DOS SONHOS AOS PESADELOS DE XIMÊNIA - Era meio
dia e Ximênia não tivera a sorte de ter um príncipe parrudo e lindão, que
ordenasse aos serviçais do palácio, servir-lhe suntuoso almoço naquele momento.
Bem que ela merecia outra sorte, pensava. Ao contrário, restou-lhe a promessa
de sapo beberrão e rabugento, a coaxar futebol, cachaça e conversa mole pelos
botecos, quando não umas umbigadas dentro da noite, das quais nada sentia nem guardava.
Ninguém merece e era meio dia. Nessa hora perdia-se nas lembranças dos tempos da
província, menina cheia de sonhos e esperanças que acordou no pesadelo de se
mudar pra cidade grande, à procura de melhoras de vida pro marido que não
encontrava mais colocação no lugar. Sim, demorou quase uma eternidade, mas ele
arranjou emprego – aquilo mais parece escravidão! -, dava pra ajeitar o modesto
sustento, encolhendo aqui, espichando ali. Ainda sonhava tudo aquilo mudar, mas
era meio dia e tinha de aproveitar o intervalo pro almoço e resolver na
companhia gestora de energia, a conta da luz do seu lar – um quarto alugado bem
longe depois do fim do mundo, era o que dava pra pagar. – Porra! O marido bem
que podia resolver isso! -, reclamava. Não dava e pegou a bolsa e os
documentos, depôs o avental e a touca no cabide, e avexada saiu a toda pra
pegar a condução. O Sol pesando quente à cabeça, ao primeiro psiu atrevido ela desconcertou
o andar. – Enxeridos safados! -, desnorteada com a insolência dos metidos,
misturada com a barulheira e o movimento louco do trânsito, às pressas
procurando se safar dos galanteios e, depois de muito andar, chegar ao ponto do
ônibus, onde pôde delicadamente se espremer com outros pedestres, tentando
palmo a palmo espaço embaixo da guarita, pra se refrescar do mormaço e que,
apesar de tudo, ventava ainda mais um calor imenso. Mal se aliviara daquilo, a
condução estacionou bruscamente e todos como uma boiada solta, invadiram duma
só vez a porta estreita do ônibus já lotadíssimo, não cabendo nem meio, quanto
mais os tantos que se acotovelavam para conseguir entrar. Sem saber como, ela
foi levada aos empurrões pela multidão, sentindo-se esquartejada de não saber
onde estavam as suas mãos, corpo, pernas e pés, comprimida no meio da
compactação de gente que ocupavam o mesmo espaço e lugar. Sentia-se invadida
por mãos que não eram suas e por todo seu corpo, saliências, encostos, enquanto
exalava o perfume de sua vitalidade sedutora, tudo em cima e apetitoso embaixo
do vestido, era como se estivesse expostas às apalpadelas, encoxadas, alisados,
esfregões nela, seios, sexo, glúteos – Meu Deus, acho que me tiraram a roupa e
não sei o que fazer! Na confusão dava pra se distinguir lá do fundo um
evangélico rezando alto, quando alguém berrou: - Tá amarrado em nome de Jesus! É
o cu da mãe! Da sua, seu fresco! E o empurra-empurra, ela inquita no meio do
aperto, uma curva aqui, uma freada ali, quebra-molas, catabis, haja catombos
pela buraqueira, aos solavancos a coisa ia se organizando, dela tomar pé da
situação e sentir-se inteira, se recompondo, até chegar ao ponto de descida e
ainda estar entalada no meio da aglomeração. Depois de muito esforço, conseguiu
descer no ponto seguinte, quase desnuda e completamente atordoada. Olhou pros
lados, não sabia onde estava: - Ô moça, onde fica a companhia de energia
elétrica? Ah, descendo por ali, lá no final dobre a esquerda e uns dois
quilômetro mais, chega lá. Vixe! Pela dobra do beiço da moça devia ser longe
mesmo. E era. Andou que só a má notícia, mas chegou. Pegou a senha na portaria
e depois de uns quarenta minutos afinando os cambitos no canto de uma sala, foi
atendida pro interrogatório: tem ar condicionado? Não. Máquina de lavar? Não. Chuveiro
elétrico? Não. Forno microondas? Não. Ué, na sua casa não tem nada? É só um
quarto, banheiro e mais nada. Tem alguém roubando energia da sua casa! Pronto,
foi o fim do mundo. Nada resolvido, havia de pagar e pronto. Nem ganho isso,
ora! Se vira! Na saída, completamente desapontada, um funcionário aproximou-se
dela e disse: Dona, me dê duzentos reais que eu boto um gato e resolve isso! Ela
abriu os olhos aos boticões e saiu sem nada dizer, estava já atrasada pra volta
ao trabalho, preocupada com os esporros do chefe. E o pior: sem comer nada, não
dera tempo, e ter de passar de novo por tudo que passou na condução, maior
vexame, chegar lavada de suor e atrasada, embaixo do maior esculacho, ter fôlego
de correr para colocar as coisas ordem, sem descanso, maior correria de perder
completamente a noção do tempo, já de noite, a hora de largar com afazeres na
jornada e ter de voltar pra casa, exausta, a ventania levantando a saia e ela
inutilmente tentando conter a nudez, enquanto a rapazeada delirava: - Essa é
boa, meu! Ela só queria chegar em casa pro segundo tempo de seus afazeres:
