domingo, dezembro 06, 2015

DEMÓCRITO, COMÉDIA, BERTO, FIORESE, GÓRECKI & A PRISÃO DE PAPAI NOEL!!!!

VAMOS APRUMAR A CONVERSA? QUANDO PAPAI NOEL FOI PRESO – Desde tenra idade que Doro guardava consigo uma das mais fortes imagens de toda sua existência: os festejos natalinos. Como sempre fora desprovido de qualquer possibilidade para participar dos eventos de fim de ano, claro, o pai era um broco das costas ocas que só se ocupava em ganhar dinheiro para assar e comer; a mãe, coitada, dividida entre a fileirinha dos quinze filhos e a igreja, pudera, sobrava neres de nada mesmo para o Doro alimentar suas fantasias infantis. Mesmo assim, ainda hoje sonha com Papai Noel, banquete de natal, reunião de família às vésperas do dia da religiosidade cristã, essas baboseiras todas ditas por ele mesmo. Certo dia, porém, Doro invocou-se, resolveu ele mesmo fazer o seu próprio natal pela primeira vez na vida. Encarou a mulher, nossa, como sempre incrédula; os filhos, meia dúzia de bruguelinhos com os olhos bem abertos para a banda dele; e, ao lado, sempre broncas e broncas e mais tivesse no mundo de estrupício estaria ali, nas cercanias de sua inditosa existência. Pois foi com esse panorama que ele franziu o cenho, coçou o cavanhaque, apertou o nariz, pigarreou e uma luzinha de eureka brilhou das catracas do seu quengo. - Mulé, vou fazê o nosso natá! - Lá vem ess´ome cum invenção de novo! - Verdade, vou fazê pela premêra veizi a filicidade da gente e dum bucado de criança no mundo! - Ih! Tem coisa! E tinha mesmo. Toda razão do mundo para Marcialita que já desconfiava do salseiro que seria toda aquela invencionice do sujeito. Dinheiro que era bom, nada. E agora? Como fazer? Doro não se apertava nunca mediante qualquer que fosse a adversidade e colocava suas doidices com bastante – e bote muito além do bastante nisso, demais até – criatividade. Primeiro, passou uns dias só trancado, fazendo um cosimento nuns trapos e retalhos que recolhia por todo canto onde passasse, só na concentração dos intentos. Nem vou falar, vocês já adivinham, né? Já tratavam o desmiolado por gari de tanta coisa imprestável que arregimentava, tudo um verdadeiro lixo, mesmo. Depois se apossou dumas ferragens velhas, misturando um resto de velocípede aposentado armado em cima de uns pedaços duma bicicleta destroçada, tudo num trabalho de soldador engenhoso, resultando num bregueço lá que num tinha quem adivinhasse. Parecia mais que o cara estava fazendo um excelente trabalho de funilaria, preparando no meio das tranqueiras, alguma coisa por serventia. E parece que vai servir mesmo, ninguém sabe ainda. Imaginem mesmo o rebuliço. Quando o mondrongo do negócio estava pronto, ele começou a pintar dando uma cara multicolorida para o invento. Com a pintura pronta daquilo, se armou de cordas, barbantes e cabos de aço não se sabendo ao certo para quê, só se sabia mesmo das marteladas, suadas, enganchadas e presepadas noite adentro para concluir algo longe de se imaginar o que pudesse ser. Os vizinhos reclamavam que não podiam dormir com a barulheira dele, sendo interpelado diversas vezes pelos educados soldados da patrulha militar local. Com isso foi persuadido a respeitar o silêncio alheio, senão seria trancafiado em nome da paz pública. Assim foi mais jeitoso até quando deu por pronto, escondeu o que fazia de todo mundo e saiu recolhendo os guenzos vira-latas mais maltratados que encontrava na redondeza. Uns oito pulguentos estropiados que levou tudo para a sua residência. Um escarcéu! - Ô, homi, bota essis viralata para fora! -, reclamava Marcialita. - Calma, muié, vancê vai gostá. - Isso num é cachoro, homi, é uma fábrica de carrapato, quero isso não aqui! - Calma, muié, cum certeza vancê vai gostá. E nesse chove num molha, Marcialita matou uns três de chutes, sem contar mais uns cinco que morreram de fome, tendo Doro de arregimentar mais cachorros para o seu intento, mesmo sob os reclamos mais retumbantes da vizinhança que não aguentava mais. E, dessa vez, trouxe uns quinze, quase de matar a mulher do coração e de impaciência os irascíveis sofredores das imediações. - Prá quê tanto cachorro, hem? Num basta tu aqui im casa? - Calma, muié, calma. Marcialita abufelou-se e amarrou os filhos no cós da saia, zarpando para longe dali. Aí Doro trabalhou em paz e deixava estampada aquela cara de satisfação, só entristecida