OS DIAS ESTÃO ASSIM – Imagem:
arte do artista plástico Fábio R.
Mesquita. - Naquela manhã ela perdeu a hora, às pressas vestiu-se como
pode, ajeitando-se a cada passo até o ponto do ônibus, a condução acabou de
sair. Tentou correr atrás, levou um tropicão da gota! Maldiz da vida, amaldiçoa
sua sorte, uma ventania, saia na cabeça, todos viram: estava sem calcinha! Na
pressa das passadas, deu uma escorregada na calçada, bunda no chão e lascão de
sangreiro no meio da canela. Alguém recomendou: tome um banho de sal grosso e
comigo ninguém pode pra se benzer, minha filha, do jeito que vai, você se
estrepa! Capengando, foi pro trabalho a pé, era longe, mas dava pra chegar.
Atrasada? Levou um carão do patrão, explicou miudamente sua desdita. Nos
afazeres mal conseguia se concentrar, até a hora do almoço, sem fome, precisava
provar de uns doces na padaria, fartou-se, voltou pro trabalho e enrolou nas
tarefas fazendo de conta. Estava indisposta, mal-estar que lhe consumia por
dentro, a final de semana fora da pesada, não sabia nem como findou viva,
parecia mais que o mundo ia se acabar. Até que anoiteceu na porta de casa, chave
na fechadura e abriu a porta, tudo escuro ao acionar o interruptor: porra!
Esqueci de pagar a conta de energia. Ninguém merece. E agora? Perdeu o episódio
da novela, justo no dia da descoberta das tramóias todas, ah, resta mais nada,
faminta, sem graça, dormiu se abanando. Quando abriu os olhos era dia claro,
que horas? Olhou no celular: 8:20hs. Porra! Fez o que pode e correu pro ponto
do ônibus, acabou de sair. De novo, assim não dá. Um pedinte pede esmola,
mandou se lascar! Chegou atrasada de novo, levou uns bregues do chefe, vergonha
na cara, desculpas que não tinha mais, vista no canto do olho. Voltou ao
trabalho, embatucou-se com a tarefa, meteu as mãos pelas pernas, atrapalhou-se
toda, usou do charme pra pedir socorro, foi mal, o cara era gay e ficou com uma
mão na frente e outra atrás. Hora do almoço, serviu-se do lanche com
refrigerante e logo voltou pro emprego. Mal começou as tentativas de
desembaraçar os problemas, o pudim lhe fez mal, idas e vindas à toalete: já tô
ficando assada. Assim foi e não conseguiu desatar o nó do serviço, estava
passando mal, pediu arrego e foi-se, tinha que ir à faculdade saber a nota da
prova. No caminho, ouviu um psiu e mandou se catar. No mural das notas, não
deu, pra recuperação, estudar dobrado todo assunto. O cinema é uma boa, ainda é
cedo, fila quilométrica e tudo uma droga: o galã morreu no final e ela
debulhando em lágrimas: que merda! Foi pra casa e se estapeou: esqueci de pagar
a conta de novo. Fazer o que? Amanheceu menstruada – só faltava essa! -,
absorvente que não dava, foi comprar na farmácia, perdeu a carteira: puta que
pariu! Faz fiado? Não. Nem com jeitinho? Melhor ir trabalhar assim mesmo.
Atrasada de novo? Tô de boi, porra! Pode voltar, está dispensada. Eita! E
agora? Vou ser demitida mesmo, não tem mais jeito. Dois dias seguidas de
atraso, vou ser mandada embora. Ficou zanzando na rua, ligou pra prima, não
atendia, ficou olhando a vitrine das lojas, passou a manhã todinha quando bateu
a fome e foi comer, preferiu um cachorro quente com caldo de cana, mas ao
chegar ao estômago, maior revolução, correu pro mictório de quase não mais
sair: eu me acabei pelo fundo feito panela. Que droga! Religou pra prima, nada
de atender. Bateu pernas, conferiu promoções, melhor ir pra casa – cabeça mole
essa minha! -, chegar cedo e procurar a carteira perdida e a revolver tudo
botando a casa pelo avesso e de cabeça pra baixo, depois de horas: achou caída
atrás do vaso sanitário. Procurou a conta da luz, pediu pra São Lunguinho e
depois de revirar por horas todo monturo, achou e deu três saltos correndo pra
loteria: já encerrou o expediente. Foi pro ponto pegar ônibus pra magazine
tentar pagar no banco vinte e quatro horas, ao descer tudo escuro, esbarra num
estranho, é um assalto, a bolsa com tudo dentro já era. Está perdida, sem
documentos, sem telefone, desendinheirada, distante de casa, no meio do nada,
sozinha e desprotegida, seguindo chorosa a esmo, pedindo socorro, ninguém ouve,
ninguém conhecido por ali, desespero à flor da pele, até abordar o primeiro
passante que solícito concede o seu telefone: prima, socorro! Onde você está?
