COISAS DA VIDA DE RIR & CHORAR – Imagem: Woodkid Les Bosquets, do fotógrafo e
artista francês JR. - Nasci entre um
rio e um riso de mulher. O rio, a extensão do quintal meu reinado, a lição pra
trilhar os tortuosos caminhos da vida. O riso, o talismã, desiderato: seguir adiante,
apesar de todos os pesares e percalços. Fui menino arteiro, precoce e feliz: monograma
do pai super-herói no peito, os cuidados extremos da mãe e a brecha do portão
entreaberto era a fuga pra liberdade do mundo no prematuro adolescer de quase
homem feito avexado, que nem teve tempo pra fruir do que foi. Virava a página
pro que viesse, amanhã é outro dia: lambia as feridas e ia adiante parindo
sonhos e muitos, acordando com o talho do tombo na topada que dizia não ser
aquilo que eu pensava, era outra coisa. Amanhã seria outro dia, ora, embora
parecesse o mesmo, olvidei dos tropeços embarcando outros novos sonhos até
teimar emperrado na areia, para adultecer de antemão como quem ainda menino não
tivesse tirado a catinga do mijo nas fraldas arrancadas da infantilidade. A cabeça
no infinito e os pés puxados pelas quedas entre pedras no chão, nunca olhei pra
trás, nem sabia mais de anteontem. Ia pro alto, insistia debaixo ao cair na
poeira, persistia e quedava pra perseverar, desabando de noite aos prantos pras
refeitas manhãs sorridentes a desesperar no crepúsculo de sucumbir de novo e
novamente sorrir na alvorada escorregando nas horas, derrapando a cada
retomada, até vergar sem fôlego arrumando a casa entre batalhas perdidas e
guerras declaradas. Juntava cacos e trapos, tateava e restabelecido teimava por
reiteradas decisões irrefletidas e as inevitáveis reações com seus insultantes
pretextos pra tomar outra direção, que nada, lá fui eu trocando as pernas a
desatar nós, labéus, revertérios e vicissitudes pelas encruzilhadas repletas de
enrascadas que deram o creu pra me deixar sem saída até hoje, quando ainda sou
aquele menino de sempre entre o quintal, o riso e o rio que nem existem mais ou
quase, mas tatuados na alma e doendo o pulso, o muque, a pleura, o bolso,
calçar as meias e os cadarços do sapato, moedas no chão ou ficar de cócoras, doendo
tudo, a chatura de entrevado com os espirros destrambelhados e o pigarro
arranhando a goela, a incontinência e os perdigotos difusos com o ronco
quebrando a madrugada. Dói achar que é dono da verdade pela experiência
adquirida sem dizer nexo de coisas, desdizendo afirmações e negando o que
redizera no meio de foi não foi por voltas que se esqueceu de ter ido, porque o
que se diz não se escreve e o assinado não vale mais nada, pra perder a
esperança com tudo sem mesmo saber o que do quê – como é que é? O que é mesmo? Dói
não ouvir direito e entender o contrário, não vê quase nada e só enxergar
lembranças perdidas sem pés nem cabeça que mais fazem virar ranzinza ou levar
na pilhéria, até tomar vergonha na cara pra falar sério e logo perdê-la na
primeira esquina no vão da lorota. Nesse trâmite, perdoar e pedir perdão, assumir
o que fez e chorar e rir da leseira que foi o tempo da vida toda pra voltar
atrás quando botou moral e passou vexame, olhando pros lados pra soltar um pum
por escape e pedir licença pra desaforar o primeiro desplante que der na telha,
mijando nas calças e nem aí porque esqueceu o perfume na inhaca da sovaqueira,
chamar na grande e dá risadas por arriar a lenha em tudo e na droga de vida que
teve quando acertava e dava errado, e ao dar errado ficava assim mesmo porque
não tinha mais outra coisa pra fazer, até se perder entre ideias noutras tantas
misturadas e sem saber nem o que estava falando, pois é, onde é que eu estava
mesmo? Ah, se soubesse disso tudo não teria graça nenhuma ter vivido e viver,
né não? Vamos aprumar a conversa. © Luiz Alberto Machado. Veja mais aqui.
CORPO A CORPO DE FERREIRA GULLAR
A história humana não se desenrola apenas nos
campos de batalhas e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola também nos
quintais, entre plantas e galinhas, nas ruas de subúrbios, nas casas de jogos,
nos prostíbulos, nos colégios, nas usinas, nos namoros de esquinas. Disso eu
quis fazer a minha poesia. Dessa matéria humilde e humilhada, dessa vida
obscura e injustiçada, porque o canto não pode ser uma traição à vida, e só é
justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não
tem voz.
Trecho
extraído da obra Corpo a corpo com a linguagem (Museu/Arquivo da Poesia Manuscrita, 1999),
premiado
e aplaudidíssimo poeta, crítico de arte, tradutor e ensaísta maranhense Ferreira
Gullar (1930 – 2016). Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.
Veja
mais sobre:
Sujeito,
indivíduo, quem?, Folhas da
relva de Walt Whitman, Ecce Homo de Friedrich
Nietzsche, Princípios fundamentais de filosofia de Politzer, Besse
& Caveing, a música de Emmanuelle Haïm, a pintura de Lasar
Segall & Carolyn Anderson, a arte de Emerson Pingarilho, Kate Wiloch, Sally Trace & Claudio Adrian
Natoli aqui.
