair e assim o fez. Aprontou-se, ganhou o mundo. Ao retornar de Porto de Galinhas depois do meio dia, recolheu-se ao quintal e revivia, deparando-se consigo mesma: um lance de dados e o inescrutável, quem estorvaria? Nem passava pela cabeça a malquerença duma câmara de furiosos evangélicos se passando por tirânicos parlamentares, vingativos legionários dementadores possuídos pelo ódio do deus deles, aos berros propagadores de um inexorável Jesus armado até os dentes, implicados em escusas malversações do erário público da edilidade, em conluio com gestores municipais desse Brasilzão do Fecamepa. O ressentimento deles à flor da pele e tudo estava perdido. Subitamente ela empalideceu, o mistério roçava e por um imprevisível segundo o petardo do fuzil desfigurou sua face. Nem deu tempo ao sobressalto, aterrorizada, o braço pendente, a dor física e o arrepio, quedou com os vastos sonhos desabando desprevenidos pelo silêncio. Foi às profundezas como se fosse Marielle no meio da tarde e, como o escândalo de Ângela, ela caiu Mendietta, a vida interrompida e nem deu tempo de entoar Loalwa: “Chorando se foi”... Não se despediu feito Sharon, outra Grammont se calara... E era só a professora Simone de Ipojuca, uma Marques da Silva incluída às estatísticas de cada 10 minutos. A fisionomia esmagada no quintal, a identidade irreconhecível seria talvez a recompensa, só Deus sabia, o enorme golpe, a vida violada, o sangue esguichando, a brusca realidade e o sonho se dissipava ausente, chegava a hora irrevogável e o último suspiro: a estase se confundia com as trevas, como se fosse o quanto a dizer no seu cortejo. Até mais ver.

 

Bell Hooks: O amor verdadeiro raramente é um espaço emocional onde as necessidades são instantaneamente satisfeitas. Para conhecer o amor, precisamos investir tempo e comprometimento... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

Liane Moriarty: Muitos segredos dolorosos são melhores ficando guardados. O problema é que as pessoas acham tão difícil mantê-los... Veja mais aqui & aqui.

Scholastique Mukasonga: Os livros eram túmulos de papel que eu tinha que construir para minha família e para cada vítima que, perdida no anonimato do genocídio, permanece sem sepultura. Como esse túmulo tinha que ser digno delas, sempre me preocupei em escrever bem... Veja mais aqui & aqui.

 

A GEOLOGIA DO LOCAL

Imagem: Acervo ArtLAM.

Antes da destruição e da poeira roxa pálida \ antes do início daquele lento ajuntamento de \ ruínas feridas \ antes que os edifícios de San Antonio Abad \ se transformassem em bolos de vários andares de um estilo rococó distante. \ antes de percebermos que o Trovador de Tampico \ jazia algures debaixo de La Roma \ Só se ouvia ruído. \ Esse barulho. \ Um tremor áspero, \ um gemido tuberoso que vinha de longe e de dentro, \ o estertor de um longo e sufocado bocejo, \ um facão polido, \ uma voz sem voz. \ o som perseguindo-se dentro da própria \ garganta. \ Assim nasceu o antes e assim nasceu o depois. \ Uma desgraça inaugural com um anel de morto no dedo. \ E assim nasceram os quebrados. \ E nasceram as formigas que carregaram os restos \ pouco a pouco. \ E renasceram as baratas iridescentes voando \ de canto a canto. \ Os cantos nasceram. \ Ângulos de luz onde a luz se tornava sinistra. \ Nichos gotejando sêmen e ozônio. \ Esse era o contexto. \ Ali, todos nós nascemos \ caindo. \ Lascas espiraladas de hélio. \ Rodeada por soldados \ de um cinza único, \ a cidade era um corpo encolhido em forma de bola no amplo \ leito do seu vale, \ repleto de dor \ e carregado de milagres, \ como uma mulher que sangra por baixo.

Poema da premiada escritora e professora mexicana Cristina Rivera Garza. Veja mais aqui.