No paraíso? E eu no inferno! Socorro, prima. Não pode? Eu não tenho pra onde
ir, desligou. Liga novamente: tais aonde, porra? Me socorre, por favor!
Desligou novamente. Ela chora copiosamente. O estranho oferece ajuda, ela não
sabe o que fazer. Ele a segura pelo braço e encaminha até o carro, saem. Ela
não sabe pra onde vai, nem o que fazer. Num restaurante jantam, ela muda,
hipnótica, nem ouve o que lhe diz, apenas mecanicamente garfo da comida à boca
até esvaziar o prato. Um copo de bebida e ela sai da catatonia, desperta, olha
o estranho e pede outro copo que lhe é servido gentilmente por ele. Levanta-se,
pede licença, vai ao banheiro, se ajeita, cílios, pestanas, lábios, olheiras,
vestes, se recompõe, tudo nos conformes pro flerte, volta pra mesa exibindo-se
charmosa, vira outro copo, mais outro, três, quatro, a noite, o choro,
gargalhadas, o vinho e pernas pro ar no mundo girando entre lembranças e fodas,
remorsos e tô nem aí. Acordou, lugar estranho, nua e sem saber onde está. O que
achou desta noite? – perguntou-lhe o gentil cavalheiro que lhe socorreu pro
jantar. O que fiz? Você estava deprimida e, graças, liberou geral! Que horas
são? 9:30hs. Que droga! Que foi? Vou ser despedida do emprego, estou atrasada.
Relaxe, nem esquente, vamos comprar roupa de banho e vamos pra praia? Eu e
você? Sim. Agora? Exatamente. Quer saber, tudo à merda! Vamos. O dia, tarde,
noite e redemoinhos de acontecências, tudo um sonho, de quinta pra sexta havia
esquecido a vida tacanha, bebidas, gargalhadas, sexo, músicas, drogas e
noitadas sem fim. De sexta pra sábado, maior bacanal, nunca viu de perto tanto
pênis por todo seu corpo! Um festival paudurescente pra abocanhar, pegar, se
esfregar, se aninhar, sentar, babar, desbundar, umbigar, tudo no maior festejo:
achei o maior balaio de rola! Tô sendo fodida por uma chuva de caralhos! Quanta
pica dura, meu Deus do céu! Eu mereço! Isso é o céu! U-hu! Acordou
completamente nua na areia da praia. Procurou pelos demais, deserto. Bateu
agonia, todos os temores ao redor, saiu correndo sem direção, chorando nua pela
estrada até ser interceptada pela polícia e levada pra delegacia. De tarde
estava em casa enrolada num lençol fedorento, sem chaves pra entrar em casa, o
porteiro avisou: porta arrombada, pertences roubados. Subiu e quando viu o
vazio, sentou-se num canto da sala com todas as imagens rondando sua cabeça: o
pai que não queria lhe ver nem pintada a ouro, a mãe proibida de ajudar, o
irmão pau mandado, os parentes todos avalizando a atitude do pai de expulsá-la
de casa afora, o namorado que se mandou depois de flagrá-la aos beijos com o
primo dele, ninguém pra socorrer, amigos ou colegas da faculdade, tudo uns
chatos de galocha, a prima que não deu as caras depois do telefonema, devia
estar no bem-bom e nem ai pra ela que estava lascada de tudo, era a única mão
que podia contar e não havia mais nada àquela hora, só com seu umbigo,
desvalida, fodida e mal paga, cuspida e seviciada, abandonada de tudo, sem
conciliar o sono. Ali ficou noite adentro, sem pregar os olhos. Na manhã
seguinte, os comentários – que coisa! – acompanhavam a manchete do noticiário:
jovem nua se mata ao pular do oitavo andar do prédio. Os dias estão assim. ©
Luiz Alberto Machado. Veja mais aqui.
