VAMOS
APRUMAR A CONVERSA? QUANDO PAPAI NOEL FOI PRESO – Desde tenra idade que Doro
guardava consigo uma das mais fortes imagens de toda sua existência: os festejos
natalinos. Como sempre fora desprovido de qualquer possibilidade para
participar dos eventos de fim de ano, claro, o pai era um broco das costas ocas
que só se ocupava em ganhar dinheiro para assar e comer; a mãe, coitada,
dividida entre a fileirinha dos quinze filhos e a igreja, pudera, sobrava neres
de nada mesmo para o Doro alimentar suas fantasias infantis. Mesmo assim, ainda
hoje sonha com Papai Noel, banquete de natal, reunião de família às vésperas do
dia da religiosidade cristã, essas baboseiras todas ditas por ele mesmo. Certo
dia, porém, Doro invocou-se, resolveu ele mesmo fazer o seu próprio natal pela
primeira vez na vida. Encarou a mulher, nossa, como sempre incrédula; os
filhos, meia dúzia de bruguelinhos com os olhos bem abertos para a banda dele;
e, ao lado, sempre broncas e broncas e mais tivesse no mundo de estrupício
estaria ali, nas cercanias de sua inditosa existência. Pois foi com esse
panorama que ele franziu o cenho, coçou o cavanhaque, apertou o nariz,
pigarreou e uma luzinha de eureka brilhou das catracas do seu quengo. - Mulé,
vou fazê o nosso natá! - Lá vem ess´ome cum invenção de novo! - Verdade, vou
fazê pela premêra veizi a filicidade da gente e dum bucado de criança no mundo!
- Ih! Tem coisa! E tinha mesmo. Toda razão do mundo para Marcialita que já
desconfiava do salseiro que seria toda aquela invencionice do sujeito. Dinheiro
que era bom, nada. E agora? Como fazer? Doro não se apertava nunca mediante
qualquer que fosse a adversidade e colocava suas doidices com bastante – e bote
muito além do bastante nisso, demais até – criatividade. Primeiro, passou uns
dias só trancado, fazendo um cosimento nuns trapos e retalhos que recolhia por
todo canto onde passasse, só na concentração dos intentos. Nem vou falar, vocês
já adivinham, né? Já tratavam o desmiolado por gari de tanta coisa imprestável
que arregimentava, tudo um verdadeiro lixo, mesmo. Depois se apossou dumas
ferragens velhas, misturando um resto de velocípede aposentado armado em cima
de uns pedaços duma bicicleta destroçada, tudo num trabalho de soldador
engenhoso, resultando num bregueço lá que num tinha quem adivinhasse. Parecia
mais que o cara estava fazendo um excelente trabalho de funilaria, preparando
no meio das tranqueiras, alguma coisa por serventia. E parece que vai servir
mesmo, ninguém sabe ainda. Imaginem mesmo o rebuliço. Quando o mondrongo do
negócio estava pronto, ele começou a pintar dando uma cara multicolorida para o
invento. Com a pintura pronta daquilo, se armou de cordas, barbantes e cabos de
aço não se sabendo ao certo para quê, só se sabia mesmo das marteladas, suadas,
enganchadas e presepadas noite adentro para concluir algo longe de se imaginar
o que pudesse ser. Os vizinhos reclamavam que não podiam dormir com a
barulheira dele, sendo interpelado diversas vezes pelos educados soldados da
patrulha militar local. Com isso foi persuadido a respeitar o silêncio alheio,
senão seria trancafiado em nome da paz pública. Assim foi mais jeitoso até
quando deu por pronto, escondeu o que fazia de todo mundo e saiu recolhendo os
guenzos vira-latas mais maltratados que encontrava na redondeza. Uns oito
pulguentos estropiados que levou tudo para a sua residência. Um escarcéu! - Ô,
homi, bota essis viralata para fora! -, reclamava Marcialita. - Calma, muié,
vancê vai gostá. - Isso num é cachoro, homi, é uma fábrica de carrapato, quero
isso não aqui! - Calma, muié, cum certeza vancê vai gostá. E nesse chove num
molha, Marcialita matou uns três de chutes, sem contar mais uns cinco que
morreram de fome, tendo Doro de arregimentar mais cachorros para o seu intento,
mesmo sob os reclamos mais retumbantes da vizinhança que não aguentava mais. E,
dessa vez, trouxe uns quinze, quase de matar a mulher do coração e de
impaciência os irascíveis sofredores das imediações. - Prá quê tanto cachorro,
hem? Num basta tu aqui im casa? - Calma, muié, calma. Marcialita abufelou-se e
amarrou os filhos no cós da saia, zarpando para longe dali. Aí Doro trabalhou
em paz e deixava estampada aquela cara de satisfação, só entristecida com as
intervenções das autoridades policiais que agora estavam curiosas para saber no
que aquilo ia dar por fim. Livre da forma como ficou, Doro apoderou-se das
outras dependências da casa, principalmente a cozinha onde ele começou a fazer
uns cozimentos com açúcar e outros ingredientes peguentos no maior meladeiro.
