VAMOS
APRUMAR A CONVERSA? ALÔ, ALÔ RECIFE, TÔ CHEGANDO! – Chegaram as férias e como eu sou que
nem cantiga de grilo, pensei dar um pulo em Belô, mas lá a coisa está tão
embaçada, tão mais pra Mariana, que se Valdick fosse vivo, cantava o seu
cachorro assim: Eu não sou Aécio não pra
viver tão humilhado, eu não sou Aécio não pra ser tão desprezível. E pra
quem achou que eu estava destruído, pra lá de aniquilado, rasgou a boca. Eu
estou é com o caçuá entupidinho com repertorio de Chico: trocando em miúdos o
que sobrou do grande amor. É que a Rita sumiu, Januária se mudou e Terezinha
foi-se com os três, só sobrou eu pra apagar a luz e me enforcar com as últimas
tripas que sobraram do restinho do meu coração. Depois de morto morrido e
matado na marra, na base do sacudido e pesunhado, deu-se a gota d’água: uma
herança carregada de dívidas e mágoas mútuas. Eita! Mas isso não sou eu, parece
mais Brasília, ou o que vai sobrar dela. Pois é, tá faltando vaqueiro com aboio
direito, porque a manada pra lá está pior que corda de guaiamum. E pelo andar
da carruagem, vai findar nocaute coletivo. Eu mesmo estou esperando a poeira
baixar pra ver quem vai ficar de pé, pois periga cair o rei de espadas, o rei
de paus, o rei de ouros, cai tudo de não ficar mais nada. Melhor que entregar o
premio da vitória a quem não merecia sequer ter existido. Eu mesmo tô me
guardando pra quando o carnaval chegar. A gente vai levando. Alô, alô, Recife! Tô
que nem Arraes: voltando. Para quem estava liso de Jó, agora passo troco. Pra
quem me viu tatu, não sabe que enxergo no breu, hé-hé. Parti pra outra, ora! Agora
não abro nem prum trem, quer saber? Nunca cuspa no defunto, vai que ele
ressuscita e o arrependimento deixa um gosto de última palavra. Alô, alô
chicólatras, tô na área pedindo passagem, afinando a goela, ô abre alas, os
dedos afiados pro pinho, e mandar ver na frevança até o dia clarear. E vamos
aprumar a conversa aqui.
Imagem: A ilha do cão (1941 – óleo sobre tela), do encenador, escritor e
artista plástico português António Pedro
(1909-1966)
Tinha
cá pra mim
Que
agora sim
Eu
vivia enfim o grande amor
Mentira
Me
atirei assim
De
trampolim
Fui
até o fim um amador
Passava
um verão
A
água e pão
Dava
o meu quinhão pro grande amor
Mentira
Eu
botava a mão
No
fogo então
Com
meu coração de fiador
Hoje
eu tenho apenas uma pedra no meu peito
Exijo
respeito, não sou mais um sonhador
Chego
a mudar de calçada
Quando
aparece uma flor
E
dou risada do grande amor
Mentira
Fui
muito fiel
Comprei
anel
Botei
no papel o grande amor
Mentira
Reservei
hotel
Sarapatel
E
lua-de-mel em Salvador
Fui
rezar na Sé
Pra
São José
Que
eu levava fé no grande amor
Mentira
Fiz
promessa até
Pra
Oxumaré
De
subir a pé o Redentor
Hoje
eu tenho apenas uma pedra no meu peito
Exijo
respeito, não sou mais um sonhador
Chego
a mudar de calçada
Quando
aparece uma flor
E
dou risada do grande amor
Mentira
Curtindo o álbum Chico Buarque (Polygram, 1984), do cantor, compositor, escritor e
dramaturgo Chico Buarque.
A
PEDRA DE ROSETA – No
livro O Egito dos faraós (Otto
Pierre, 1976), de Jean-Marc Brissaud, encontro o relato acerca da Pedra de
Roseta que é um fragmento de uma estala de granodiorito do Egito antigo com
textos cruciais para entendimento do hieróglifos egípcios. Do relato destaco o
trecho: A 15 de julho de 1799, circula no
Cairo o rumor de que havia sido feita uma curiosa descoberta na pequena cidade
costeira de Roseta, na embocadura do Nilo ocidental, no Mediterrâneo. O capitão
Bouchard, um oficial de engenharia de 27 anos, recebe, das mãos dos
trabalhadores que edificavam um fortum, um fragmento de basalto negro, com um
metro de comprimento e cerca de setenta centímetros de largura. A 19 de julho,
os sábios reunidos no Instituto do Cairo ouvem a seguinte declaração: “O
cidadão Lancret, membro do Instituto, informa que o cidadão Bouchard, oficial
de engenharia, descobriu, na cidade de Roseta, inscrições cujo exame pode
oferecer muito interesse. A pedra negra que traz as inscrições está dividida em
três faixas horizontais; a inferior contem várias linhas de caracteres gregos
que foram gravados sob o reinado de Ptolomeu Filopátor; a segunda inscrição está
escrita em caracteres desconhecidos e a terceira, em caracteres hieroglíficos”.
A língua desconhecida era o demótico, falado no Egito na época greco-romana. Um
padre de origem grega, membro da expedição francesa, Raphaël de Monachis,
descobriu, nas primeiras cópias dos textos da pedra, os nomes de Zeus e de
Ptolomeu. Ele decifrou a estela na qual estava escrito um decreto estabelecido
no ano de 196aC., pelos sacerdotes egípcios em honra de Ptolomeu Epífano.
Orgulho dos sábios franceses do Egito, a pedra de Roseta foi tomada pelos
ingleses por ocasião da capitulação do verão de 1801. Ele é hoje um dos
ornamentos do British Museum. Felizmente, inúmeros moldes foram levados para a
França. Le Courrier de l’Egypte, jornal do corpo expedicionário, relata a descoberta
em seu número de 29 de frutidor do ano VII (15 de setembro de 1799), anunciando
que iria ser utilizada brevemente para a leitura dos hieróglifos. No entanto,
seria preciso esperar 25 anos para que Champollion soubesse decifrar a escrita
dos antigos egípcios. Conta-se que, por uma coincidência notável, o artigo do
Courrier de l’Egypte chegou até a casa de Champollion. Veja mais aqui.
O
INICIADO DO VENTO – No
livro O menino e o vento (1967 –
Cadernos de João – José Olympio, 2004), do escritor, professor e dramaturgo Aníbal
Machado (1894-1964), destaco o conto O iniciado do vento: Quem poderá dizer que amanhã mesmo aquele
passageiro não esteja na manchete principal dos jornais como herói dos
acontecimentos que o levam à cidadezinha de…no alto da serra. A locomotiva
ofegava entre margens de bananeiras. O passageiro abandonou o jornal, deixou
cair as folhas. Lera os crimes de outros, passaria em breve o seu… crime. Baixou
os olhos: na folha esvoaçante, as fotografias de um punguista e de um cáften
expulso. Amanhã seria a sua fotografia… Lançada que fosse a notícia aos quatro
ventos, não adiantava mais restabelecer a verdade, gritar sua inocência. A que
ficará reduzido depois da provocação da publicidade, depois do temporal? No
momento – pior que a revolta contra a injustiça – era o sentimento de pudor
ferido, de invasão do seu silêncio. Olhou pela janela: ainda faltavam duas
estações. Mais inquieto agora, quase chorando, disse adeus ao futuro… a certa
imagem de seu futuro que insistia nos sonhos da mocidade. Estava escuro. Pelo
vento que viera ao encontro do comboio e o envolvia num turbilhão,
pressentia-se próxima a cidade. O viajante não reconhecia nesse vento o mesmo
que soprava naquelas altitudes quando, concluída a ponte, buscara a estância de
repouso levando ainda nos ouvidos o barulho do concreto a despejar-se nos
caixões, e o rumor suave da correnteza na aresta dos pilares. Fora um trabalho
arrasador; meses e meses ao sol, com os operários; e à noite, dentro da
barraca, os cálculos no papel; a conversa com os trabalhadores; depois, os
cigarros, a insônia, e a leitura até alta madrugada, – vício a que não sabia
resistir. Afinal, a obra fora inaugurada dentro do prazo. E era uma bela ponte,
ele próprio o reconhecia. Gente e mercadorias já deviam estar transitando entre
as duas margens. Antes assim. Um pensamento amargo tirava-lhe porém o gosto
dessa evocação: ia desembarcar não mais na capital do vento, senão numa cidade
irreconhecível, cabeça de camarca e sede da administração da Justiça. Perante
esta fora intimado a comparecer para ser interrogado. O processo correra até
então à sua revelia. Seria mesmo crime o que praticara? Os homens inventam
leis, modificam à vontade os códigos. Como saber o momento preciso em que os
nossos atos passam da inocência ao crime, se a gente não distingue bem a
linha divisória. – Serei mesmo um criminoso? A imagem do desaparecido sorria-lhe
de longe, como que respondendo. Mal se ouvira o apito do trem, a multidão que
se deixara ficar até tarde da noite na praça encaminhou-se para a estação,
enquanto o alto-falante anunciava: “Aproxima-se com o atraso habitual o trem
que vem conduzindo a esta cidade o engenheiro José Roberto, o qual será
interrogado amanhã pelo crime de que é acusado. O meretíssimo Juiz da Comarca
recomenda a todos que se mantenham calmos, respeitando a pessoa do acusado e
aguardando a decisão serena da Justiça.” Embora sede de comarca, era tão
pequena a cidade que um grito ou gargalhada forte a atravessavam de ponta a
ponta. Assim, não seria exagero supor que toda a população se achava reunida
ali, àquela hora. Ao aviso do microfone, as mães apanharam as crianças
adormecidas na grama do jardim, e se aproximaram da Estação. No cinema, o
público, trocando o final de um filme sonolento pela chegada do engenheiro,
abandonou a sala de projeção e se dirigiu para a sacada do prédio. Dali
apreciaria melhor a passagem do acusado. Os coqueiros da praça ainda se
mantinham imóveis. Mesmo que começasse a ventar, nã era razão para que as
famílias se recolhessem, insensíveis que eram, de tão habituadas, àquele vento
famoso. A pequena locomotiva foi entrando mais devagar, como convinha, batendo
demais o seu sino. Era uma máquina antiga, e meio cômica quando apitava com
estridência desproporcionada ao seu tamanho. A autoridade a todos que se
afastassem. Cada qual queria ser o primeiro a ver a cara do engenheiro. Este,
calmo e alto, surgiu na plataforma do vagão. Não sabia que viajara com algum
personagem importante; mas logo, pela convergência geral dos olhares em sua
pessoa, compreendeu tudo. E empalideceu. Alguém teria dado o aviso de sua
chegada. Houve o silêncio de alguns instantes para a “tomada” de sua figura; em
seguida, rompeu um murmúrio indistinto mas hostil, cortado pelas sílabas
tônicas de alguns palavrões conhecidos, se não de palavrões sussurrados por
inteiro. – Para o Hotel Bela Vista? Interrogou o delegado. – Sim, respondeu o
acusado numa voz firme que reconheceu não ser a sua. Ao passar pela ala das
moças, uma delas não se conteve: – Ah, ele é bonito! Exclamou. E depressa,
arrependida, tapou a boca com a mão. Alguns o tinham visto, meses atrás, sem
lhe guardarem bem a fisionomia. Era então, como tantos outros, um veranista de
passagem. Agora, não. Vinha com a auréola do crime, ligado àquela terra por um
processo judiciário, por um escândalo. Os moleques tinham combinado uma vaia
com busca-pés que o perseguiam durante o trajeto até o Hotel. Maltrapilhos e
abandonados, brigavam sempre entre si, mas o fato de ter sido um deles a
vítima, unia-os agora no ódio comum ao engenheiro. Disso tirou partido o
próprio escrivão do crime com a parcialidade que a população aplaudia, e que o
juiz da Comarca, severo, mas sempre alto e distante no desempenho de suas
funções, ignorava. De tal juiz se dizia que era bom demais para aquele burgo.