com as intervenções das autoridades policiais que agora estavam curiosas para saber no que aquilo ia dar por fim. Livre da forma como ficou, Doro apoderou-se das outras dependências da casa, principalmente a cozinha onde ele começou a fazer uns cozimentos com açúcar e outros ingredientes peguentos no maior meladeiro. Não deu outra! Uma explosão do botijão de gás! Ele coçou o quengo e constatou suas limitações com o trato de fogo e fogão naquelas horas. Ôxe, um desmantelo mesmo. Pacientemente, depois da explosão e do entra e sai de gente até de um olho só para testemunhar o sucedido, ele removeu o resto das coisas que ainda julgava por comestíveis e que estavam apregadas nos mais diversos recantos das paredes, provando do resultado o que parecia até gostoso, vez que ele mesmo saboreava com certo deleite, quando não fazia uma careta inchada depois. Uns dias mais, Doro se acorda feliz! - É hoje! Era 24 de dezembro de um ano lá pra trás. Ele começou seu expediente derrubando um pedaço do muro do quintal e escondendo tudo com uma lona plástica preta para que ninguém visse o que estava fazendo. Findada a destruição, escondeu-se dentro do quartinho e só se via o zoadeiro dele remanejando coisas daquele local pro quintal. Nem se comesse bosta de cigano da muita dava para se adivinhar o que ele se propunha a fazer. Mas tome teitei. Passou toda manhã, transcorreu toda tarde e quando anoiteceu, Doro estava todo aprontado com a cara de toda satisfação da vida. Às vinte horas em ponto, Doro arrebenta a lona do muro do quintal e sai berrando: - Jingle bell! É Natal! Hô hô hô!!!! Quando vi o estardalhaço, nossa! Fui o primeiro contemplado com a surpresa. Diga-se: a coisa mais tresloucada que já vira na vida. Um monstro! Aquilo nunca fora papai Noel, parecia mais assombração de esquálido e feioso ser dos quintos dos infernos. Eu só identifiquei o Doro pela fala e pela maneirice de seus jeitos. Imaginem uma coisa estupidamente extravagante e duplicadamente horrorosa! Imaginaram? Multipliquem por mil e ainda será pouco para dar uma ideia rala da estripulia dele. Pois bem, ele fez um ar de riso para mim, meteu a mão no saco e entregou-me um pacote dizendo que tinha um panetone dentro. Na verdade, era um cuscuz com meio mundo de coisa que nem tive coragem e muito menos atrevimento nem de cheirar quanto mais de digerir. Aos pulos e aos gritos Doro chamava as crianças do lado e danou-se a entregar um nego-bom que ele mesmo fizera para a alegria delas. Alegria, agora; depois vocês vão ver a desgraça. Quando fez as entregas ali, deu umas palavras de ordem de comandante daquela doidice e partiu com seu hô hô hô. A catrevagem toda resultou num trenó; as renas, os guenzos; a vestimenta, uma tristeza de dar dó; os presentes, nego-bom e outras guloseimas enjoativas. E o barulho, ensurdecedor. Lá vai aquela desgraça rua afora se passando por papai Noel. Resultado: dois problemas gravíssimos! Saúde e segurança públicas. Cadeia. Até então ele não havia inaugurado os serviços cinco estrelas duma delegacia. E ainda insistia que era o papai Noel. Pode? Acusação: a primeira, por causa da assombração. Todo mundo se cagou de medo, principalmente as criancinhas. Num ficou um pé de gente na rua por onde ele passou. A segunda: caganeira. Os bruguelos que comeram o nego-bom que ele distribuiu, estavam todos hospitalizados com uma diarreia braba, morre mais num morre. Uma correria dos diabos. Verdadeiro infanticídio em massa. Mediante esse rebuceteio todo, tive que intervir em seu favor. De cara o delegado ameaçou que não haveria na face da terra advogado capaz de retirar o sujeito daquelas ferrenhas grades. Deu trabalho. Não era só o delegado, a população toda duvidava quem tivesse o desplante de requisitar alvará de soltura para ser tão perigoso que se tornara o inimigo público número 1 daquele lugar. Deu trabalho, mas deu mesmo! Por sorte, as criancinhas depois de quinze dias de medicadas, se salvaram daquele troço todo. Sorte das grandes. Apenas se intoxicaram em demasia. Ainda bem. Consegui que fosse relaxada a prisão dele e quando instei sobre o ocorrido, ele com a maior cara lisa, ainda balbuciou: - Hem, hem, as criancinha nem pudero vê papai Noé direito. É mole? Tava ele já enganchado numa beldade todo libidinoso parecendo mais que nada tinha acontecido. Pode? E vamos aprumar a conversa aqui