Não deu outra! Uma explosão do botijão de gás! Ele coçou o quengo e constatou
suas limitações com o trato de fogo e fogão naquelas horas. Ôxe, um desmantelo
mesmo. Pacientemente, depois da explosão e do entra e sai de gente até de um
olho só para testemunhar o sucedido, ele removeu o resto das coisas que ainda
julgava por comestíveis e que estavam apregadas nos mais diversos recantos das
paredes, provando do resultado o que parecia até gostoso, vez que ele mesmo
saboreava com certo deleite, quando não fazia uma careta inchada depois. Uns
dias mais, Doro se acorda feliz! - É hoje! Era 24 de dezembro de um ano lá pra
trás. Ele começou seu expediente derrubando um pedaço do muro do quintal e
escondendo tudo com uma lona plástica preta para que ninguém visse o que estava
fazendo. Findada a destruição, escondeu-se dentro do quartinho e só se via o
zoadeiro dele remanejando coisas daquele local pro quintal. Nem se comesse
bosta de cigano da muita dava para se adivinhar o que ele se propunha a fazer.
Mas tome teitei. Passou toda manhã, transcorreu toda tarde e quando anoiteceu,
Doro estava todo aprontado com a cara de toda satisfação da vida. Às vinte
horas em ponto, Doro arrebenta a lona do muro do quintal e sai berrando: -
Jingle bell! É Natal! Hô hô hô!!!! Quando vi o estardalhaço, nossa! Fui o
primeiro contemplado com a surpresa. Diga-se: a coisa mais tresloucada que já
vira na vida. Um monstro! Aquilo nunca fora papai Noel, parecia mais
assombração de esquálido e feioso ser dos quintos dos infernos. Eu só
identifiquei o Doro pela fala e pela maneirice de seus jeitos. Imaginem uma
coisa estupidamente extravagante e duplicadamente horrorosa! Imaginaram?
Multipliquem por mil e ainda será pouco para dar uma ideia rala da estripulia
dele. Pois bem, ele fez um ar de riso para mim, meteu a mão no saco e
entregou-me um pacote dizendo que tinha um panetone dentro. Na verdade, era um
cuscuz com meio mundo de coisa que nem tive coragem e muito menos atrevimento
nem de cheirar quanto mais de digerir. Aos pulos e aos gritos Doro chamava as
crianças do lado e danou-se a entregar um nego-bom que ele mesmo fizera para a
alegria delas. Alegria, agora; depois vocês vão ver a desgraça. Quando fez as
entregas ali, deu umas palavras de ordem de comandante daquela doidice e partiu
com seu hô hô hô. A catrevagem toda resultou num trenó; as renas, os guenzos; a
vestimenta, uma tristeza de dar dó; os presentes, nego-bom e outras guloseimas
enjoativas. E o barulho, ensurdecedor. Lá vai aquela desgraça rua afora se
passando por papai Noel. Resultado: dois problemas gravíssimos! Saúde e
segurança públicas. Cadeia. Até então ele não havia inaugurado os serviços
cinco estrelas duma delegacia. E ainda insistia que era o papai Noel. Pode? Acusação:
a primeira, por causa da assombração. Todo mundo se cagou de medo,
principalmente as criancinhas. Num ficou um pé de gente na rua por onde ele
passou. A segunda: caganeira. Os bruguelos que comeram o nego-bom que ele
distribuiu, estavam todos hospitalizados com uma diarreia braba, morre mais num
morre. Uma correria dos diabos. Verdadeiro infanticídio em massa. Mediante esse
rebuceteio todo, tive que intervir em seu favor. De cara o delegado ameaçou que
não haveria na face da terra advogado capaz de retirar o sujeito daquelas
ferrenhas grades. Deu trabalho. Não era só o delegado, a população toda
duvidava quem tivesse o desplante de requisitar alvará de soltura para ser tão
perigoso que se tornara o inimigo público número 1 daquele lugar. Deu trabalho,
mas deu mesmo! Por sorte, as criancinhas depois de quinze dias de medicadas, se
salvaram daquele troço todo. Sorte das grandes. Apenas se intoxicaram em
demasia. Ainda bem. Consegui que fosse relaxada a prisão dele e quando instei
sobre o ocorrido, ele com a maior cara lisa, ainda balbuciou: - Hem, hem, as
criancinha nem pudero vê papai Noé direito. É mole? Tava ele já enganchado numa
beldade todo libidinoso parecendo mais que nada tinha acontecido. Pode? E vamos
aprumar a conversa aqui.