Seu vulto, seu saber e dignidade moral, suas nobres maneiras estavam a indicar-lhe
o aproveitamento nalgum Tribunal superior, a que presidisse com beca romana e
frases latinas. Nunca porém o quiseram elevar àquelas cumeadas. Sempre elogios,
jamais a promoção. A política negava justiça a quem melhor a distribuía. Era
voz geral que, desgostoso, pedira contagem de tempo para aposentadoria. Mediante
manobras mesquinhas que escapavam aos olhos do juiz sempre voltados para o mais
alto e o mais longe, o seu esperto escrivão conseguiria prestígio e se fazia
temido na cidade. Conduzia os processos, influía nas testemunhas. A vida e a
liberdade de uma gente estavam em suas mãos – sobretudo agora, com um promotor
sentimental, sempre no sítio do fazendeiro, por cuja filha se apaixonara. Por
artes do escrivão, fora desrespeitada a recomendação de se preservar a pessoa
do réu. O engenheiro vai subindo a ladeira entre busca-pés que lhe passam
raspando pelas pernas. O hotel apresentava-se iluminado, todas as vidraças
abertas. Parte da população, apenas curiosa, seguia o hóspede a certa
distância. As famílias retiravam-se, enquanto as janelas começavam a se fechar
para a ventania que não tardava. Queimados os últimos busca-pés, os moleques
transformaram o resto da noite em passeata carnavalesca, esquecidos do colega
morto e de seu indignado assassino. A este reservara a hoteleira o mesmo quarto
onde hospedara a primeira vez, dando vista para o cemitério e para a colina
fatal onde a vítima desaparecera para sempre. Já o vento corria forte. Mas o
engenheiro evitava qualquer pensamento ou evocação que não se prendesse à sua
defesa. A maneira como o receberam era um aviso. Agora que se fechara no
quarto, sentia o quanto lhe perigava a liberdade. Sentado numa poltrona roída,
perplexo diante do absurdo, fumava sem parar e pensava no que devia fazer. Às
vezes, uma onda maior de revolta cobria o seu caso pessoal, ia alcançar os
fundamentos da sociedade e da condição humana em geral, o que lhe produzia
certa embriaguez momentânea em que se reconhecia profeta e vociferador. Chegava
a achar-se cômico nessa vertigem, mas não queria nem podia perder-se em
divagações: o caso concreto estava ali, como a ponta de um punhal
aproximando-se de seu coração. Amanhã mesmo se acharia perante a Justiça, de
seus olhos vendados, de sua cara falsa e fria. Enquanto fazia essas amargas
reflexões, o vento não cessava um minuto de empurrar as venezianas, como que
forçado a entrada. Pelo que dele escapava nas frestas-lâminas frias, finas –
podia o engenheiro imaginar-lhe o ímpeto veloz e a noturna impaciência. Uma
pancada suave na porta, e aparece a dona do hotel. Pousa no hóspede os olhos
calmos e negros. A corrente de ar do corredor, entrando pelo quarto,
agita ao mesmo tempo os cabelos da mulher e o cortinado das janelas. Vem com a
bandeja. Traz chá e frutas. – O senhor deve estar lembrado de mim. – Sim, como
não? – Vinte e tantos dias o senhor foi meu hóspede, não é verdade? Colocou a
bandeja na mesa. O engenheiro permanecia silencioso. A mulher dá um jeito ao
travesseiro, passa o pano pelo aparador. – É bom ir tomando antes que esfrie. Reclina
o corpo para firmar o trinco de uma veneziana, o que faz com propositada
lentidão. – Foi pena ter acontecido aquilo… A hoteleira não leva a mal o
mutismo do hóspede. Estava triste e preocupado, era natural. Relanceou o
aposento. Não encontrou mais nenhum pretexto que a fizesse demorar ali por mais
tempo. Ao sair, lembrou-se de dizer: – Há um advogado lá embaixo, na sala,
querendo falar-lhe. A estas palavras, o engenheiro acordou de sua cisma: –
Hein?… Faça-o subir, tenha a bondade. – Tome chá antes. O senhor deve estar
fatigado. Se precisar de mim é só apertar o botão. Disse e retirou-se, deixando
atrás, a relembrá-la, um perfume insinuativo. O advogado entrou ofegante. A
porta bateu-lhe atrás com estrondo. Vinha oferecer os seus serviços profissionais.
Ali, naquela terra, tirante o juiz, “fique certo seu doutor, ninguém mais
presta, nem eu mesmo!” disse com ênfase, batendo no peito. – Sou um homem
acabado… Minha mulher fugiu, meu filho não dá notícias. Desde estudante, com a
graça de Deus, fui sempre uma criatura… Ouviu-se nesse momento um grito lá
fora: – Morra o criminoso! O causídico interrogou o relato de sua vida para
dizer: – Está ouvindo?!… Não se fala em outra coisa na rua. Acho imprudência o
senhor sair hoje. – A que horas o interrogatório? Perguntou calmamente o
engenheiro. – Ah, pois não! Três da tarde, no edifício do Foro, segundo andar,
sala de audiências. Com a cara quase encostada à do engenheiro, foi-lhe
segredando aos ouvidos, na sua linguagem profissional: – O processo é um amontoado
de infâmias e incongruências. A denúncia apóia-se em indícios fracos. E o
cadáver que foi visto descendo o ribeirão nas divisas do Município, dez dias
depois, era um jovem de cor branca, não podia ser do Zeca da Curva. Não se
atemorize. Havemos de pulverizar as testemunhas. Ao sentir-lhe o hábito de
sarro de charuto e cerveja, o engenheiro recuou. – Há testemunhas? Perguntou. –
A principal o senhor conhece. – Como? – Trouxe-lhe o chá ainda há pouco. Acabou
de sair deste quarto. O engenheiro não deixou transparecer por palavras o seu
pasmo; apenas pela expressão do olhar e um ligeiro tremor de ombros.
Aproximando-se, o advogado relanceou a porta e disse baixinho: – Ela é
influenciada pelo escrivão que lhe salvou o hotel de uma falência. Dizem que é
séria, não sei. Duvido… O que se murmura por aí, à boca pequena, é que ele tem
uma paixão secreta por ela. Criatura má… Veja o que fez comigo: quase duas
horas me deixou lá embaixo na sala, com esse frio! Esquisitíssima! Não está
ouvindo o piano? Pois é ela.. Não há hóspede que aguente. Ficou assim desde que
perdeu o marido… Mas vamos ao principal: meus honorários não são de assustar.
Prefere negar o crime ou alegar algum dirigi-me? – Não houve crime! Exclama o
engenheiro. – Sim; compreendo… – disse o bacharel com cínica reticência. –
Também era o que faltava se o senhor fosse confessar o crime… Mas comigo, em
particular, o senhor poderá abrir-se. É segredo profissional, saberei
guarda-lo. Perante o júri, sim, dede negar o fato. Dirá, por exemplo, que não
conhecia o menino… – Mas eu conheci o menino! Privei com ele durante vinte
dias. – E o lado sexual?! Pergunta o advogado. – Que lado sexual?! Exclama o
engenheiro levantando-se com ímpeto. – Está no processo. Se não me engano, no
depoimento de madama… – Que madama? – A que lhe trouxe o chá, e está tocando
piano. – Vamos chama-la! O advogado mexeu-se na cadeira, reacendeu o charuto.
Com esse gesto, despedia-se do ar subserviente com que entrara. Entre baforadas
ressurgiu o profissional desembaraçado e loquaz. – Quer um conselho? Não o
faça. O escrivão deve estar lá embaixo. Visita-a quase todas as noites. É um
homem perigoso, simulador. Servil ou autoritário, conforme a conveniência.
Deixemos para esclarecer tudo em juízo. Ao que consta, essa mulher tem paixão por
outra pessoa. – Não me interessa… – Conforme. Se essa pessoa é o próprio
denunciado, convém tomar o caso em consideração. – Por mim?!… – Sim. E talvez o
senhor nem tenha percebido. Está-se vendo que é muito jovem, ainda não tem
experiência. Se quiser passar agora a procuração… – Não. Eu me defendo sozinho.