Imagem Reclining-nude, do artista plástico francês Frédéric Bazille (1841-1870)

 Curtindo a álbum com a Symphony nº 3 - Symphony of Sorrowful Songs Op. 36 (1976), do compositor polonês Henryk Górecki, with Symphonieorchester des Südwestfunks-Baden-Baden/Ernest Bour & Stefania Woytowicz.

O FILÓSOFO QUE RI – O filósofo grego Demócrito de Abdera (460-370aC), tratou acerca da ética e da physis, cujo estudo caracterizava os pré-socráticos, e foi o maior expoente da teoria atômica, De acordo com essa teoria, tudo o que existe é composto por elementos indivisíveis chamados átomos (do grego, "a", negação e "tomo", divisível. Átomo= indivisível), e avançou também o conceito de um universo infinito, onde existem muitos outros mundos como o nosso. Para ele, o cosmos (o Universo e tudo o que nele existe) é formado por um turbilhão de infinitos átomos de diversos formatos que jorram ao acaso e se chocam. Com o tempo, alguns se unem por suas características (às vezes, as formas dos átomos coincidentemente se encaixam tão bem como peças de quebra-cabeça) e muitos outros se chocam sem formar nada (porque as formas não se encaixam ou se encaixam fracamente). Dessa maneira, alguns conjuntos de átomos que se aglomeram tomam consistência e formam todas as coisas que conhecemos, que depois se dissolvem no mesmo movimento turbilhonar dos átomos do qual surgiram. Da sua obra destaco: Muitas vezes ouvi dizer que não pode existir nenhum bom poeta sem entusiasmo da alma e sem um sopro como que de loucura. Tudo o que ele escreve com entusiasmo e sopro sagrado é, sem dúvida, belo. Homero, porque recebeu uma natureza divina, construiu uma estrutura ordenada de versos variados, uma vez que não seria possível sem uma natureza divina e demônica realizar versos tão sábios e belos. [...] A união sexual é uma pequena apoplexia, pois o homem sai do homem e dele se arranca apartando-se como que por um golpe. A natureza e a instrução são semelhantes, pois a instrução transforma o homem, mas, transformando-o, cria-lhe a natureza. Quem ouvir de mim estas sentenças com inteligência, realizará muitos atos dignos de um homem e não realizará muitos atos vis. Quem escolhe os bens da alma, escolhe os divinos; quem escolhe os do corpo, escolhe os humanos. É belo opor obstáculo a quem comete injustiça; senão, não de participar da injustiça dele. É preciso ou ser bom ou imitar quem o é. Não é pelo corpo, bem pela riqueza que os homens são felizes, mas pela retidão e muita sabedoria. Não por medo, mas por dever, evitai os erros. Coisa grande é, mesmo no infortúnio, pensar naquilo que é preciso. Arrependimento de atos vergonhosos é salvação da vida. Quem comete injustiça é mais infeliz que o que sofre injustiça. É magnanimidade suportar com doçura a falta de tato. Ceder à lei, ao chefe e ao mais sábio é por-se em seu lugar. À censura dos maus o homem bom não dá atenção. É duro ser governado por um inferior. Quem fosse totalmente submisso ao dinheiro jamais poderia ser justo. Para a persuasão a palavra frequentemente é mais forte que o ouro. Quem adverte aquele que pensa ser inteligente, trabalha em vão. Muitos, sem ter aprendido a razão, vivem segundo a razão. Veja mais aqui, aqui e aqui.

