Ao som da cantora, compositora e produtora cultural
Maria Joyce.
TRÍPTICO DQP:
A casa em que eu nasci não existe mais... - A madrugada chovia e eu dei a mão ao menino da beira do rio que sempre
fui lá no quintal dos milagres.
Divagação à toa, talvez. Horas a fio. Ali muitos dos meus amigos invisíveis, Ambulantes do Una, me contavam de tudo,
escondidos nos troncos e galhos da minha imaginação. E me davam corda para que
eu me metesse a ser o protagonista todo Gonçalo do Ramirez de Eça ou aprontando nas ilhas da Polinésia montado na Moby Dick do Melville, como se me esgueirasse explorando a Meseta do Pamir. Vivia solto na
traquinagem e, vez em quando, uma menina aparecia para me contar doutras
hestórias do tempo do ronca e do faz de conta, e já sabia de cor outras tantas
pulando o muro para ir com ela pro brejo no monte de pó de serra, coisas da
meninice mais faceira. Foi lá que Zezé apareceu e eu tinha tantas aventuras a
mais que um simples pé de laranja lima. Hoje sorrio xexéu exilado a reviver perplexo
o que sobrou daquela infância, assaltado pelos fantasmas madrugadores dos aprisionados
pela memória da Casa dos mortos de Doistoiewski – todos
foram fuzilados, apesar da comutação da pena, e zanzavam por ali como se fossem
aqueles do documentário da Débora Diniz.
A menina que brincava comigo naquele tempo reapareceu e era a amiga Sydia Araújo: Eu fui criança e hoje sou lembranças
do passado que resiste num presente cuja ausência deixa suspensa em nuvens de
algodão doce, um filme que insiste na tela de minha cinemateca. Quando ela sumia tudo ficava como se ouvisse de Stravinsky: Minha infância... foi apenas o período de espera até o
momento em que pude mandar para o inferno todos e tudo que me rodeou. Sim, comigo também. É que fui pro mundo e enfrentei vicissitudes e o
futuro. Hoje a casa onde nasci não existe mais...
Tranche de
vie... - Imagem do artista
conceitual e visual estadunidense David Reed. – O voo, a mão no presente, a cabeça no
futuro e o mundo girava sob meus pés. Fui aprendendo que os
seres e coisas não só possuem dois lados, mas muitos no âmago dos mistérios. Com
isso muitos desmoronamentos dramáticos presidiram a grandiloquência das
repulsas. Amiúde, a brandura, mesmo espedaçado, indignado com a repugnante
estupidez. E se de um lado ouvia Eyvind Johnson: Deve-se
pensar que você é alguém que vive no futuro e que você tem que julgar – aprovar
ou desaprovar – o eu que age hoje, o eu que mantém ou falha... E nisso devemos acreditar: que a esperança e a vontade podem
nos aproximar do nosso objetivo final: justiça para todos, injustiça para
ninguém. De outro aquela menina reaparecia moça
feita como se fosse Chimamanda Ngozi Adichie: A história sozinha cria estereótipos, e o
problema com estereótipos é que não é que eles não são verdadeiros, mas que
eles são incompletos. Eles fazem uma história se tornar a única história... Eu constantemente cometo o erro de pensar
que algo óbvio para mim é óbvio para todo mundo... Nossas histórias se agarram a nós. Somos moldados pelo lugar de onde
viemos... O tempo passava e entre dúvidas eu ia singrando a vida para saber
do escritor holandês Harry Mulisch (1927-2010) a me jogar na cara lisa: Mas nada existe no futuro; ele está vazio;
Pode-se morrer a qualquer momento... Um começo nunca desaparece, nem mesmo com
um fim. Ao desencontrar de mim no meio de tantos tropeços, aquela que tanto
ia e vinha me trazia os versos de Vai
Passar da Vera Inber: Inevitavelmente,
os anos passarão, arquivando... / Uma longa, longa fila. / Em uma cidade de
pomar, colmeia de asfalto, / Todas as cidades crescerão. / Lindas rosas
plantadas em telhados de vidro também florescerão. / Mas nós – asas! — não o
verá nem o ouvirá; / Não eu, não você. / Apesar de tudo isso, é fácil imaginar /
Esta cidade e / Seu verde, emoldurado no brilho do sol, / Em terra de todos os
homens. — / Haverá uma estátua centrada no / octógono de uma certa Praça, / Construída
para que o ouro do pôr-do-sol se derrame, escorrendo / Sobre o bronze da
jaqueta. / Todos os tipos de criancinhas vão lá, felizes, / sem cuidados. / Brilhantes,
eles enviam seus sorrisos no rico pôr do sol / Para aquele que ali se eleva. / Uma
mãe levanta seu bebê para os degraus de pedra / E vendo os raios de sol empilhados
/ Acima deles diz baixinho... E sequer ouvia as últimas palavras porque a
buzina do trânsito me roubava a complacência. Sabia, nada é dito em vão, mesmo que se pareça um chiste. Dou meu testemunho,
apenas, a minha catarse...