– Sozinho! Exclamou o advogado. E ainda desse jeito, confessando tudo!… Ah, meu
caro, não brinque com a Justiça… Está muito moço para suicidar-se. Chegou à
janela e olhando para a noite, começou a dizer: – Ninguém faz ideia do que seja
a cadeia desta cidade! Ali não entra luz, a água mina das paredes. Venta noite
e dia! Ali só os ratos e vermes são felizes!… Era uma advertência que o
engenheiro achou declamatória e extemporânea. Pediu desculpas ao advogado,
estava cansado, precisava dormir, amanhã lhe diria qualquer coisa. – Mas
defenda-se, disse o bacharel despedindo-se com uma emoção que o hóspede não
ficou sabendo se era sincera ou simulada. Mergulhou o rosto no travesseiro.
Estava quase a soluçar. Lá fora o vento guaiava. Era agora um vento de tipo
retórico e banal, o que corre em toda parte sem a menor afinidade com o outro,
que era todo malícia, mocidade, fecundação. A discriminação gratuita entre as
duas famílias de vento prendia-se no espírito do engenheiro às impressões
deprimentes da chegada. Vestido como estava, dormiu. Acordou antes da cidade.
Abriu a janela. No lusco-fusco da madrugada, a cidadezinha era um amontoado
triste de casas. Despertada dentro de algumas horas, ela começaria a desprender
seus venenos, faria andar seu aparelho de compressão. Já decidira o engenheiro
o que ia fazer: tudo confessar, nada esconder. Que sabia da Lei? Nada. Que sabia
do fato? Tudo! Batem à porta, a hoteleira apresenta-se. Pálida, contrafeita, os
olhos quebrados pela insônia. – Desculpe-me. Vim eu mesma trazer o café. Essas
criadas de hoje não se pode confiar nelas. Quebram tudo, servem mal os
hóspedes. O piano o incomodou? – Não, minha senhora. – Fiz o possível para
tocar baixinho, fechei as portas. É a minha reza da noite. Não posso deitar-me
sem tocar nem que seja um pouco. Já tenho perdido hóspedes por causa disso.
Esta noite pensei muito no senhor. O engenheiro não sabia como definir as
intenções daquela mulher. Impressionado embora com as palavras do advogado,
sentiu que era preciso resistir à doçura de maneiras com que ela procurava
envolve-lo. Manteve-se num silêncio cauteloso, cortado apenas por monossílabos
de estrita deferência. A mulher olhava para o retrato colocado sobre a mesa de
cabeceira. – É a sua noiva? – É. – Eu também já fui moça feito ela. Os anos
correm tão depressa… Retirou da mesa a bandeja da véspera, colocou a nova,
cheia de frutas, queijo, pão e café recendente: – Convém alimentar-se bem. O
senhor vai ter o que fazer. Não há de ser nada. Essa gente aqui é muito má.
Felizmente nosso juiz… Já conhecia o advogado? – Vi-o ontem, pela primeira vez.
– Não se entregue a ele, é o que lhe aconselho. Vive de combinação com o
escrivão. Eu mesma… A mulher empalideceu, hesitou, deixou sair uma lágrima em
vez da confissão que parecia querer soltar. Abradou-se o ânimo duro do
engenheiro: – A senhora ia dizer que… – Nada… nada… – atalhou a mulher. Retirou
as rosas de uma jarra, atirou-as pela janela: – Veja só, murcharam depressa… A
audiência está marcada para as três horas, não é? Apanhou o roupão azul,
colocou-o no cabide: – Bonita cor, bom tecido. Cisrcunvagou a vista pelo
aposento: – É engraçado, quando entro para arrumar o quarto na ausência do
hóspede, eu sei logo se ele é velho ou moço, solteiro ou casado. Até o cheiro é
diferente… O engenheiro se mantinha mudo, na poltrona. – Não se preocupe, Nossa
Senhora há de lhe ajudar. É só não excitar o ânimo da população. O menino era
muito estimado. Se precisar de alguma coisa, pode me chamar. A porta de meu
quarto está sempre aberta… Ante a expressão calada do engenheiro, um ar de ódio
transfigurou o rosto da mulher: – No meu depoimento, eu só contei o que sabia… O
homem encarou a mulher. Estaria diante de uma criatura diabólica? Ou de alguma
incompreendida, disposta a queimar naquele hotel e lugarejo os anos maduros de
sua vida, como se a renovação dos hóspedes lhe diminuísse a solidão e tornasse
possível o encontro com alguém que de repente viesse mudar-lhe o destino? – Não
passa de uma megera! Pensou. Por um momento chegou a pressentir nela uma
possível aliada. Mas logo reagiu contra esse sentimento, receando novas
ciladas. A cidade ia dentro em pouco receber o vento; o sintoma era aquela
súbita imobilidade e anemia no céu. Já penetrava pelo quarto e fazia tudo
vibrar. Era o mesmo que o engenheiro conhecera ali, meses atrás, quando em
férias. Nada queria com ele, porém. Pelo menos por enquanto. Viera cuidar de sua
defesa, de sua liberdade. Precisava ter a cabeça fria. Aquela invasão brusca e
amistosa só vinha perturbá-lo. Veja-se o que acabou de fazer lá embaixo,
justamente no edifício do Foro, onde, dentro em pouco, ia proceder-se ao
interrogatório: soprou tão forte que quebrou a vidraça lateral, ferindo com os
estilhaços uma mulher e um ciclista. – Mandaram dizer para o senhor comparecer
às três horas, – veio informar um empregadinho que ficou a olhar para o
hóspede. Às três e um quarto o acusado entrou no Foro. Ali funcionavam várias
repartições municipais. Havia menos gente que na véspera, à sua chegada. Passou
por entre duas filas de curiosos. Relanceou a vista pela praça. Bastou um grito
que veio de longe e que, ouvido pela segunda vez, lhe parecia um slogan de vingança “eh, doutorzinho!
Chegou tua hora!”, para que tivesse a medida do ódio contra a sua pessoa. Parou
perplexo, com á espera de um guia. Suportou os olhares reunidos de quase toda a
Câmara Municipal, do Foro e da Coletoria, que tudo funcionava no mesmo prédio.
Era a condenação prévia. O oficial de justiça indicou-lhe a escada,
acompanhou-o até a sala de audiências. No trajeto entre o primeiro degrau de
pedra do saguão e o fim da escada, já no segundo andar, foi-se-lhe definindo na
alma, apertando-lhe o coração, um sentimento que até então não imaginava tão
atroz: o de ser renegado, o maldito. Para ele todo aquele aparato. O silêncio,
as caras fechadas, a troca de olhares oblíquos, as folhas de papel que mudavam
de mesa, o reabastecimento dos tinteiros, a campanha, o Cristo de madeira, as
idas e vindas do oficial de justiça e do advogado da véspera, os sussurros
deste aos ouvidos do escrivão, e uma risadinha geral subentendida, quando não
explícita, tudo contra ele, tudo para sua desgraça. Ao entrar o juiz, o
silêncio se fez maior. Aquele vulto alto e cansado, algo volumoso dentro da
roupa preta, trouxe-lhe certo alívio. Sem o querer, associou o trio
juiz-promotor-escrivão, já sentados à mesa sobre o estrado, à imagem das bancas
examinadoras mais exigentes do seu curso de engenharia. Como fazer com que sua
verdade tivesse mais poder do que a mentira armada com os aparelhos e o
cerimonial da justiça? O que aconteceu e precisava contar era, de sua natureza,
tão inverossímil que não seria compreendido pelo tribunal popular, caso o juiz
o mandasse a júri. Acabara de ouvir a leitura da denúncia. Homicida!… Será
possível? E, além de homicida, pervertido sexual! Assim dizia a denúncia do
promotor. Era como se o punhal estivesse perto, doendo-lhe já no corpo. Sentiu
necessidade imediata de dormir, escapar pelo sono. Mas reagiu. Tirou um
cigarro, acendeu-o rapidamente; o escrivão observou que não era permitido ali. A
sala foi-se enchendo. Todos, menos o juiz, o fixavam com interesse. O escrivão
olhava espantado para a assistência. Achava exagerado o número de moças no
reconto, fato inexplicável num simples interrogatório; e absurdo, irritante
mesmo, o tom de piedade que transparecia dos olhos delas. – Até agora não
constituiu advogado, nem quis ver o processo! Disse o escrivão aos ouvidos do
promotor. Será liquidado. Ou então é louco! O juiz ficara lendo num livro que
não se sabia bem se era a Bíblia ou o Código Penal. Quando finalmente levantou
para o acusado os olhos congestionados e calmos, não era, a bem dizer, para
enxergar nele a pessoa do engenheiro; era para o conhecimento de um caso a mais
que ia apreciar como magistrado. Com voz pausada, fez as perguntas de praxe. Ao
declarar o réu a sua idade, uma exclamação ao fundo da sala: “É uma criança!”,
suscitou um psiu! Do escrivão que se voltara irritado para o lado das moças. –
Tem alguma declaração a fazer? Perguntou o juiz. O denunciado respondeu que
sim. Ia contar tudo, sem mesmo saber se estava se acusando ou se defendendo.