Imagem Reclining-nude, do artista plástico francês Frédéric Bazille (1841-1870)
Curtindo a álbum com a Symphony nº 3 - Symphony of Sorrowful
Songs Op. 36 (1976), do compositor polonês Henryk Górecki, with Symphonieorchester des
Südwestfunks-Baden-Baden/Ernest Bour & Stefania Woytowicz.
O FILÓSOFO QUE RI – O filósofo grego Demócrito de Abdera (460-370aC), tratou acerca da ética e da
physis, cujo estudo caracterizava os pré-socráticos, e foi o maior expoente da
teoria atômica, De acordo com essa teoria, tudo o que existe é composto por
elementos indivisíveis chamados átomos (do grego, "a", negação
e "tomo", divisível. Átomo= indivisível), e avançou
também o conceito de um universo infinito, onde existem muitos outros mundos
como o nosso. Para ele, o cosmos
(o Universo e tudo o que nele existe) é formado por um turbilhão de infinitos átomos de diversos formatos que jorram ao
acaso e se chocam. Com o tempo, alguns se unem por suas características (às
vezes, as formas dos átomos coincidentemente se encaixam tão bem como peças de
quebra-cabeça) e muitos outros se chocam sem formar nada (porque as formas não
se encaixam ou se encaixam fracamente). Dessa maneira, alguns conjuntos de
átomos que se aglomeram tomam consistência e formam todas as coisas que
conhecemos, que depois se dissolvem no mesmo movimento turbilhonar dos átomos
do qual surgiram. Da sua obra destaco: Muitas
vezes ouvi dizer que não pode existir nenhum bom poeta sem entusiasmo da alma e
sem um sopro como que de loucura. Tudo o que ele escreve com entusiasmo e sopro
sagrado é, sem dúvida, belo. Homero, porque recebeu uma natureza divina,
construiu uma estrutura ordenada de versos variados, uma vez que não seria
possível sem uma natureza divina e demônica realizar versos tão sábios e belos.
[...] A união sexual é uma pequena apoplexia,
pois o homem sai do homem e dele se arranca apartando-se como que por um golpe.
A natureza e a instrução são semelhantes, pois a instrução transforma o homem,
mas, transformando-o, cria-lhe a natureza. Quem ouvir de mim estas sentenças
com inteligência, realizará muitos atos dignos de um homem e não realizará
muitos atos vis. Quem escolhe os bens
da alma, escolhe os divinos; quem escolhe os do corpo, escolhe os humanos. É
belo opor obstáculo a quem comete injustiça; senão, não de participar da injustiça
dele. É preciso ou ser bom ou imitar quem o é. Não é pelo corpo, bem pela
riqueza que os homens são felizes, mas pela retidão e muita sabedoria. Não por
medo, mas por dever, evitai os erros. Coisa grande é, mesmo no infortúnio,
pensar naquilo que é preciso. Arrependimento de atos vergonhosos é salvação da
vida. Quem comete injustiça é mais infeliz que o que sofre injustiça. É
magnanimidade suportar com doçura a falta de tato. Ceder à lei, ao chefe e ao
mais sábio é por-se em seu lugar. À censura dos maus o homem bom não dá
atenção. É duro ser governado por um inferior. Quem fosse totalmente submisso
ao dinheiro jamais poderia ser justo. Para a persuasão a palavra frequentemente
é mais forte que o ouro. Quem adverte aquele que pensa ser inteligente, trabalha
em vão. Muitos, sem ter aprendido a razão, vivem segundo a razão. Veja mais
aqui, aqui e aqui.