É guerra e
eu da paz...- Imagem:
Iconografia do artista estadunidense Robert Motherwell (1915-1991). – Como pode, hem? Aos trancos e barrancos voo, tudo é tão indefinido,
graças! Do nada os olhos de Maria Joyce
cantarolando inquieta e cheia de vida, ruacima tempabaixo ali e acolá
apontando: viver é possível. Sim, pode ser, eu sei. Era como se fosse a jornalitescritora
estadunidense Elizabeth Lee Wurtzel (1967-2020)
me dizendo: Às vezes eu gostaria de poder
andar por aí com uma placa MANUSEIE COM CUIDADO grudada na minha testa... Isso
é tudo que eu quero na vida: que essa dor pareça ter um propósito... E das
casas olhos invisíveis por onde íamos entre fotos, instrumentos, garrafas da
cachaçaria, o caminho de volta sem antes nem depois. E se para todo lado há só
conflito, onde a paz? Não deu outra e Käthe Kollwitz nos lembrava: Toda guerra já
traz em si a guerra que a responderá. Cada guerra é respondida por uma nova
guerra, até que tudo seja destruído... O
pacifismo simplesmente não é uma questão de olhar calmo; é um trabalho árduo...
É meu dever dar voz aos sofrimentos das
pessoas, os sofrimentos que nunca terminam e são grandes como montanhas. E a
cantora trouxe ânimo como se me dissesse que tudo vale a pena, agora e já.
Esqueci o que era apenas passado porque o futuro era daquela que se foi sem saudade como se ganhasse o mundo perdendo-se de si mesma. Até
mais ver.
[...] Não é possível mudá-las [as salas de aula] se os
professores não estiverem dispostos a admitir que ensinar sem preconceitos
exige que a maioria de nós reaprenda, que voltemos a ser estudantes [...] A integridade está presente quando há congruência ou
concordância entre o que pensamos, dizemos e fazemos. [...] Imagine como é ter aulas com um professor que não
acredita que você é totalmente humano. Imagine como é ter aulas com professores
que acreditam pertencer a uma raça superior e sentem que não deveriam ter de se
rebaixar dando aulas para estudantes que eles consideram incapazes de aprender. [...] Foram as experiências dolorosas que me incentivaram a
lutar para ensinar de formas que fossem humanizadoras, que animassem o espírito
de meus estudantes de maneira que eles se elevassem na direção de sua peculiar completude
de pensar e de ser. [...].
Trechos extraídos da obra Ensinando pensamento crítico:
sabedoria prática (Elefante,
2020), da escritora, artista professora e ativista feminista e antirracista
estadunidense Bell Hooks (Gloria Jean Watkins – 1952-2021), autora de
obras como E
eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo (1981), Erguer
a voz: pensar como feminista, pensar como negra
(1989), Olhares negros: raça e
representação (1992), Ensinando
a transgredir: a educação como prática da liberdade
(1994).
Dela a frase: O amor é
o fundamento de toda mudança social significativa. Veja
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