Não lera o processo. E dispensara o advogado. Não por desprezo ao profissional
que o procurara na véspera; nem por desatenção à Justiça. Mas porque “o que vou
narrar a Vossa Senhoria, Sr. Juiz… – A Vossa Excelência, emendou o escrivão. –
…O que vou narrar a Vossa Excelência, Sr. Juiz, não poderia constar no
processo. Aqui uma nuvem escura envolveu-lhe o espírito. E quase toda a sala
desapareceu. Do escrivão sobrenadava a gravata vermelha, depois o rosto liso,
os olhos claros. A inibição do engenheiro foi demorada. E, para a própria
assistência, difícil de suportar. Perdido o impulso inicial que continha os
germens de tudo o que ia dizer, parecia-lhe haver soçobrado no momento mesmo de
salvar-se. Sentiu num átimo a alma danada do homem que forjicara o processo,
aquele tipo que agora o encara com sarcasmo. Só voltou a si, quando a voz do
Juiz: – Vamos! Pode continuar. Sua consciência ia-se turvando outra vez, quando
um novo “vamos!” do juiz o despertou. Ao fazer menção de prosseguir, a sala
experimentou certo alívio. Recomeçou a falar com uma calma que não sabia bem de
onde vinha. – “Senhor Juiz, o menino achava-se realmente comigo, no momento em
que desapareceu.” Houve um frêmito geral. Só o rosto do juiz não acusava a
menor alteração. “… Mas que eu o tenha matado ou me prevalecido dele para
torpezas, não é verdade, oh! Não é verdade! Vou contar tudo tal como se deu,
desde o momento infeliz em que desembarquei nesta cidade. Não sei o momento
infeliz em que desembarquei nesta cidade. Não sei se o que vou dizer significa
a minha defesa ou a minha acusação, mas é a expressão do que aconteceu. E o que
aconteceu, advogado nenhum saberá explicar. Talvez nem eu próprio. Eis a razão
por que o dispensei, embora Vossa Senhoria… Vossa excelência tivesse nomeado um
para me assistir no processo. Poderá alguém acusar-me; defender-me, impossível.
Porque o fato se deu: o menino está desparecido ou morto. Talvez eu tenha sido
cúmplice involuntário de uma tragédia. Mas se há no caso algum criminoso, esse
criminoso não pode ser responsabilizado. Oh! Impossível ser responsabilizado!
Impossível, Sr. Juiz. Só contando…” Houve uma pausa longa, aflitiva. Depois
começou a falar, como alguém que eu achasse sob estado de hipnose: “Senhor
Juiz, sou engenheiro construtor de pontes. Procuro viver de coisas positivas e,
tanto quanto possível, explicáveis. Não cultivo a atração do abismo. E o
absurdo me aborrece. Se de meus pais herdei certa tendência para o sonho, eles
próprios me preveniam contra as ciladas da imaginação. Também não sou amador de
fatos estranhos da vida, posto que sempre aconteçam. Já disse que sou
engenheiro e construtor de pontes. Sr. Juiz, há cerva de três meses
desembarquei nesta cidade em busca de repouso. Estava esgotado, precisava
refazer as forças. Desde criança, ouvira dizer que aqui ventava muito. E o nome
deste lugar ficara-me na memória ligado à ideia de vento, como o de outros
lugares à ideia de crime ou de tranquilidade colonial. “Durante a subida, não
pensava em outra coisa. Tanto assim que ao desembarcar, ainda um pouco
atordoado, interpelei logo o primeiro sujeito que se aproximou: – Onde o vento?
“Não preciso dizer que ele me deixou sem resposta; mas também não se espantou,
habituado que devia estar aos modos dessa gente que chega pela primeira vez à
montanha, ainda com os tiques e esquisitices da cidade. “Olhei em redor. As
árvores imóveis, a poeira no chão e, por cúmulo, abertas as vidraças. Então não
há vento algum, pensei. Era lenda. Ou talvez eu tenha descido numa hora de
calmaria. Podia não estar ventando no momento e ter ventado muito, antes. “Procurei
os vestígios. A iluminação escassa não me permitia um exame profundo. Pela
disposição das frondes próximas e na pele dos raros transeuntes talvez eu
pudesse descobrir sinais de sua fustigação constante. Não havia; ou, se havia,
era de difícil reconhecimento. Notei, é verdade, as pedras roídas nos
alicerces, e escoriações no reboco das paredes. Mas não era o suficiente. Foi
quando dei com as palmeiras. Aquelas que estão ali em frente, na praça.” Apontou
para fora, todos olharam. Depois prosseguiu. “Tudo então se esclareceu. Tinham
a copa entortada para o sueste; o tronco também. E cicatrizes de palmas
arrancadas. Vento, portanto. “Não me enganara. Era pois este lugar a capital do
vento. Ou pelo menos, uma cidade ventada. Enchi-me de alegria, vendo
confirmar-se minha expectativa. Até na figura do garoto que me esperava
segurando as malas – um menino de cabelos lisos, olhos espantados, pele
bronzeada, e uma mobilidade extrema na fisionomia – eu via um filho do vento. É
possível, Sr. Juiz, que eu exagerasse, que visse vento em tudo. Trazia a
imaginação livre e os nervos um pouco desgovernados pelo cansaço. “- Você é
daqui mesmo? Perguntei “ – Sou, sim senhor, respondeu o garoto. “- Você é descendente
de índio? “
– Minha avó… “ A estação já se tinha esvaziado. “ – Mas cadê o vento?
Perguntei. “ – Daqui a pouco ele começa. É pro Bela Vista que o senhor vai? “ –
Sim. “Subimos a ladeira. Apressei os passos. Não desejava ser surpreendido pelo
vento ainda na rua. Não me sentia preparado. “Ele, vem sempre? “- Ah! Todo dia…
“O pequeno carregador parecia arquejar, perguntei-le se queria largar a maleta
no chão para uma pausa. Respondeu-me que não; estava habituado. “Um casarão
apareceu todo iluminado. “É ali o Bela Vista, disse o menino. “Você gosta de
vento? “- Gosto. Quando ele não vem eu fico aborrecido. “Falava aos arrancos, a
respiração difícil. Tinha o corpo inclinado, como contrapeso à mala maior. –
Acho que o que eu gosto mesmo… é do vento… “Já no hotel começavam a fechar-se
as vidraças. Compreendi logo: o vento não tardaria. “- O senhor também gosta? “Respondi
com um aceno. “ – Então, se quiser, eu posso lhe arranjar um cavalo amanhã para
o senhor apreciar lá de cima. O aluguel é barato. “A associação de cavalo e
vento me exaltara subitamente. Parecia resgatar em mim todos os males que a
fadiga acumulara. Eu falo em cansaço, mas não era só isso. A imagem de cinco
operários mortos retirados do fundo da ensecadeira quando faltou a bomba-de-ar
também não me saía da lembrança. Como ia dizendo, combinei com o menino; ele
traria cedo o animal. “Entrei, mostrara-me o aposento que mal pude reparar como
era. Adormeci, aflito para que amanhecesse logo. Foi um sono espesso, profundo,
interrompido às vezes pelo barulho de uma ventania que eu não sabia bem se era
do sonho – pois ventava também sonambúlico – se estou contando coisas inúteis.
Se posso dizer tudo, se o senhor quer me ouvir até… – Se Vossa Excelência quer
ouvir – corrigiu o escrivão. Gesto discreto do juiz fazendo sentir ao escrivão
que aquilo não tinha importância. – Não sei, senhor Juiz – continuou como que
voltando a si de um estado sonambúlico – se estou contando coisas inúteis. Se
posso dizer tudo, se o senhor quer me ouvir até… – Se Vossa Excelência quer me
ouvir – corrigiu o escrivão. Gesto discreto do juiz fazendo sentir ao escrivão
que aquilo não tinha importância. – Não sei, senhor Juiz, se o senhor quer
ouvir-me até o fim. – Sim, sim, continue – disse o magistrado. – Onde mesmo que
eu estava? Toda a sala se preparava para escutar o resto da história. – Eu
estava… eu estava… Ficou suspenso, tentando reatar o fio do relato. – Com o
cavalo e o vento… – soprou uma voz feminina junto do balaústre que separa as
duas metades da sala. “- Ah! Sim. No dia seguinte, cedo, me levantei. Não era o
engenheiro fatigado da véspera; era um homem despreocupado, à espera de um
menino com um cavalo. Eu ia descobrir os arredores e já recebia as primeiras
virações da manhã. “À porta do hotel uma onda de bem-estar fazia de mim o
homem, mas sem a recordação das canseiras e problemas da construção, e já na
sua imponência de coisa concluída, útil a felicidade. Foi quando apareceu o
menino. “Vinha de longe, rindo, montado no cavalo, a puxar o outro que me era
destinado. Aproximou-se, quis saber se tinha escutado o vento daquela noite. Eu
disse que não. – Pois o senhor perdeu. Mas não foi dos melhores. O bom mesmo, o
senhor vai ver hoje. “Perguntei-lhe como se chamava. – Me chamam aqui de Zeca
da Curva. “ – Que nome! “Passou a mão pela crina do animal e explicou
gaguejando: “ – É porque nós sempre moramos lá em cima, na volta da estrada… “Dentro
de alguns minutos, já fora da cidade, eu ia pouco a pouco entrando na
intimidade da paisagem. O garoto parecia contente de se ver promovido de
carregador a cicerone de turista. Deu-me o nome das colinas principais,
mostrou-me as corredeiras, o vale. Contou que uma vez tinha havido um incêndio
horroroso na fábrica, a fumaça cobrira tudo, até parecia noite, depois que veio
o vento a cidade amanheceu de novo. Susteve o cavalo e ficou a olhar para o
céu. “ – Acho que ele já vem vindo. “ – Ele quem? “ – Como sabe que vem? “ No
corpo, uai… “ Mas o ar está parado. Que é que você sente no corpo? “ – Uma
coisa… “Suas narinas farejavam os longes. Alguns instantes depois, ele tinha a
cabeleira em desalinho, e o meu chapéu fora atirado à distância. Não era ainda
o vento forte que eu esperava. Parecia a vanguarda de outro, maior, que vinha
avançando atrás. E à medida que aumentava de velocidade, ia mostrando uma
qualidade diferente daqueles que correm em outros lugares. Parecia soprar da
minha infância, trazendo o que havia de melhor e de mais antigo no espaço. “Viramos
os animais para recebê-los de frente. Era como se cada um de nós estivesse na
proa de um pequeno barco. Subitamente se animou a paisagem. Todas as árvores se
manifestaram. Principalmente as bananeiras do vale e dos bambuais da colina,
que também são vistos daqui no espigão daquela serra.” O denunciado apontava
para a serra que se deixava ver através da vidraça. Ante a maneira natural com
que fazia a sua narrativa, a assistência foi perdendo a prevenção e começou a
ouvi-lo com simpatia. Continuou: “-Agitavam-se de tal maneira que o apito de um
trem que partia no momento ficou abafado no barulho. “- Não falei que vinha?