A
PRISÃO DE SÃO BENEDITO –
No livro A prisão de São Benedito e
outras histórias (Bagaço, 1991), do escritor Luiz Berto, destaco o conto homônimo: Numa das reuniões da Diretoria do Clube do Jaguara, acertou−se que a Coréia
estava precisada de uma festa. O Jaguara funcionava num salão amplo do Alto do Lenhador,
onde está localizada a Coréia, a chamada
zona do meretrício. Por via disso, o Jaguara era o clube das putas e, em consequência,
o mais animado do carnaval. O seu bloco, com um jacaré imenso em cima do carro alegórico,
ganhava, de longe, em beleza e alegria dos outros blocos de Palmares, quando invadia
as ruas da cidade nos dias de carnaval. Era de se ver o negro ZéMaria, todo vestido
de branco, a comandar o abre−alas, com seu apito e o bastão colorido nas mãos. Compondo
a onda, a turma que vinha à frente do carro alegórico, se destacava a elite da Coréia,
todos com camiseta listrada de encarnado−branco, calça comprida branca, sapato Conga
azul e boné branco de marinheiro, além do lança−perfume na mão: Aranha, Vaca Braba,
Amara Brotinho, Odete, Amara Pé−de−Pato, Maria do Sinal, Elza Macho, Zefa Chupona,
Luiz Cabeção, Pentelho−de−Burro, além de Dona Maçu e os negrinhos da família Piabinha.
Quando a orquestra soprava Vassourinhas, o calçamento da rua era pouco para conter
o frevo sublime esparramado por tão habilidosos dançarinos. Eu acho que o mundo
se acaba e a gente não torna a ver coisa mais bonita. Então, eu dizia, a Diretoria
deliberou que a Coréia, além do Jaguara, devia ter também a sua festa. Os ferroviários
tinham a sua Santa Luzia; o povo das Pedreiras fazia a novena de São Sebastião;
Santo Amaro, na praça de mesmo nome, era venerado pela gente do Matadouro; Nossa
Senhora da Conceição, padroeira e madrinha, abençoava a cidade em sua festa no Centro.
Isso sem contar São Pedro, Santo Antônio e São João, ricamente festejados no meio
do ano. Até Água Preta, pois sim, exaltava com uma festa das melhores o seu milagroso
São José da Agonia. Dia de Reis em Catende, nem se fala. Só na Coréia não se tinha
festa. Invenção de Seu Luiz, Amaro Quirino e Zé Maria, diretores do Jaguara, a festa
da Coréia tomou embalo de pronto e mobilizou os homens de bem e as pessoas gradas.
A Banda 15 de Novembro saiu anunciando pelas ruas e, no dia marcado, a alvorada
festiva cobriu de fumaça o Alto do Lenhador com os fogos de Pimpão. De manhã as
mulheres−damas, qual colegiais enxeridas, participaram com alvoroço da corrida no
saco, da corrida do ovo na colher e da corrida de velocidade. Houve muito barulho
no jogo de quebra−panela, e as barracas de jogos de azar começaram cedo a arrancar
dinheiro dos viciados. À tarde, a sensação ficou por conta do cabo−de−guerra, disputa
animadíssima envolvendo séria rivalidade entre os funcionários da Rede Ferroviária
e os trabalhadores dos abatedouros de gado bovino do Matadouro. Era a Turma do Óleo
contra a Turma do Sangue. Calção vermelho e camiseta branca, a Turma do Sangue se
abastecia de cachaça e cerveja desde as primeiras horas da manhã, cercada e incentivada
por um lote de putas assanhadas. Os homens da Turma do Óleo vestiam calção preto
e camiseta branca, e também desfilavam, atletas musculosos, cercados de raparigas,
prometendo até a morte para chegar à vitória. No bilhar de Paizinho, as mesas de
sinuca foram recolhidas, e um barulhento fuá propiciou o grande baile da festa.