E mais:
Entrega
& vamos aprumar a conversa, O indivíduo na sociedade de Emma Goldman, A metamorfose de Franz Kafka, a
música de Isaac Albéniz, Auto da barca
do inferno de Gil Vicente, o cinema de Sam Mendes & Annette Bening, a pintura de Fritz von Uhde & a fotografia de Freddy Martins aqui.
Bolero, Gertrudes
& Cláudio de John Updike, a música
do Trio Images, Os degraus de Roberto Calasso, Engraçadinha
de Nelson Rodrigues, a pintura de Norman Engel, o cinema de J. B. Tanko
& Irma Álvarez, a poesia de Frederico Barbosa & Aecio Kauffmann aqui.
As
trelas do Doro: o testamento de bocó aqui.
O xote
no auto de natal, Conto de Natal de Rubem Braga, a música de Ernesto
Nazareth & Maria Teresa Madeiram a pintura de Wilhelm Marstrand & Aprendendo
a viver com a lição do natal aqui.
Pode até
ser, mas se não for, nunca será, a música de Lina Cavalieri, a fotografia de
Chris Maher & a pintura de Eloir Amaro Júnior aqui.
A
desmedida correria para perder o bom da vida, Novum
Organum de Francis Bacon, a pintura de Fúlvio Pennnacchi, a música de Heitor
Villa Lobos & Quarteto Amazônia aqui.
O
maravilhoso mistério da vida, A literatura de Rebecca West, a música de Ana
Torroja, a pintura de Marie-Louise Garnavault, o cinema de Alan Bridges & Julie
Christie aqui.
Quem
quer diferente tem que fazer diferente, a pintura de Cândido
Portinari, a música de Xiomara Fortuna, o ativismo de Marcus Garvey, a
escultura de Emmanuel Villanis aqui.
O prazer
de amar e de ser amado, o cinema
de Bigas Luna & Aitana Sánchez-Gijón, a música de Joyce & Maurício
Maestro & a arte de Luciah Lopez aqui.
Todo dia
um novo ano feliz, a fotografia de John
Poppleton, a música de Egberto Gismonti, Sy Miller & Jill Jackson aqui.
&
O MANICÔMIO DE PATRICK MCGRATH
[...] O céu estava claro, a brisa, morna, e o
mundo que se estendia abaixo de nós, os terraços, o Muro, a charneca, tudo
estava quieto e esmaecido sob o luar. A voz de Stella chegou-nos claramente
através do ar morno da noite. Ah, conheci muitas mulheres elegantes e
adoráveis, mas nenhuma seria capaz de comparar-se a Stella naquela noite. Ela
envergava um vestido preto decotado de seda canelada, um gorgorão primoroso que
eu nunca tinha visto antes. O decote era quadrado e mostrava a curva dos seios.
O vestido se agarrava ao corpo e se abria na cintura, abaulando-se sobre cada
joelho como uma tulipa, com uma fenda intermediaria. Stella calçava sapatos de
saltos muito altos e tinha uma echarpe jogada sobre os ombros. Ela estava
perguntando a Jack sobre seu último par de dança, e eu, ao ter ouvido o nome de
meu paciente, revi brevemente na memória os homens e mulheres que haviam se
arrastado na pista de dança com suas roupas desajeitadas, e em todos havia algo
ligeiramente distorcido – menos nele. [...] Jack gostava de Stella pelas mesmas razões que eu: sua vivacidade, sua
compostura, sua aparência atraente. Sei que era considerada linda; havia muitos
comentários sobre seus olhos, e tinha pele pálida, quase translúcida, e cabelos
louros espessos, quase brancos, cortados bastante curtos e escovados para trás.
Era uma mulher bastante carnuda, de seios grandes, mais alto do que a média, e
naquela noite usava um colar de pérolas que realçava bem a brancura de seu
pescoço, ombros e seios. Na época eu a considerava uma amiga e, com freqüência,
especulava sobre sua vida inconsciente. Perguntava-me se haveria paz e ordem
por debaixo daquele exterior contido, ou se ela simplesmente controlava suas
neuroses melhor do que outras mulheres. [...] Nesse momento ela se voltou e me contemplou. Puxou a alça do vestido,
que escorregara do ombro. “Caridosa?”, perguntou, e vi Max olhar em nossa
direção, limpando distraidamente os óculos sem que suas feições tristonhas se
alterassem nem um pouco. Ela também o notou e, voltando-se, murmurou: “E
suponho que minha recompensa esteja no céu”. [...].
Trechos do
romance Manicômio (Planeta De
Agostini, 2004), do escritor britânico de ficção gótica Patrick McGrath, contando a história de um médico
psiquiatra que trabalha no tratamento de um artista assassino da esposa e há
cinco anos internado em hospital com diagnóstico de psicose paranóia e que se
envolve com a atraente esposa do vice-superintendente da clínica, um caso de
amor, obsessão e loucura.
CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Paz na Terra:
A fotografia moderna deve fazer mais do que divertir, deve incitar o
pensamento e por suas claras declarações de realidade, cultivar uma compreensão
compreensiva de homens e mulheres e a vida que eles vivem e criam.
A arte do fotógrafo australiano Max Dupain.
Recital
Musical Tataritaritatá - Fanpage.