VIOLETA, A CARA DA INOCÊNCIA
QUADRO XI: E uma carta desde a cara toda da inocência (DESAPARECE
O ECRÃ DE SOMBRAS. NO BANCO DE SEMPRE, LAURA LÊ UMA REVISTA. ENTÃO MARIAN
APARECE RADIANTE.) MARIAN: Laura! Que alegria! Uma carta da Violeta! LAURA: A
sério? Trá-la, por favor! Vamos lê-la já! (LEITURA EM VOZ “OFF” - COM A VOZ DE
VIOLETA - , OU LEITURA DA CARTA DIRETA POR PARTE DE UMA DELAS, AS AMIGAS DE
VIOLETA NÃO DEIXAM DE OUVIR, EMOCIONADAS, CADA UMA DAS FRASES ESCRITAS PELA SUA
AMIGA: Queridas amigas Marian e Laura: Quero começar esta carta pedindo
desculpas às duas. Bem, também a José Manuel. Sei que devia ter-vos escrito
antes mas pensei que era melhor que passasse um tempo para assim ter melhores
coisas que contar, coisas agradáveis e muito diferentes das que nos fizeram ir
embora, à mamã e a mim. Sei também que não foi bom ter-me ido embora assim, sem
me despedir, mas garanto-vos que foi tudo tão rápido que ainda não consigo
acreditar no que me aconteceu. Bem, prometi a mim mesma, antes de escrever, não
contar coisas tristes e vou tentar. Por isso digo-vos que a cidade onde vivo é
muito mais pequena do que a vossa, mas também é bonita. Tem grandes parques e
os edifícios não são tão altos nem há tantos carros. É melhor assim, não acham?
A mamã e eu estamos num apartamento bastante especial. Não é nosso mas as
pessoas que ali vivem e as amigas da mamã fazem com que nos sintamos realmente
bem. Tem o nome de “Centro de Acolhimento” e nele vivem três famílias, e
nenhuma delas tem aqui o seu papá. Agora até tenho, por um tempo, novas irmãs e
irmãos. Quem o havia de dizer! Com o número de vezes que sonhei ter outro
irmão! Comigo, neste apartamento, estão a Carmen, a Luisa, o António, a Inma e
a Isabel. Parece que lhes fez bem. Nós unimo-nos muito. Talvez seja porque temos
o mesmo problema. Não sei. De qualquer forma, sinto tanto a vossa falta! Vocês
sim, é que teriam sido as minhas irmãs ideais! A mamã começou a trabalhar e
está contente por isso. Eu estou num novo colégio e, como prometi à mamã que
estudaria muito para ser alguém importante algum dia, as minhas novas professoras
e professores parecem tê-lo notado e estão contentes comigo. Falei nele no
início e, reconheço que não me esqueço dele nem por um instante. Que mal se deve
ter sentido o José Manuel por esperar tanto! Esta é uma das coisas que mais me
doeram junto com o fato de perder a vossa companhia. Mas asseguro-vos, minhas
amigas, que vos tenho muito próximas de mim, pois aprendi a fechar os olhos e a
sonhar com os três ao mesmo tempo. É assim sempre que quero. E é estupendo. Vocês
querem ver-me? Tenho a certeza que sim. Eu não sei bem quanto tempo vamos levar
até nos encontrarmos. A Mamã e eu temos que estar aqui, neste apartamento e
nesta cidade bastante tempo, até que haja uma decisão judicial. Depois, provavelmente,
verei o papá. Na melhor das hipótese ele leva-me de férias ou aos fins de
semana para a nossa casa, no bairro. Ele continua a viver ali. De certeza que
se sente sozinho. Sabem? Seria fantástico ter-vos muito próximas, sentir-vos a
meu lado, poder abraçar-vos como naquele dia na escola. Lembram-se? Não se
importarão muito que no próximo abraço incluamos também o José Manuel? Não
quero terminar esta carta sem vos agradecer os encorajamentos que seguramente
me enviaram, ainda que não tenham chegado aquí noticias vossas. Vocês não têm
culpa. Não sabiam o meu endereço. Tampouco quero que contem a alguém onde a
mamã e eu nos encontramos. Esse será o nosso segredo... O maior dos segredos! E
agora, sim; agora quero terminar esta carta quanto antes para que não demore
muito a chegar até às vossas mãos. Nela, e bem dentro do seu sobrescrito, quero
enviar para vocês e para José Manuel uma grande parte dos meus abraços e das
minhas caricias, e também outra parte de tudo quanto vejo e vivo nesta cidade
pequenina, dos seus cheiros e das suas cores, de tudo o que ouço e falo neste
sítio, tão longe do vosso e tão próximo, também. Escrever-vos-ei breve.
Entretanto, para cada um, todos os beijinhos do mundo, Da vossa amiga, Violeta.
(COM A
LEITURA DA CARTA E DEPOIS DO ABRAÇO EMOCIONADO DE LAURA E MARIAN, CAI MUITO
LENTAMENTE O PANO.)