 

LEIA & REVOLTE-SE – [...] Não queremos ser pessoas passivas e conformistas, falsas e entediantes, seduzidas pelo conforto e presas a um ritual repetitivo e interminável de consumo, que continuam comprando porcarias que nos são jogadas como migalhas, que esquecem como fazer perguntas honestas e importantes, que apenas tentam sobreviver ao dia a dia. [...] Os sistemas atuais falharam em fornecer respostas aos cidadãos, e as pessoas estão buscando alternativas fora do espectro político tradicional. Essas insatisfações estão sendo exploradas por políticos de direita, nativistas, oportunistas, corruptos e cínicos. Os mesmos que ajudaram a criar e alimentar toda essa situação agora oferecem a salvação. Esse é o jogo deles. É a mesma estratégia de desfinanciar um programa ou agência reguladora que desejam eliminar, para depois usar a ineficácia resultante como prova de que precisa ser extinto. [...] Quero intensificar minha vida. Quero atingir a densidade máxima, viver nove vidas em uma só. É uma busca por vidas, não por experiências. [...]. Trechos extraídos da obra Read & Riot: A Pussy Riot Guide to Activism (Coronet, 2020), da musicista, escritora, artista conceitual e ativista russa Nadya Tolokonnikova (Nadejda Andreevna Tolokonnikova). Veja mais aqui & aqui.

 

CASTA: AS ORIGENS DOS NOSSOS DESCONTENTAMENTOS – [...] Na nossa era, não basta ser tolerante. Você tolera mosquitos no verão, um barulho estranho no motor do carro, a lama cinzenta que se acumula na faixa de pedestres no inverno. Você tolera aquilo com que preferiria não ter que lidar e que gostaria que desaparecesse. Não há honra em ser tolerado. Todas as tradições espirituais ensinam a amar o próximo como a si mesmo, e não a apenas tolerá-lo. [...] A empatia radical significa dedicar-se a se educar e a ouvir com humildade para compreender a experiência do outro a partir da perspectiva dele, e não da forma como imaginamos que nos sentiríamos. A empatia radical não se trata de você e do que você pensa que faria em uma situação que nunca vivenciou e talvez nunca vivencie. É a conexão profunda, baseada em um conhecimento profundo, que abre seu espírito para a dor do outro, tal como ele a percebe. A empatia não substitui a experiência em si. Não podemos dizer a uma pessoa com uma perna quebrada ou um ferimento a bala que ela não está sentindo dor. E as pessoas que nasceram em uma posição privilegiada não têm o direito de dizer a uma pessoa que sofreu sob a tirania do sistema de castas o que é ofensivo, doloroso ou humilhante para aqueles que estão na base da pirâmide social. O preço do privilégio é o dever moral de agir quando se vê outra pessoa sendo tratada injustamente. E o mínimo que uma pessoa da casta dominante pode fazer é não piorar ainda mais a dor do outro. [...] Um sistema de castas é uma construção artificial, uma classificação fixa e enraizada do valor humano que estabelece a suposta supremacia de um grupo em relação à suposta inferioridade de outros grupos. [...] O sistema de castas é insidioso e, portanto, poderoso, porque não se trata de ódio, nem é necessariamente algo pessoal. São os hábitos arraigados de rotinas reconfortantes e expectativas irrefletidas, padrões de uma ordem social que existem há tanto tempo que parecem a ordem natural das coisas. [...] O preço do privilégio é o dever moral de agir quando se vê outra pessoa sendo tratada injustamente. E o mínimo que uma pessoa da casta dominante pode fazer é não piorar ainda mais o sofrimento. [...] Somos responsáveis pela nossa própria ignorância ou, com o tempo e uma busca sincera pelo conhecimento, pela nossa própria sabedoria. [...] Escolher não olhar, porém, é por sua própria conta e risco. O dono de uma casa antiga sabe que aquilo que você ignora nunca desaparecerá. O que quer que esteja à espreita continuará a se deteriorar, quer você escolha olhar ou não. A ignorância não oferece proteção contra as consequências da inação. Aquilo que você deseja que desapareça continuará a te atormentar até que você reúna a coragem para enfrentar o que preferiria não ver. [...] A escravidão não foi meramente um acontecimento infeliz que atingiu as pessoas negras. Foi uma inovação americana, uma instituição americana criada por e para o benefício das elites da casta dominante e imposta por membros mais pobres da casta dominante que vincularam seu destino ao sistema de castas em vez de à sua consciência. [...]. Trechos extraídos da obra Caste: The Origins of Our Discontents (Randon House, 2020), da premiada jornalista estadunidense Isabel Wilkerson. Veja mais aqui.

 

A ARTE DE NATARA NEY

A arte da montadora, roteirista e diretora de cinema Natara Ney, que já montou e roteirizou 20 longa-metragens, 5 séries para TV e diversos videoclipes. Ela dirigiu os filmes Elza Infinita (2021), Um outro ensaio (2010), Espero que Esta te Encontre e que Estejas Bem (2020), Cafi (2021) e Quem Ela Pensa que É? (Série de TV - 2024). Já roteirizou Divinas Divas (2016), O curioso (2010), Além Hamlet (2007), entre outros. Veja mais aqui.

 

ITINERARTE – COLETIVO ARTEVISTA MULTIDESBRAVADOR:

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