limpeza, lavagem de roupa, comida no fogão pra marmita do marido pro dia
seguinte, um outro sufoco, melhor que esse, pelo menos. O marido bem que podia
ajudar, culpa da mãe dele que dizia: - Filho meu não era viado pra fazer
serviços de piniqueira! Segure seu marido e dê conta de deixar tudo nos trinques
prele reinar! Megera! Bruaca! Teria de se virar sozinha mesmo! Que raiva! E quando
menos esperava, sem mais caber em si, chegava ao ponto de casa, ufa! Até que
enfim! Não menos trabalhosa descida, conseguiu respirar fundo o ar puro depois
de horas que nem sabia, nem adiantava saber, restava comer algo pra tapiar a
barriga e pegar logo na lavanderia com a roupa, a vassoura pela casa, a comida
no fogão, os pratos na pia, até desmaiar na cama e ser surpreendida com a barba
mal feita e o bafo intragável de cigarro e cachaça, tornando novo pesadelo na
sua vida: - Amor, a obrigação, hem? O papai aqui quer lavar a jega! Isso que é
vida, resmungava, e do jeito que estava, ele a revirava e se servia, ela nada
via até o dia amanhecer toda lambuzada, peguenta, e tudo recomeçar num novo
dia. Ah, quem sabe, um dia será diferente. © Luiz Alberto Machado. Veja mais aqui, aqui & aqui.
CONHECIMENTO, TEORIA & PRÁTICA
[...] É importante para a prática saber lidar com
teorias, sem fazer delas uma ideia fixa; não são para serem adotadas, mas
usadas e abusadas. Estudamos autores para nos tornarmos autores, não
porta-vozes ou papagaios. Se, filiar-se, todo professor precisa saber ordenar
sua cabeça e ideias das quais é autor, mantendo sua teorização sempre aberta.
[...] (In: Conhecimento moderno).
[...] Professor é, na
essência, pesquisador, ou seja, profissional da reconstrução do conhecimento,
tanto no horizonte da pesquisa como princípio científico, quanto sobretudo no da
pesquisa como princípio educativo. O estudante que queremos formar não é apenas
técnico, mas fundamentalmente cidadão, que encontra na competência
reconstrutiva de conhecimento seu perfil decisivo. [...] Professor precisa ser formulador de proposta
própria, ou seja, precisa saber elaborar com autonomia. Enquanto sua função de
socializador do conhecimento decresce e será substituída em grande parte,
aumenta o desafio formativo, tipicamente educativo, de fundamentar a
emancipação própria e dos alunos. [...] Professor
atualizado não valoriza apenas o legado teórico, mas sabe fazer da prática trajetória
de reconstrução do conhecimento, desde que a saiba teorizar. Teorizar a prática
significa não separar a produção do conhecimento frente à realidade, como se,
para estudar fosse mister deixar o mundo e ir para a universidade. Na verdade,
a aprendizagem sempre começa com a prática, que logo é teoricamente confrontada. [...] Professor precisa compor-se com a atualização
permanente, porquanto, se o conhecimento, de um lado, é aquilo que a tudo
inova, do outro lado da mesma moeda é aquilo que a tudo envelhece. Nada
envelhece mais rápido que o conhecimento inovador. Como regra, quando os alunos
se formam, já estão encanecidos, seja porque foram apenas “ensinados” ou só
viram “café velho”, seja porque não possuem formação básica propedêutica
adequada que os leve sempre a pesquisar e a elaborar com mão própria. Sem
desprezar o domínio dos conteúdos, necessário para o exercício profissional, o
conhecimento moderno valoriza mais o domínio metodológico, representado no
saber pensar e no aprender a aprender. [...] Não se trata de
fazer de cada estudante um pesquisador profissional, mas um profissional
pesquisador, quer dizer, que sabe manejar as virtudes metodológicas e sobretudo
pedagógicas da pesquisa. Para renovar adequadamente os reptos profissionais num
mercado escorregadio e submetido a processos violentes e geralmente muito
dúbios de inovação, é fundamental saber reconstruir a proposta profissional. Os
conteúdos se consomem no tempo, enquanto a habilidade de saber pensar necessita
manter-se viva, mais que nunca. Se não sabe pesquisar, não sabe questionar. Não
sabendo questionar, não sabe ultrapassar os impasses inevitáveis que toda
profissão encontra em sua prática. Assim, o mais importante hoje na pesquisa
não é o manejo de instrumentos metodológicos, mas o manejo dos desafios inovadores
e por vezes surpreendentes da vida. [...] Como regra, não se
aprende a pesquisar, embora quase sempre se estudem “métodos e técnicas de
pesquisa”. Este estudo quase sempre é feito sem pesquisa, ou seja, estudam-se métodos
e técnicas de pesquisa sem pesquisar. Uma contradição performativa lancinante. Pesa
muito a tradição da aula reprodutiva, considerada pela maioria ainda como
pedagogia fundamental. (In: Professor/Conhecimento)
Trecho
da obra Conhecimento moderno: sobre ética
e intervenção do conhecimento (Vozes, 1997) e trechos do artigo Professor/conhecimento (UnB, 2001), do sociólogo e professor Pedro Demo. Veja mais aqui e aqui.