A PRISÃO DE SÃO BENEDITO – No livro A prisão de São Benedito e outras histórias (Bagaço, 1991), do escritor Luiz Berto, destaco o conto homônimo: Numa das reuniões da Diretoria do Clube do Jaguara, acertou−se que a Coréia estava precisada de uma festa. O Jaguara funcionava num salão amplo do Alto do Lenhador, onde está  localizada a Coréia, a chamada zona do meretrício. Por via disso, o Jaguara era o clube das putas e, em consequência, o mais animado do carnaval. O seu bloco, com um jacaré imenso em cima do carro alegórico, ganhava, de longe, em beleza e alegria dos outros blocos de Palmares, quando invadia as ruas da cidade nos dias de carnaval. Era de se ver o negro ZéMaria, todo vestido de branco, a comandar o abre−alas, com seu apito e o bastão colorido nas mãos. Compondo a onda, a turma que vinha à frente do carro alegórico, se destacava a elite da Coréia, todos com camiseta listrada de encarnado−branco, calça comprida branca, sapato Conga azul e boné branco de marinheiro, além do lança−perfume na mão: Aranha, Vaca Braba, Amara Brotinho, Odete, Amara Pé−de−Pato, Maria do Sinal, Elza Macho, Zefa Chupona, Luiz Cabeção, Pentelho−de−Burro, além de Dona Maçu e os negrinhos da família Piabinha. Quando a orquestra soprava Vassourinhas, o calçamento da rua era pouco para conter o frevo sublime esparramado por tão habilidosos dançarinos. Eu acho que o mundo se acaba e a gente não torna a ver coisa mais bonita. Então, eu dizia, a Diretoria deliberou que a Coréia, além do Jaguara, devia ter também a sua festa. Os ferroviários tinham a sua Santa Luzia; o povo das Pedreiras fazia a novena de São Sebastião; Santo Amaro, na praça de mesmo nome, era venerado pela gente do Matadouro; Nossa Senhora da Conceição, padroeira e madrinha, abençoava a cidade em sua festa no Centro. Isso sem contar São Pedro, Santo Antônio e São João, ricamente festejados no meio do ano. Até Água Preta, pois sim, exaltava com uma festa das melhores o seu milagroso São José da Agonia. Dia de Reis em Catende, nem se fala. Só na Coréia não se tinha festa. Invenção de Seu Luiz, Amaro Quirino e Zé Maria, diretores do Jaguara, a festa da Coréia tomou embalo de pronto e mobilizou os homens de bem e as pessoas gradas. A Banda 15 de Novembro saiu anunciando pelas ruas e, no dia marcado, a alvorada festiva cobriu de fumaça o Alto do Lenhador com os fogos de Pimpão. De manhã as mulheres−damas, qual colegiais enxeridas, participaram com alvoroço da corrida no saco, da corrida do ovo na colher e da corrida de velocidade. Houve muito barulho no jogo de quebra−panela, e as barracas de jogos de azar começaram cedo a arrancar dinheiro dos viciados. À tarde, a sensação ficou por conta do cabo−de−guerra, disputa animadíssima envolvendo séria rivalidade entre os funcionários da Rede Ferroviária e os trabalhadores dos abatedouros de gado bovino do Matadouro. Era a Turma do Óleo contra a Turma do Sangue. Calção vermelho e camiseta branca, a Turma do Sangue se abastecia de cachaça e cerveja desde as primeiras horas da manhã, cercada e incentivada por um lote de putas assanhadas. Os homens da Turma do Óleo vestiam calção preto e camiseta branca, e também desfilavam, atletas musculosos, cercados de raparigas, prometendo até a morte para chegar à vitória. No bilhar de Paizinho, as mesas de sinuca foram recolhidas, e um barulhento fuá propiciou o grande baile da festa. A orquestra, uma sanfona, um triângulo e um tambor de borracha, tocou, de manhã à noite, com pequenos intervalos para a rodada do pires na hora da cobrança da cota aos cavalheiros. A tantas ia a festa, animada e respeitável, que pouca gente prestou atenção na capela armada ao lado do jardim. Capela modesta mas decente, montada a tala de bambu, coberta de folhas e cheia de velas acesas. Como toda festa de rua que se preza, também esta tinha seu