Gritou o garoto, orgulhoso do seu vento. “E começamos a correr… O que era uma
delícia! “Cavalo e vento!… “Com o sol no zênite, voltei ao hotel. Já o vento
tinha cessado. O menino me perguntou quando é que eu queria mais; disse-lhe que
me procurasse depois. Deixou o meu cavalo pastando nas ervas da rua e
desapareceu num galope. “Entrei na sala de refeições que era limpa e cheirava a
chão encerado e pratos guardados. Os poucos hóspedes comiam em silêncio.
Pareciam chocados com a minha entrada. Mandaram-me olhares furtivos, antes que
os meus os rechaçassem. Esses hóspedes tinham o ar tristonho e pareciam desejar
que ninguém lhes perturbasse a paz. Eu também alimentava o mesmo desejo. A dona
veio colocar em minha mesa uma jarra de flores silvestres, privilégio, segundo
me dissera, dos hóspedes recém chegados. “Voltei ao quarto para a sesta. Meu
primeiro contato com aquele vento deixou-me o coração preparado para uma
aventura maior. Não se pode dizer, Sr. Juiz, que eu já estivesse dominado por
ele, mas dormi com seu rumor nos ouvidos, por que não dizer na alma. Com o
vento e também com a paisagem que ele transfigurara. “Durante dias e dias foi a
minha obsessão. Nem cheguei a retirar da mala os livros de leitura com que
pretendia encher o tempo. Só o vento bastava. Toda vez que começava a soprar
mais forte, Zeca da Curva aparecia. De tal maneira, que a figura maltrapilha do
desaparecido se tornara para mim como uma promessa de vento. “Entre mim e ele
se estabeleceu curiosa camaradagem, na qual um expandia o seu espírito infantil
e o outro, eu, o adulto em férias, procurava distração para as horas de ócio.
Só que não podia esperar, Seu Juiz, que dessa brincadeira inicial resultasse
desfecho tão triste: um homem perante a Justiça e uma criança desaparecida ou
morta. O que começou como passatempo acabou em desgraça. “Preciso contar, Sr.
Juiz, como se foi formando entre nós esse estado de espírito. Eram encontros e
diálogos quase diários em face e dentro mesmo das correntes de ar que percorrem
esta cidade, onde a vítima era tida como um vagabundo, fazedor de biscates.
Talvez um solitário e, por certo, um incompreendido. Eu trocava pela sua
intuição poética a minha experiência de adulto e meus vagos conhecimentos de
meteorologia. “ A princípio cheguei a pensar que ele estivesse alimentando os
meus caprichos, em busca de gorjetas ou de qualquer proteção de minha parte.
Depois…depois é que vim a descobrir nele um verdadeiro iniciado do vento. “Se
de fato morreu, e espero em Deus que não, ninguém mais do que eu deplora essa
morte. Éramos vistos sempre juntos, à hora da ventania. E pelo que vim a saber
ontem, posso bem imaginar toda a sorte de suposições maliciosas que essa
intimidade despertava nos habitantes da cidade, especialmente os hóspedes de
meu hotel. A dona me perguntou que graça eu achava em tal companhia. Eu não
podia responder em dois minutos o que vou tentar explicar ao senhor… a Vossa
Excelência, sem saber se o conseguirei. “Zeca da Curva e eu saímos todos os
dias para estudar o vento, segundo a direção, a hora, a velocidade, o cheiro e
as diversas coisas que ele faz bulir. Quase sempre deixava que o menino
falasse; quando emudecia, era eu que o provocava com noções teóricas ou
invenções gratuitas. “Logo na primeira vez, aproximando-se com seu cavalo,
fez-me uma pergunta: “- Onde é que ele começa, hein? “ – Mamãe disse que é Deus
que faz soprar o vento no mundo. “Respondi que também não sabia. O garoto ficou
decepcionado; insistiu em que eu sabia, mas não queria dizer. “ – O senhor não
reparou esta noite? Teve um vento danado.. Corria de um lado para outro,
empurrava tudo que era porta e janela. Acho que ele não sabia bem o que queria.
Fiquei o tempo todo espiando pelo buraco da fechadura; a língua fininha dele
entrava no meu olho. O senhor não sabe aquela bananeira que nós vimos lá em
cima, perto da caixa d´água? Pois parecia que estava pegando fogo. Acho que ela
sofreu um bocado.” O interrogado fez aqui uma pausa. “- Estou-me esforçando,
Sr. Juiz, por conservar o jeito especial de o garoto falar, mas vejo que não é
possível, perco o que havia de mais saboroso na sua linguagem. “O segundo
encontro foi na estrada do Cruzeiro. Alimentei a conversa: “- Ontem eu vi
quando ele se escondeu na grota, disse-me o menino enquanto subíamos. “- Com
certeza pernoitou lá. “- Com certeza o quê? Perguntou, fazendo uma careta. “-
Pernoitou lá, repeti. “- O que é que é isso, pernoitou lá, pernoitou…
pernoitou? “- Passou a noite, expliquei. “Ah, que palavra gozada! “- Olha lá…
Quer dizer que o vento está correndo muito alto, você está vendo? “- Estou, mas
eu gosto é quando ele passa baixinho e vem brincar no capim. “- Com certeza
está indo para o mar. “- Pro mar! Como é que sabe? “- Porque a costa atlântica
é para aqueles lados… “Costa o quê? “- A costa que dá para o oceano chamado
Atlântico, nunca ouviu falar? “- Ah, agora tô me lembrando, a professora falava
nesse nome… O vento que corre para o mar é diferente, não é? “- Conforme. Às
vezes vai com grande velocidade, sessenta, setenta, noventa quilômetros a hora…
“- Como é que sabe? “- A gente pode tomar a velocidade, há aparelhos para isso.
“- Pois sim, vou acreditar! – respondeu em tom de zombaria. A gente tom a
velocidade do vento é nas árvores e na roupa dos varais. E o que é que o vento
vai fazer no mar? “Respondi que não sabia, mas achei melhor dizer qualquer
coisa, dar largas à imaginação do meu interlocutor. “- Ajudar os veleiros,
respondi. Animar as águas, preparar os temporais. Você já viu o mar? “Sua testa
franziu-se. Era, creio, a segunda vez que lhe fazia tal pergunta e ele
desconversava. Passou a cismar. Depois, em tom de justificativa: – O maquinista
prometeu me levar escondido na máquina, mas mamãe disse que me bate, que se
for, ela não vai mais querer saber de mim. “Parou a cismar. “- Lá o vento corre
à vontade, não é? Não tem parede, não tem morro, não tem nada para atrapalhar…
Assim, é fácil… “- Lá ele vira ventania, lembrei. “- Aqui também nós temos
ventania, uai! O mês passado houve uma na hora mesmo da procissão. Atrapalhou
tudo, nós corremos, o padre ia na frente, o andor caiu, foi uma coisa danada!
Pergunta à Espiga de Milho! O vento faz cada uma! “- Quem é Espiga de Milho? “-
Minha namorada. Mas é escondido, ouviu? Mamãe não sabe. “Com o correr dos dias,
comecei a me apaixonar por esse jogo. Dei ao menino algumas noções elementares
sobre deslocamento de massas quentes e frias da atmosfera. Não acreditou;
desconfiava que eu estivesse dizendo bobagens. Falamos sobre diversos tipos de
vento. Eu levava comigo um esboço de classificação para o qual me servira dos
dados que ele mesmo me fornecera. Escrevera as notas durante a noite, no quarto
do hotel. Pode parecer pueril, mas eu o fazia tanto para a recreação do menino
como para a minha própria. “ Assim, segundo a nossa classificação, havia ventos
maliciosos e ventos desordeiros, ventos calados e ventos que cantavam, ventos
compridos, de grande velocidade, e ventos miudinhos, desses que começam a
correr sobre a grama e logo desanimam aos pés do primeiro arbusto. Confessou
que apreciava muito esse tipo de vento, chamado brisa, filhote do grande, que
movimenta as nuvens; é, dizia ele, uma viração “que não dá nem para suspender
as saias das moças mas serve para levantar os gravetos do caminho e os
papeizinhos da calçada”. “As grandes árvores nem se mexem, pois não dão
confiança a essa brisa, mas as plantinhas miúdas ficam felizes.” “Fizemos
outras hipóteses e nos despedimos depois de acertarmos umas tantas ideias sobre
o assunto. “Animado com a conversa, trouxe-me no dia seguinte uma hipótese
nova. Disse que esteve pensando muito durante a noite: aquele negócio de massas
frias e massas quentes, de que lhe falara na véspera, achava que era bobagem. O
vento – afirmou – é soprado por gigantes enormes escondidos atrás da cordilheira;
se é muito forte, chama-se ventania; quando fica escuro, chama-se furacão, pior
ainda do que a ventania. “- Se o vento não tem cor, interrompi, por que diz que
o furacão é escuro? “- Porque é escuro mesmo, respondeu. Eu acho que ele é
assim porque passa com as lanternas apagadas. E continuou: – Ventania é danada
pra virar canoa quando ela vem, e eu fico só gozando… “E os outros ventos? “-
Ah, sim, tem o ventinho de todo o dia, respondeu. E apontando com o queixo: –
Este que está passando aí, por exemplo… Muito bom para refrescar a pele e
empinar papagaio… Parece que não vale nada, não é? Mas depois que chega é uma
festa… Olha lá os bambuais como ficam! Olha o milharal!… “- E a brisa?
perguntei. “- Ah! Essa sai da boca dos filhotes do gigante. Gosto muito de
apostar corrida com o rio. “Só para excitá-lo, procurei qualquer definição
especial para a brisa e disse: – É um vento que ainda não cresceu. “Olhou para
mim, reflexivo: – Isso mesmo! “Sem querer, liguei no meu espírito a invenção do
menino às coisas da mitologia, de que vagamente me lembrava. Na expressão do
meu rosto teria notado o efeito de sua descoberta. Parecia orgulhosos. Deixei
ficar. “A nossa intimidade, Sr. Juiz, foi assim crescendo à base de vento.