Veja
mais sobre:
Rua do Sol, Anatomia
da destrutividade humana de Erich Fromm, Museu de Tudo de João Cabral de Melo Neto, Confissões de
Narciso de Autran Dourado, a música de Dawn Upshaw, a pintura
de Ivan Serpa & a
fotografia de Larry Clark aqui.
E mais:
Vamos
aprumar a conversa:
violência sexual, Tornar-se pessoa de Carl Rogers, Por que não sou
cristão de Bertrand Russel, Medeia de Eurípedes, Horizonte
perdido de James Hilton, a música de Rick Wakeman, Pelé, A pintura de Eugène Delacroix & Francis Bacon, o cinema de Frank Capra, Jornal Movimento
& Luta Antimanicomial aqui.
A música
de Clara Schumann & Todo dia é dia da mulher aqui.
Desejo
& Crônica de amor por ela, Espírito apolíneo & dionisíaco de Friedrich Nietzsche, Sóror Filomela de Rubén
Darío, Soneto luxurioso de Pietro Aretino, O teatro renascentista de Ludovico
Ariosto, o cinema de Jean-Pierre Jeunet
& Audrey Tautou, a pintura de Piero Della
Francesca. Kiki Sidário, a música
de Ibys Maceioh & a arte de Maria Luisa Persson aqui.
Nise da
Silveira & Todo dia é dia da mulher aqui.
Ardência
& Crônica de amor por ela, Estádio do espelho de Jacques Lacan,
A desconhecida de Mariano Latorre, Licuções dos pierrôs de Jules Laforgue, O pensamento de Pitágoras, a música de Max Bruch & Chloe Hanslip, Sábato Magaldi & o
teatro elizabetano, o cinema de Philip Kaufman & Ashley Judd, Rachel Levkovits, a pintura de Gustave Doré &
Nina Kozoriz aqui.
Marguerite Duras & Todo dia é dia da
mulher aqui.
Quando
te vi & Crônica de amor por ela, A mudança de Marques Rebelo,
A ilusão da alma de Eduardo
Giannetti, Anatol Rosenfeld & o
teatro shakespeareano, a música
de Francis Poulenc & Patrícia Petibon, Esfolhando
o amado corpo de Luzilá Gonçalves, a pintura de Asztalos Gyula, a arte de Franz
von Bayros, Magda Zallio, Anésia Pinheiro Machado & Marcela Rafea aqui.
Fecamepa:
quando o Brasil dá uma demonstração de que deve mesmo ser levado a sério aqui.
Cordel Tataritaritatá & livros infantis aqui.
Palestras:
Psicologia, Direito & Educação aqui.
A
croniqueta de antemão aqui.
Livros
Infantis do Nitolino aqui.
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de Eventos aqui.
CAMILA CORRÊA ANTONELLI & GRUPO UQBAR
A arte de Camila Corrêa Antonelli
& Grupo Uqbar que realizou a
ópera rock O mágico: uma ode a Orfeu.
O grupo de teatro se apresenta com música erudita e rock dramatizados pelos
atores e cantores, contando uma história sobre o surgimento da música no mundo.
CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Paz na
Terra:
A arte do
pintor e escultor francês Auguste Rodin (1840-1917).
Recital
Musical Tataritaritatá - Fanpage.