A orquestra, uma sanfona, um triângulo e um tambor de borracha, tocou, de manhã
à noite, com pequenos intervalos para a rodada do pires na hora da cobrança da cota
aos cavalheiros. A tantas ia a festa, animada e respeitável, que pouca gente prestou
atenção na capela armada ao lado do jardim. Capela modesta mas decente, montada
a tala de bambu, coberta de folhas e cheia de velas acesas. Como toda festa de rua
que se preza, também esta tinha seu santo. Lá estava ele de mãos postas: um São
Benedito de olhos grandes, velando pela alegria da Zona. Santo pretinho e humilde
como a desprezada população da Coréia. As mulheres se benziam reverentes, e os homens,
antes de entornarem a aguardente goela adentro, jogavam um tiquinho "pro santo".
Festa sem santo, como é de lei, não é festa. E a da Coréia tinha o seu padroeiro
majestoso e entronizado, milagroso e vigilante, levando o consolo da fé àquele antro
de perdição. Mas, alegria de mundiça é curta, e a nação de gente enredeira, moralista,
cresce em qualquer canto. Pessoas existem que sentem raiva dos prazeres dos humildes,
dos perseguidos e dos marginalizados. Tantofuxicaram, que levaram aos ouvidos do
padre aquela presença invulgar na Coréia: São Benedito velando festa de zona. Vá
lá que seja preto, mas não é motivo para tanto. Além do mais, não tinha sido nem
benzido, conforme manda o regulamento canônico. Compraram a imagem na livraria de
Manoel Pezão e ela foi direto da vitrine para a capela. Na maior calada. Além do
mais, uma capela que era puro deboche: taliscas de bambu, folhas de bananeiras,
ramos de laranjeira. E por aí vai. Reclamavam as beatas dos homens de família que
prestigiavam a festa e subiam a ladeira para beber com as raparigas. Mau exemplo
que devia ser reprimido com energia. E o despropósito chegava ao auge, fazendo a
banda tocar pelas ruas de família, anunciando a festa da Zona. Pois sim, senhor,
uma putaria como poucas! O padre não era de deixar serviço para depois. Velava e
defendia seu rebanho como já não fazem os padres de hoje em dia. Santo e piedoso
homem que tomava torrado e dava cascudos nos meninos na procissão. Entrou em contato
com as autoridades competentes e arrancou do Poder Judiciário o indispensável mandado,
que foi entregue ao Delegado. Tudo dentro da Lei. A autoridade policial designou
a patrulha, e esta, brava e ciosa, subiu a ladeira para fazer voltar ao caminho
do bom senso tão enxerido santo. –Os homens tão subindo! A multidão se inquietou,
mas relaxou de pronto quando os soldados se dirigiram à capela. Ao invés de raiva,
o povo se viu tomado por uma súbita vontade de rir. Uma sonora gargalhada tomou
conta da Coréia, passou pelo Beco do Esconde−Negro, Rua do Limão, desceu pela Ladeira
da Viração e invadiu Palmares. Riam-se do santo, preso e escoltado. Os soldados
também se divertiam e a multidão esculhambava o santo. –Eita neguinho, vai dormir
no xilindró. – Bem feito, já se viu santo na zona... E a procissão desceu a ladeira,
os soldados com o santo à frente, até a porta da Delegacia. E o episódio, que deveria
passar por discreto, tomou conta do mundo e atraiu até repórteres dos jornais do
Recife. A cidade dividiu−se, e a intimidade do santo foi devassada. Contava−se das
estrepolias que ele teria feito em vida, antes de ascender aos céus. Circulou uma
história sobre uma rapariga que ele teria tido na Bahia, até que alguém lembrou
que, apesar de preto, ele era santo estrangeiro. Os racistas se aproveitavam: −Só
podia ser preto! Do episódio, restou a glosa de Abel Fraga, saudoso frequentador
da Coréia, que imortalizou a prisão com o seu mote: Prenderam São Benedito / Por
frequentar a Coréia. Guardo o original que ele me passou com sua caligrafia rebuscada,
aprendida no começo do século: O povo ficou aflito / Por uma simples asneira / Por