Quadro XI - E uma carta desde a cara toda da inocência, do drama teatral Violeta – a cara
da inocência, do dramaturgo e professor espanhol José Cañas Torregrosa,
contando a história de uma menina que vive em um apartamento da grande cidade,
testemunhando as cenas mais severas da dolorosa realidade: um pai agredindo a
mãe.
Veja
mais sobre:
Credibilidade
da imprensa brasileira, a literatura de Cervantes, a História da imprensa
de Nelson Werneck Sodré, a Imprensa de Millôr
Fernandes, a música de Eduardo Gudin, Beijo no asfalto
de Nelson Rodrigues & a arte da
jornalista Enki Bracaj aqui.
E mais:
Todo dia
o Sol se põe para uma nova alvorada..., O homem unidimensional de Herbert Marcuse, a literatura de Amos Oz
& Machado de Assis, a poesia de Safo, a música de Händel & Caroline Dale, o cinema de Blake Edwards & Audrey Hepburn, a arte de Keith Haring, o
humor de Ronald Golias, a pintura de Frederic Edwin Church & François Gerard aqui.
Luís Vaz de Camões, aaqui. Jean de La Fontaine, O
cartesianismo científico de Paulo Cesar Sandler, A lenda do Cavalo sem
cabeça de Luís da Câmara Cascudo, Hécuba de Eurípedes, a Esther Góes, o cinema de Woody Allen, Tiradas do Doro, a Gustave Courbet
Brincarte do Nitolino, a literatura de Nélida Piñon, a música de Igor
Stravinski, a poesia de Augusto dos Anjos, O antiteatro de Eugène Ionesco, o
cinema de Graeme Clifford & Jessica
Lange, a arte de Frances Farmer, a pintura de Joan Miró, As emoções de Suely Ribella, Papel no Varal &
Ricardo Cabus aqui.
Freyaravi
& o circo dos prazeres, Cultura de consumo pós-moderna de Mike Featherstone, Os
contos brasileiros de Julieta
de Godoy Ladeira, O kama sutra de Vātsyāyana, a música de Marisa Monte, a fotografia de Ralf
Mohr, a pintura de Crystal Barbre & Luciah
Lopez aqui.
Lualmaluz, De
segunda a um ano de John Cage, Técnica
e ciência de Jürgen Habermas. a História da literatura de Nelson Werneck Sodré, a música de Sally Seltmann, a performance de Marni Kotak,
a pintura de Théodore Géricault,
a escultura de George Kurjanowicz, a arte de
Moisés Finalé & Luciah Lopez aqui.
Quando
tudo é manhã do dia pra noite, A agonia da noite de Jorge Amado, a música
de Bizet & Adriana Damato, o Folclore musical de Wagner
Ribeiro, a pintura de Aleksandr Fayvisovich,
Postuman bodies de r Judith Halbertam & Ira Livingstone, a
fotografia de Christian Coigny & Bryan Thompson, a
arte de Mirai Mizue & Luciah Lopez aqui.
Uma
coisa quando outra, o pensamento de Marshall Berman, a literatura de Adolfo Casais Monteiro, Arquiteturas
líquidas de Marcos Novak, a música de Tom Jobim & Maucha Adnet, Adriana Garambone, a pintura de
Renie Britenbucher, a arte de Alyssa Monk & Luciah Lopez aqui.
Feliz aniversário: resiliência, perspectivas & festas, o pensamento
de Paulo Freire, a literatura de Octavio
Paz, A resiliência de Makilim Nunes Baptista, a música
de Midori Goto, a pintura de Luis Crump, Babi Xavier, a arte de Fabrice Du Welz &
Luciah Lopez aqui.
&
O CINEMA MARGINAL DE ROGÉRIO SGANZERLA
Hoje
quero destacar o cinema marginal do ator e cineasta Rogério Sganzerla (1946-2004), começando pelo filme A mulher de todos (1969), estrelado pela
lindíssima atriz e cineasta Helena Ignez; o interessante drama Sem essa aranha (1970); o documentário Tudo é Brasil (1997), o terceiro da
trilogia sobre a visita de Orson Welles ao Brasil; o drama O signo do caos (2003) e o seu maior sucesso foi o romance policial
Bandido da Luz Vermelha (1968), baseado
na história dos crimes do assaltante João Acácio Pereira da Costa, que
assaltava residências, realizava fugas ousadas e gastava dinheiro de forma
extravagante, até ser encurralado e recorrer a medidas extremas, afora tantos
outros que tive oportunidade de conferir no cinema.
CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Paz na
Terra: curtindo o talento musical da cantora lírica estadunidense, especialista
em colaratura e repertório soprano leggero, Roberta Peters (1930-2017).
Recital
Musical Tataritaritatá - Fanpage.