Encontrávamo-nos sempre. Um dia, eu subia a estrada que leva à colina de onde
se avista a cidade e a ala esquerda do hotel. Sobre as casas pairava a faixa de
fumaça deixada pela locomotiva. Eu caminhava devagar. Mais devagar vinha
descendo o garoto. Pela primeira vez aparecia penteado. Ia com certeza
encontrar-se com Espiga de Milho. Falou-me: – Pensei que o senhor tivesse ido
embora. “Olhou entristecido para a cidade e depois para a paisagem: “- Ele hoje
não veio… “Mas tarde, com certeza, respondi. “- O mundo fica sem graça, não é?
Tudo parece fotografia. “Circunvaguei a vista. Tudo parecia mesmo fotografia.
Ar parado, árvores imóveis, inalterável ainda a faixa de fumaça. Pensei comigo:
“- Este garoto está hoje diferente… Fora de seu natural. É preciso ventar para
que ele comece a viver. “Corria nesse momento um ventinho de ensaio, as árvores
maiores nem se mexiam. O garoto observou, apontando para alguém: – Olhe que
gozado o ventinho nas barbas daquele velho!… “Atirou com o badoque uma pedrinha
ao chão, disse até logo, e continuou a descer. Já se achava longe, quando
gritou: – Olha, olha, lá nos bambuais”… “Não olhei para os bambuais. Olhei para
o menino que voltava correndo. Sua cabeleira estava desfeita, ele mesmo todo
diferente, subitamente transformado em personagem do vento. Mas ele foi logo diminuindo
e cessou. Zeca da Curva assumiu um ar escabriado. Sem jeito, virou-se para os
lados do vale: “ – Daqui a um pouquinho ele volta. Quer apostar? “Alguns
segundos depois as janelas começaram a bater, as roupas arracaram-se dos
varais, desfez-se a plumagem de fumo. Apareceu uma menina ruiva, com uma
garrafa de leite.” “-Vem, Espiga de Milho! Vamos aproveitar! “Ela atendeu. De
mãos dadas, sumiram-se os dois na curva. Fiquei de longe, a ver se repontavam
mais adiante. Mas o céu começou a enfarruscar. Entrou outro tipo de vento, o
vento de chuva, diferente do que nos interessava. Nós não gostávamos da chuva
que atrasa a corrida do vento, sempre aflito por desembaraçar-se de suas
malhas. “Alguns dias depois encontrei Zeca da Curva chorando. Estava indignado.
“- Mamãe me bateu. “Vai ver que você fez alguma arte. “Confessou, amuado,
queixando-se: “-O vento levanta a saia das moças, e a gente é que leva a culpa,
ora essa! Só porque fiquei espiando… “Pensei logo em Espiga de Milho com as
pernas descobertas e os sinais da puberdade se arredondando debaixo da blusa. E
para fazê-lo esquecer a mágoa, apressei-me em voltar ao tema do vento. Inventei
que nele correm também meninos invisíveis, os mensageiros. Sabia que essa ideia
ia excitá-lo. “O quê? Inquiriu logo. “ – Mensageiros, repeti. “ Ah!
mensageiros, mens… “ – São alados, completei. “ – Que negócio é esse, alados? “
– Que tem asas. “ – É verdade? “ Senti um frêmito, perpassar-lhe o corpo. “ –
Sim, é verdade. “ – Bem que eu desconfiava… “ Fez uma pausa: “ – E no furacão?
Tem crianças também? “ – No furacão passam os guerreiros terríveis, inventei. “
– Por isso é que ele faz tanto barulho, não é? “ – Exatamente, respondi. “ –
Quando venta muito forte, eu sempre desconfio que está acontecendo muita coisa
que ninguém sabe… “ – Onde? Perguntei. “ Aí por este mundo… O vento é muito
importante, não é? “Então? Não sabe que ele ajudou a descobrir o Brasil? “- O
vento?! “ – Sim, o vento. “ – Puxa! “Já havia esquecido a coça materna. Fazia
inspeções pelo céu. “ – Está vendo aquelas nuvens lá? “ – Estou. “ – Pois
amanheceram na mesma posição de ontem. Ficaram encalhadas. Ontem o vento andava
mais devagar do que o rio. – Bateu na testa, lembrando-se de qualquer coisa: –
Espera aí… Está na hora da chegada do trem. “Partiu voando para a Estação. Ia
pegar as malas, fazer o seu biscate. “Esqueci-o por algum tempo; voltei às
minhas leituras. Quando pensava nele, era para duvidar de sua sinceridade.
Cheguei a supor que, talvez para ser agradável, talvez para chamar a atenção
sobre si, ele forçava o assunto e simulava atitudes. Não estaria exagerando? Ou
apenas se divertia? Ou procurava mesmo impor-se à amizade do turista para
merecer-lhe favores? “Achei pouco provável a suposição, tão extraordinário e
espontâneo me parecia ele. Eu mesmo lutava comigo para não me deixar arrastar
por uma ilusão. “ A dona pouco provável a suposição, tão extraordinário e
espontâneo me parecia ele. Eu mesmo lutava comigo para não me deixar arrastar
por uma ilusão. “ A dona do hotel me perguntava se eu tinha esquecido o garoto.
Não respondi. “ Na verdade, espacei os nossos encontros e já começava a duvidar
da sua paixão pelo vento. Certa manhã, no início de um temporal, cheguei à
janela levado pela curiosidade de saber como se comportava o menino diante
daquelas lufadas. Se era sincero fora de minha presença. Minha janela abria-se
para os barracos da colina, onde ele morava. Meti o binóculo, o seu casebre se
aproximou. Logo avistei Zeca da Curva no terreno, a pular. Tirara a roupa,
ficara nu no meio do vento. Correndo de um lado para o outro, esbarrou numa
lata e rolou pelo barraco. De repente, ei-lo de braços abertos e olhos
fechados, gozando, aspirando o espaço. Assim permaneceu alguns minutos, imóvel,
feliz. “ Agora, pensei comigo, já não tenho dúvida: ele é mesmo o enfeitiçado
do vento. Acertei melhor as lentes e percebi, Sr. Juiz, claramente percebi o
que o menino fazia: mijava! Com o perdão da palavra, ele mijava, Sr. Juiz!
Gritei. Não me atendeu. Nem podia, tamanha era a barulheira. A urina diluía-se
em gotas cristalinas. Misturando-se ao ar um líquido de seu organismo, tive a
impressão de que procurava sentir-se mais ligado aos elementos.” Aqui, o
denunciado perdeu o impulso com que vinha falando. Cochichos da assistência e
uma troca de sorrisos entre o promotor e o escrivão tê-lo-iam devolvido a um
plano em que lhe seria impossível continuar com a mesma fluência e candura.
Olhou para o Juiz, como que o consultando. Este lhe fez com a mão um aceno
favorável. Que prosseguisse. Encorajado, continuou: -“ É possível, se Juiz, que
o que estou contando não tenho relação real com o processo. Mas tem com a
verdade. Muitas vezes se chega à verdade pelos caminhos mais absurdos. Desde o
momento em que verifiquei como procedia Zeca da Curva quando se viu só com seu
vento, comecei a acreditar mais nesse menino. Imaginei-o incompreendido entre
os companheiros; incompreendido e calado, para não ser objeto de zombaria. O
pequeno maltrapilho era meu mestre de vento, o verdadeiro iniciado. E eu, o
discípulo, não me vexo de confessá-lo. Daí por diante, só o compreendia dentro
mesmo do vento. De tal maneira que, sem a sua companhia, eu me tornava
indiferente a qualquer viração. Mas evitava que ele percebesse o meu estado de
espírito, e dentro de mim mesmo lutava contra as imagens delirantes,
lembrando-me da advertência de meus pais. “Os hóspedes do hotel deviam achar-me
cada vez mais esquisito. Minhas férias estavam a terminar, eu já pensava em
arrumar as malas. “Certa manhã, acordei com a pancada seca de um objeto no
espelho. Era uma gaiola atirada da rua. Cheguei à janela. Reconheci o menino
embaixo: – Isso é modo de despertar alguém? “ – Hoje vai ter! gritou-me ele. “
– Como é que sabe? “ – Uai! A gente sabe sem querer… O corpo avisa. Os meninos
já estão bulindo nas folhas… “ Ah! sim… os mensageiros… respondi sorrindo. Mas
é para já? “ – Não. Vai ser de tarde, disse consultando o céu e mordendo uma
goiaba. Olha as árvores grandes… por enquanto estão quietas, mas o senhor vai
ver mais logo. “ A camaradagem entre mim e o garoto crescera até o ponto de que
dava ideia esse episódio do projetil no espelho. Por volta de três horas,
subimos a colina, lugar habitual de nossos encontros. Lá em cima, ele me foi
indicando a pista do vento. E apontando para o horizonte: – Olhe aqui, ele vai
partir de lá, quer apostar? E correr nesta direção. “Com o dedo ia traçando a
direção provável do vento no espaço. “ Ficamos esperando algum tempo. O céu era
de uma cor neutra, meio amarelada, tonalidade que para nós indicava lufada
iminente. O garoto parecia desassossegado, com medo de ser desmentido. Afinal o
vento começou. Não ainda na plenitude de sua força, mas já amplo e gostoso. “ –
Depois vai ficar melhor, disse o garoto; por enquanto, são as primeiras
amostras. “Mas já vinha com o cheiro de mato e de rebanho. Ganhasse um pouco
mais de espessura e o agarraríamos com a mão. Era como um animal invisível, mas
perto. Ficamos mudos, a sentir o perpassar de sua cauda interminável. “-Este de
hoje está bom! Exclamou, deliciado. “Mantinha os braços abertos e os olhos
fechados. Seus cabelos assanhados prolongavam a animação das frondes e
pastagens. “ Fixei-lhe a fisionomia, curioso de verificar-lhe as mutações.