essa ação corriqueira / Prenderam São Benedito / Estava tudo contrito / Mas por
estar na Coréia / Fizeram uma má idéia / Mas era boa a intenção / Só fizeram essa
prisão / Por frequentar a Coréia. Apesar de ser bendito / E ser tão conceituado
/ Desceu do alto escoltado / Prenderam São Benedito / Não foi um gesto bonito /
Nessa infeliz odisseia / Nem nos tempos de Pompéia / Viu−se tamanho pecado: / Um
santo trancafiado / Por frequentar a Coréia. Veja mais aqui e aqui
CORPO PORTÁTIL – No livro Corpo portátil (Escrituras, 2002), do poeta e professor Fernando Fabio Fiorese Furtado, destaco
inicialmente o poema Pin-up sobre fundo vermelho: Para abolir o álibi, / as pernas refluem da sombra / ao olhar: corpo
rendido / por um deus inútil. / Sur le mur mentira cette affiche: / nem
descuido, nem artificio, / apenas um mito imóvel. / Nenhum pormenor esconde, /
nada entre o olho e o horizonte / senão a demasia das unhas. Também O autor
quando jovem: Embora a mímica aborreça /
e mintam as testemunhas / e o que inquieta o objeto / o outro mal começava /
nas dobras do processo. / Como um assassino suave / ainda ostenta o que vai
morrer. / Se o braço esquerdo descuida, / escreve sobre o corpo / a cifra de
toda ficção. Por fim, o poema O corpo e as cidades: De quantas cidades estive / (e não digo as que de passagem, / guardei
apenas uma rubrica / e o rumor do jornal dormido, / nem aquelas em livro
escritas / ou contrabando dos amigos, / em cartões postais e souvenirs) / pouca
vestiram este corpo / camisa feita de encomenda, / sem rugas, penses, rebordos.
Veja mais aqui, aqui e aqui.
A COMÉDIA - Na obra Teatro Vivo (Civita, 1976), organizada por Sábato Magaldi, encontro
que: Originada da parte mais alegre do
ditirambo – o cântico improvisado das primitivas procissões dionisíacas – a
comédia encerrava os festivais atenienses mostrando aos espectadores que o
teatro é uma grande brincadeira. Os gregos associavam a comédia a personagens
ridículas representadas como pessoas absurdas e ofensivas. Apresentada como uma
forma burlesca da tragédia que a precedera, a comedia nem por isso deixava de
dirigir criticas mordazes às instituições e às pessoas notáveis. Os próprios
deuses eram objeto da sua contundente jocosidade. Quando entraram em contato
com os gregos, os romanos ficaram particularmente encantados com as divertidas
possibilidades que os comediógrafos ofereciam para distrair patrícios e plebeus.
Mas antes de adotar o gênero, tiveram o cuidado de apagar dele qualquer traço
político ou religioso, encampando o que as comedias tinham de mais secular e
lúdico. Assim, às contundentes ironias políticas de Aristófanes, preferiram
seguir o exemplo das sátiras de Menandro (342-291aC), mais elegante e com
marcada preferencia por temas individuais – problemas familiares e amorosos,
aventuras de tristes crianças abandonadas e reencontros românticos. Veja
mais aqui e aqui.
IN THE CUTE – O filme de suspense In the cut (Em carne viva, 2003),
dirigido de forma delicada por Jane
Campion, com roteiro da diretora e de Susanna Moore, também autora do livro
que originou o filme, contando a história de uma professora solitária que
inicia um relacionamento com um detetive que investiga um assassinato ocorrido
na vizinhança, sendo que o relacionamento de ambos aos poucos toma rumos cada
vez mais sombrios. Aí, uma escritora vê-se em meio a uma trama que envolve sua
irmã e um psicopata que corta suas vítimas em pedaços. No filme o destaque vai
para a belíssima atriz estadunidense Meg
Ryan. Veja mais aqui.
IMAGEM DO DIA
A arte do fotógrafo estadunidense Alfred Eisenstaedt (1898-1995).
DEDICATÓRIA
A edição de hoje é dedicada ao Dia
Nacional de Mobilização dos Homens pelo Fim da Violência Contra a Mulher