santo. Lá estava ele de mãos postas: um São Benedito de olhos grandes, velando pela alegria da Zona. Santo pretinho e humilde como a desprezada população da Coréia. As mulheres se benziam reverentes, e os homens, antes de entornarem a aguardente goela adentro, jogavam um tiquinho "pro santo". Festa sem santo, como é de lei, não é festa. E a da Coréia tinha o seu padroeiro majestoso e entronizado, milagroso e vigilante, levando o consolo da fé àquele antro de perdição. Mas, alegria de mundiça é curta, e a nação de gente enredeira, moralista, cresce em qualquer canto. Pessoas existem que sentem raiva dos prazeres dos humildes, dos perseguidos e dos marginalizados. Tantofuxicaram, que levaram aos ouvidos do padre aquela presença invulgar na Coréia: São Benedito velando festa de zona. Vá lá que seja preto, mas não é motivo para tanto. Além do mais, não tinha sido nem benzido, conforme manda o regulamento canônico. Compraram a imagem na livraria de Manoel Pezão e ela foi direto da vitrine para a capela. Na maior calada. Além do mais, uma capela que era puro deboche: taliscas de bambu, folhas de bananeiras, ramos de laranjeira. E por aí vai. Reclamavam as beatas dos homens de família que prestigiavam a festa e subiam a ladeira para beber com as raparigas. Mau exemplo que devia ser reprimido com energia. E o despropósito chegava ao auge, fazendo a banda tocar pelas ruas de família, anunciando a festa da Zona. Pois sim, senhor, uma putaria como poucas! O padre não era de deixar serviço para depois. Velava e defendia seu rebanho como já não fazem os padres de hoje em dia. Santo e piedoso homem que tomava torrado e dava cascudos nos meninos na procissão. Entrou em contato com as autoridades competentes e arrancou do Poder Judiciário o indispensável mandado, que foi entregue ao Delegado. Tudo dentro da Lei. A autoridade policial designou a patrulha, e esta, brava e ciosa, subiu a ladeira para fazer voltar ao caminho do bom senso tão enxerido santo. –Os homens tão subindo! A multidão se inquietou, mas relaxou de pronto quando os soldados se dirigiram à capela. Ao invés de raiva, o povo se viu tomado por uma súbita vontade de rir. Uma sonora gargalhada tomou conta da Coréia, passou pelo Beco do Esconde−Negro, Rua do Limão, desceu pela Ladeira da Viração e invadiu Palmares. Riam-se do santo, preso e escoltado. Os soldados também se divertiam e a multidão esculhambava o santo. –Eita neguinho, vai dormir no xilindró. – Bem feito, já se viu santo na zona... E a procissão desceu a ladeira, os soldados com o santo à frente, até a porta da Delegacia. E o episódio, que deveria passar por discreto, tomou conta do mundo e atraiu até repórteres dos jornais do Recife. A cidade dividiu−se, e a intimidade do santo foi devassada. Contava−se das estrepolias que ele teria feito em vida, antes de ascender aos céus. Circulou uma história sobre uma rapariga que ele teria tido na Bahia, até que alguém lembrou que, apesar de preto, ele era santo estrangeiro. Os racistas se aproveitavam: −Só podia ser preto! Do episódio, restou a glosa de Abel Fraga, saudoso frequentador da Coréia, que imortalizou a prisão com o seu mote: Prenderam São Benedito / Por frequentar a Coréia. Guardo o original que ele me passou com sua caligrafia rebuscada, aprendida no começo do século: O povo ficou aflito / Por uma simples asneira / Por essa ação corriqueira / Prenderam São Benedito / Estava tudo contrito / Mas por estar na Coréia / Fizeram uma má idéia / Mas era boa a intenção / Só fizeram essa prisão / Por frequentar a Coréia. Apesar de ser bendito / E ser tão conceituado / Desceu do alto escoltado / Prenderam São Benedito / Não foi um gesto bonito / Nessa infeliz odisseia / Nem nos tempos de Pompéia / Viu−se tamanho pecado: / Um santo trancafiado / Por frequentar a Coréia. Veja mais aqui e aqui