Tanto vale dizer que larguei o vento pelo menino. Mas, tomado também pela força
da correnteza, dentro em pouco éramos dois a experimentar a mesma embriaguez.
No meio da polifonia, ouviu-se um som de lata velha. É uma mulher, espécie de
bruxa desgrenhada, do alto da cafua chamava o garoto para a janta. “Bruscamente
afastado de seu vento, o menino seguiu contrariado. Mas logo a corrente
aumentava de velocidade; e se transformava em ventania, categoria mais alta
segundo a nossa classificação. Devia vir da floresta, sua matriz longínqua. Com
certeza recebera no trajeto afluentes que a enriqueceram, virações de campina,
brisas de lagoa. Para mim, era naquele céu, por cima das montanhas, que se
operava a combinação de sopros múltiplos, emanação da terra, extrato de
paisagens percorridas. “Retido pela velha, o menino ia perder aquele momento.
Sem a presença dele, o espetáculo não seria o mesmo. Sentindo porém a atração
do vento, não resistiu e voltou. “Eu me agarrara ao tronco de uma árvore para
não ser levado. Zeca da Curva parecia embriagado. Arrancou a camisa, estendeu
os braços. Permanecia imóvel, tenso. De repente, ouvi-lhe a exclamação: – Com
este eu vou! “Abalou-se pela rampa, saltou o valado, atravessou uma sebe,
ganhou a várzea, diluiu-se na bruma… E reapareceu diminuído, lá para os lados
de uma macega, correndo, correndo sempre, até sumir-se no longe. Fiquei só no
meio do turbilhão, sempre, até sumir-se no longe. Fiquei só no meio do
turbilhão. Com a sensação de que ele me abandonara. “ Pudesse eu fazer aquilo!
Faltava-me a força e a pureza do menino. Fui tomado de um sentimento estranho:
senti-me rebaixado perante mim mesmo. “ – Ele tem doze anos! Disse comigo,
tentando anular meu despeito. “ As rajadas aumentavam empurrando-me para o
espaço, como que me desafiando a imitar a proeza do pequeno companheiro. Não.
Eu, não! Sou engenheiro, não sou criança! Construo pontes, tenho os pés
fincados na terra… Loucura, querer emular-se, tenho os pés fincados na terra…
Loucura, querer emular-me com o garoto, disputar com ele os mesmos direitos
perante o vento. Tratei de sair dali. Amanhã, pensei, amanhã saberei onde largou
a ventania. “ Já então, Sr. Juiz, só restava do vento a cauda leve e comprida.
Passar o turbilhão, o lugarejo reapareceu calmo, lavado. Acendiam-se as
lâmpadas. Uma a uma as vidraças se abriram. Fui descendo a ladeira. Na
portaria do hotel, mal fechei a porta, a dona espantou-se: – Mas o senhor lá
fora, com um tempo destes! “ Não respondi à pergunta reticente. No dia
seguinte, voltei para o Rio sem maiores apreensões. Porque estava certo de que
o menino tornaria. E já o supunha reintegrado em sua cidade e no seu vento,
quando vim a saber por uma carta anônima que me acusavam de seu desaparecimento
e de práticas infamantes. “E foi tudo, Sr. Juiz, o que se passou entre mim e
Zeca da Curva!… “Estes, os fatos. São simples demais para serem acreditados.
Minha amizade com a malograda criança foi, como disse, unicamente na base do
vento, assim como o meu encontro com ele foi o vento que propiciou. Encontro
que será também com a desgraça, se Vossa Excelência, senhor Juiz, não quiser
admitir que, além dos fatos habituais de nossa vida cotidiana, outros há,
íntimos, que ocupam a parte maior de nosso ser; mas que temos vergonha de
confessar para não parecermos infantis ou loucos. São justamente os mais
secretos, e o senso comum se recusa a considerá-los.” Nova pausa do engenheiro.
O olhar aflito da assistência parecia implorar-lhe que prosseguisse. “Há de
parecer tolice o que contei; mas sei que não é crime. Não pode ser crime
dividir com quem quer que seja um entusiasmo maior pela chuva, pelo fogo ou
pelas plantas… “No tipo de intimidade que mantive com o desaparecido entrou
muito de nossa imaginação e, de minha parte, certa vontade de espairecer-me.
Envergonho-me de ter sido obrigado a contar num ambiente impróprio para que me
acreditem coisas que parecem inverossímeis, e que não poderiam constar de
processo algum. Um crime é um crime, e impõe respeito; mas a narrativa em juízo
de uma aventura com o vento há de parecer coisa inventada e absurda. Eis por
que falei tanto no vento. V. Ex.ª me desculpe. Se algum culpado houve, Sr.
Juiz, no caso, foi mesmo o vento. Eu quero esclarecer que me refiro a um que
sopra quase todos os dias e neste momento mesmo já começo a agitar as palmeiras
lá fora.” Toda a assistência, menos o Juiz, voltou os olhos para a praça. As
árvores principalmente a balançar. …”é um vento especial, morno, de um teor
diferente, rico de qualidades…eu ia dizer de intenções.” O juiz voltou-se pela
primeira vez para o interrogado. Fixou-o com expressão desconhecida. Sua
aparente indiferença sofreu alteração visível. Disse com certa dificuldade: – O
denunciado não precisa voltar a falar do vento. Queira limitar-se aos fatos. …”eu
queria com isso, Sr. Juiz, explicar a influência exagerada que ele exerceu em
mim e no menino. Não nego certa conivência da minha parte. Fizemos dele um
emprego abusivo, confesso. O que começou em brincadeira acabou em revelação. Eu
não podia prever tal desfecho.” Enquanto o acusado parecia chegar ao fim, o
vento forçava as janelas. Vinha com aquela impaciência com que se comporta ante
os obstáculos de vidro. Depois mudou de rumo e conseguiu uma brecha. Entrava às
lufadas pela vidraça lateral, a que se havia partido de manhã. E por essa
fresta, logo ampliada, invadiu o prédio. Levantava os papéis, fazia bater as
portas. Dava a impressão que vinha da natureza da narrativa e do ambiente que
se criara. O promotor ficara todo o tempo embevecido numa cisma remota.
Ouvia-se um barulho na escada. E ainda as últimas palavras do engenheiro: – “E
quem pode afirmar com segurança, Sr. Juiz, que Zeca da Curva esteja morto? Por
que não admitir que ele tenha vindo com este vento e já esteja subindo pela
escada?” Houve um suspense. A
interrogação traduzia um começo de alucinação que contaminava a assistência.
Todos olhavam em direção à escada. Ouvia-se um sussurro aumentado pelo vozerio
lá embaixo, no saguão. Deus o juiz por terminada a audiência. Pouco a pouco a
sala recuperou a atmosfera forense. O promotor descruzou as mãos sob o queixo,
e voltou à realidade. Foi quando se fez ouvir a voz do escrivão. Queria saber
se era para tomar por termo tudo aquilo e como. Mal pode disfarçar um travo de
ironia nessa pergunta. Ao que o magistrado respondeu que não era necessário, e
que lhe fizesse subir o processo. A sala foi se esvaziando. Duas moças
deixaram-se ficar sentadas ao fundo. O Oficial de Justiça veio pedir-lhe que se
retirassem, ia fechar as portas. Perguntaram se no dia seguinte ia ter mais.
Mostraram-se contrariadas ao saber que não. Era como se tivessem interrompido a
contragosto a leitura de um romance. Ganhando a praça, o engenheiro respirou
livre. O peso na nuca, o peso que parecia querer guilhotina-lo, desapareceu.
Que a máquina da Justiça viesse a fabricar-lhe a condenação, já não se
importava, sentia-se livre. Chegou o ônibus da tarde com os jornais do Rio.
Esperava-se o noticiário do escândalo, tal como o redigira o próprio escrivão a
pedido do correspondente. O denunciado comprou uma das folhas, verificou, ele
mesmo, o que pressentira. Não se abateu nem se revoltou; apenas sentiu a
vontade de abandonar depressa aquele lugar. Populares deixavam-se ficar nas
imediações do Foro. Era porém impossível trocarem impressões. O vento não
deixava. Começou arrancando o jornal das mãos do promotor; depois, o chapéu de
alguns. Aumentando de velocidade e enrolando-se em redemoinhos poeirentos,
derrubou a prateleira do engraxate. Folhas de revistas espalhavam-se pelo chão
e desintegravam-se no ar, enquanto as mulheres prendiam fortemente as saias. Ninguém
conseguia ler a notícia até o fim: ou a ventania carregava de novo o jornal ou
a poeira turvava a vista dos leitores. Das sacadas altas do Foro descia uma
nuvem de escrituras, certidões e editais. Pairavam no ar antes de virem pousar
nas frondes. Era o arquivo que se desmanchava. A praça assumiu um ar festivo.
Os moleques se atropelavam na disputa dos papéis. Não longe, a caminho do
hotel, o engenheiro contemplava aquilo e se emocionava. Queria resistir,
manter-se impassível. Lembrou-se da recomendação paterna (“não se perder em
devaneios”, “tratar só com a realidade”). Como porém recusar a evidência do que
estava acontecendo? Não precisava que o vento viesse assim tão estabanado,
pensou. Mas que maravilha! Será que ninguém percebia? Era de um tipo novo,
menos desencarnado e musical. Com algo de rebelde e desordeiro. Pena que ali
não estivesse o Zeca da Curva. O engenheiro tinha certeza de que ele continuava
vivo. Voltaria escondido, para uma busca naquelas grotas de montanha. Ou será
que ia encontrá-lo expatriado do seu vento, vagando triste pelas ruas da
Capital? Eis agora o vento nas pernas do Meretíssimo!… OH, vento, respeita o
varão austero. Por que empurrá-lo assim, por que atirar-lhe ao chão o chapéu?