CORPO PORTÁTIL – No livro Corpo portátil (Escrituras, 2002), do poeta e professor Fernando Fabio Fiorese Furtado, destaco inicialmente o poema Pin-up sobre fundo vermelho: Para abolir o álibi, / as pernas refluem da sombra / ao olhar: corpo rendido / por um deus inútil. / Sur le mur mentira cette affiche: / nem descuido, nem artificio, / apenas um mito imóvel. / Nenhum pormenor esconde, / nada entre o olho e o horizonte / senão a demasia das unhas. Também O autor quando jovem: Embora a mímica aborreça / e mintam as testemunhas / e o que inquieta o objeto / o outro mal começava / nas dobras do processo. / Como um assassino suave / ainda ostenta o que vai morrer. / Se o braço esquerdo descuida, / escreve sobre o corpo / a cifra de toda ficção. Por fim, o poema O corpo e as cidades: De quantas cidades estive / (e não digo as que de passagem, / guardei apenas uma rubrica / e o rumor do jornal dormido, / nem aquelas em livro escritas / ou contrabando dos amigos, / em cartões postais e souvenirs) / pouca vestiram este corpo / camisa feita de encomenda, / sem rugas, penses, rebordos. Veja mais aqui, aqui e aqui.

A COMÉDIA - Na obra Teatro Vivo (Civita, 1976), organizada por Sábato Magaldi, encontro que: Originada da parte mais alegre do ditirambo – o cântico improvisado das primitivas procissões dionisíacas – a comédia encerrava os festivais atenienses mostrando aos espectadores que o teatro é uma grande brincadeira. Os gregos associavam a comédia a personagens ridículas representadas como pessoas absurdas e ofensivas. Apresentada como uma forma burlesca da tragédia que a precedera, a comedia nem por isso deixava de dirigir criticas mordazes às instituições e às pessoas notáveis. Os próprios deuses eram objeto da sua contundente jocosidade. Quando entraram em contato com os gregos, os romanos ficaram particularmente encantados com as divertidas possibilidades que os comediógrafos ofereciam para distrair patrícios e plebeus. Mas antes de adotar o gênero, tiveram o cuidado de apagar dele qualquer traço político ou religioso, encampando o que as comedias tinham de mais secular e lúdico. Assim, às contundentes ironias políticas de Aristófanes, preferiram seguir o exemplo das sátiras de Menandro (342-291aC), mais elegante e com marcada preferencia por temas individuais – problemas familiares e amorosos, aventuras de tristes crianças abandonadas e reencontros românticos. Veja mais aqui e aqui.

IN THE CUTE – O filme de suspense In the cut (Em carne viva, 2003), dirigido de forma delicada por Jane Campion, com roteiro da diretora e de Susanna Moore, também autora do livro que originou o filme, contando a história de uma professora solitária que inicia um relacionamento com um detetive que investiga um assassinato ocorrido na vizinhança, sendo que o relacionamento de ambos aos poucos toma rumos cada vez mais sombrios. Aí, uma escritora vê-se em meio a uma trama que envolve sua irmã e um psicopata que corta suas vítimas em pedaços. No filme o destaque vai para a belíssima atriz estadunidense Meg Ryan. Veja mais aqui.

 IMAGEM DO DIA
A arte do fotógrafo estadunidense Alfred Eisenstaedt (1898-1995).

DEDICATÓRIA
A edição de hoje é dedicada ao Dia Nacional de Mobilização dos Homens pelo Fim da Violência Contra a Mulher