Um juiz-juiz não pode, não deve correr… Nem olhar para trás, nem apanhar o que
caiu… Um juiz de verdade só caminha de cabeça erguida, a passos firmes como
quem vai de braços com a Justiça. O pretinho veio correndo pela ladeira para
dizer que no Bela Vista a dona estava chorando, trancada no quarto. E o
escrivão? Lá embaixo, no bar, sem querer conversar. Seus amigos compreendem-lhe
o silêncio. Um deles ameaça: – Aquele tipo não há de botar mais os pés aqui. O
outro: – Só serviu para virar a cabeça do povo. O escrivão olha para fora,
põe-se a cismar. Vê o engenheiro, de mala na mão, tomar o ônibus da tarde.
Sente-se derrotado, confuso. Então aquilo era maneira de se defender? As
árvores começam a sossegar. – Para mim, o vento é o bento e nada mais…concluiu
com melancolia o escrivão, acenando com a cabeça. A dona do hotel nunca mais se
apresentara a seus hóspedes. Nem acolhera o escrivão. Dizia-se que depois da
meia-noite seu piano tocava em surdina. Eram tantos os quartos vazios que não
havia quase ninguém para ouvir. O juiz não mais compareceu às audiências. Nem
despachou processo algum. Qualquer coisa havia mudado na fisionomia moral da
cidade. O vento começou a existir. Descobriram-lhe um sentido novo. Algo de
estranho passara-se na consciência do magistrado. Transferido ou aposentado,
desapareceu da comarca dias depois, sem nada dizer, sem se despedir de ninguém.
A última vez que fora visto, vagava pela colina de onde Zeca da Curva partira
para sempre. Notaram que sobraçava o calhamaço de um processo. E que falava
sozinho. Qual fosse esse processo ninguém sabia. Sabia-se apenas que o vento
soprava no calhamaço com força desconhecida e, uma a uma, arracavam-lhe todas
as folhas… O texto em
destaque foi transformado em documentário, Aníbal Machao – O iniciado do vento,
dirigido por Eiane Terra e Karla Holanda, em 1994. Veja mais aqui e aqui.
AMOR, BAILADO & SALMO
PARA O BEM-AMADO – No livro
Poesia reunida e outros textos (ACL,
2004), da poeta, jornalista e professora Maura
de Senna Pereira (1904-1991), destaco inicialmente o poema Amor: Em verdade te digo que não foi naquela hora
/ que te pertenci: / quando me tomaste nos teus braços poderosos / e me tiveste
sob teus beijos e tua respiração. / Em verdade te digo que não foi naquela hora
/ mas quando, diante do teu, surgiu meu espirito livre e novo / de rebento
inquieto deste século / e descobrimos todas as comunhões das nossas almas. /
Quando conheceste as minhas derrotas / e disseste que eram triunfos. / Quando
soubeste que nem sempre / os teus pensamentos são os meus pensamentos / nem os
teus caminhos são os meus caminhos. / Mas o amor brilhou como nunca em tua face
/ e me surpreendeste com a cascata de palavras / de que eu tinha sede / desde a
minha primeira hora consciente. / Foi quando te pertenci. O poema Bailado: Eras estrela, eras ave, eras / grande flor
aberta / sobre o peito do homem? / Em verdade parecias / em teu bailado,
Raissa, / um pássaro / pousando sobre aquele tronco / pousando e, no entanto,
pronto / para voar. / Em verdade eras um símbolo / em teu bailado, Raissa, /
pois no mesmo dia / surgia uma era nova / e da tua terra voava / uma nova lua /
para no céu bailar. Por fim, Salmo para o Bem-Amado: Imprecações não ergo e sim ditirambos / e sim aleluias / e sim hosanas
/ às pedras e às dores do caminho. / Onde está a harpa do rei David / onde estão
as cítaras hebreias / onde está Sulamita / e onde as virgens loucas? / A todas
essas cordas e bocas eu conclamo / a todas ao meu lado quero / para ajudarem a
benzer a tormenta / que me arrebatou a primavera / as geenas que padeci, / as
pedras e as dores, as lutas e as revoltas, / a bendizê-las / porque foram elas
que me aproximaram de ti. Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.
TEATRO GREGO – No livro História da Literatura Ocidental (Alhambra, 1978), do ensaísta,
critico literário e jornalista austríaco naturalizado brasileiro Otto Maria Carpeaux (1900-1978),
recolho os registros sobre o teatro grego: [...] Ésquilo, Sófocles e Eurípedes são, para nós, figuras familiares. O
teatro moderno criou-se com esses modelos antigos. Os enredos fazem parte da
cultura geral de todos nós. Orestes e Prometeu, Édipo e Antígone, Ifigênia e
Medeia são personagens do nosso próprio teatro; e quando no século XIX se
fizeram as primeiras tentativas de representar tragédias gregas no palco
moderno, o sucesso foi completo. [...] O
teatro grego é de origem religiosa; nunca houve dúvidas a esse respeito. As
tragédias – e, em certo sentido, também as comédias – foram representadas assim
como se realizam festas litúrgicas. Mas quanto à liturgia que teria sido a base
histórica do teatro grego, ainda não se chegou a teses definitivamente
estabelecidas. As pesquisas da escola antropológica de Cambridge parecem ter
confirmado, embora precisando-o, o que sempre se soube: a tragédia grega nasceu
de atos litúrgicos do culto do Dioniso. Outros estudiosos ingleses procuram,
porém, a fonte da inspiração trágica em ritos fúnebres, realizados em torno dos
túmulos de heróis. A discussão continua. É da maior importância para a história
da civilização e da religião gregas. Mas é de importância muito menor para a
história literária. Podemos continuar adotando a intuição genial de Nietzsche:
a tragédia grega é a transformação apolínea de ritos dionisíacos. Por isso, o
único conteúdo possível da tragédia grega era o mito, fornecido pela tradição;
enredos inventados pela imaginação do dramaturgo, que enchem os nossos
repertórios, estavam excluídos. Tratava-se de interpretações e reinterpretações
dramáticas de enredos dados. Mas não é esta a única particularidade do teatro
grego, em comparação com o nosso: a diferença estilística não é menos
importante. O teatro grego é mais retórico e mais lírico do que o moderno. Os
discursos externos, que os gregos não se cansavam de ouvir, seriam
insuportáveis para o espectador moderno, que prefere, a ouvir discursos, ver e
viver a ação. O grego, ao que parece, frequentava o teatro para se deixar
convencer da justeza de uma causa, como se estivesse assistindo á audiência de
um tribunal ou à sessão da Assembleia. E os requintes da retórica, superiores
em muito aos pobres recursos da eloquência moderna, não bastaram para esse fim:
acrescentaram-se, por isso, aos argumentos do raciocínio as emoções da poesia lírica,
acompanhada, como sempre, de música, de modo que a representação de uma
tragédia grega se assemelhou, por assim dizer, às nossas grandes óperas. Mas a
ópera moderna é gênero privativo das altas classes da sociedade, enquanto a
tragédia grega era instituição do Estado democrático, e a participação nela era
de certo modo um direito e um dever constitucionais. Assim, a tragédia grega
era uma discussão parlamentar na qual se debatia, lançando-se mão de todos os
recursos para influenciar o público, um mito da religião do Estado.
Considerando-se isto, as concorrências dos poetas, que apresentaram peças,
perdem o caráter de competição esportiva: a vitória não cabia ao maior poeta ou
à melhor poesia dramática, mas à peça que impressionava mais profundamente;
quer dizer, à peça na qual o mito estava reinterpretado de tal maneira que o
público se convencia dessa interpretação e – podemos acrescentar – por isso o
Estado a aceitava. Tratava=-se de um acontecimento politico-religioso, que
ocorria uma só vez. O teatro grego não conheceu representações em serie. Com a
representação solene, a causa estava julgada, a lei votada. O verdadeiro fim do
teatro grego – assim reza a tese sociológica – era a sanção duma modificação da
ordem social por meio de uma reinterpretação do mito. Esta interpretação do
teatro grego não pode ser, evidentemente, de aplicação geral. Não se aplica,
pelo menos em parte, ao teatro de Eurípedes; só neste sentido esse grande poeta
representa a decadência do teatro grego. Mas já quanto a Sófocles há dúvidas
das mais sérias: o sentido do seu teatro não é, evidentemente, social, mas
religioso: duma religião antropocêntrica. Talvez seja mesmo impossível dar uma
interpretação geral do teatro grego, porque não o conhecemos suficientemente.
Só conhecemos o teatro ateniense, e deste apenas poucas peças, de três
dramaturgos. Mas entre eles está o maior de todos, aquele que criou o
verdadeiro teatro grego e já representa o seu apogeu. O sentido profundo do
teatro grego revela-se em Ésquilo. [...] Veja mais aqui, aqui e aqui
STORYTELLING – A comédia-drama Storytelling (Historias proibidas, 2001), dirigido pelo cineasta Todd
Solondz, com música de Nathan Larson, conta duas histórias que não estão
relacionados e têm diferentes atores, intitulado "Ficção" e
"Não-Ficção".
A faculdade e o ensino médio serviram como pano de
fundo para estas duas histórias sobre disfunção e turbulência pessoal. A
parte ficção é sobre um
grupo de estudantes universitários em uma classe de escrita criativa ministrado
por um professor que tem negócios com seus alunos. A parte não-ficção é sobre a filmagem de uma família suburbana disfuncional de New
Jersey com o seu filho adolescente que passa pelo processo de aplicação da faculdade.
O destaque do filme vai para a atriz de teatro, cinema e televisão
estadunidense Selma Blair. Veja mais
aqui.
IMAGEM DO DIA:
Todo dia é dia de movimento contra a
corrupção.
DEDICATÓRIA
Todo dia é dia de Viver, Saudar e
Respeitar a Diferença!