Ao som dos
álbuns Hommage à Nadia Boulanger (2005) e Depuis 1904 J'enseigne La
Musique (Hughs Desailes, 1973), destacando as pelas Trois pièces pour
piano: Pièce No 1 in D-Minor (1914), Désespérance (1902), Poème
d'amour (1907) e Fantaisie pour piano et orchestre (1912), da compositora
e educadora francesa Nadia Boulanger (1887-1979). Veja mais aqui.
OUTRESTÓRIA DE NOIT&DIAS... - No meio do caminho havia
outra pessoa e como tenho a mania de falar sozinho por arrebetados noit&dias
com suas mortalhas indesejáveis, queixas longínquas e chagas incuráveis, sem
data nem mapa, não me dei conta logo. Ali eu me via na poça pelos descampados
da solidão assombrosa e a viver do jeito que podia e desse – era diante do
espelho que eu controlava o inimigo aos ditirambos avulsos para exaurir o porvir
convulso pelos introitos de rebotalhos – o poeta não para de sonhar jamais,
porque os mortos não mais amam, embora tenham sido e serão sempre. Foi então
que ela apareceu-me Sigrid Undset: Todos os meus dias desejei
igualmente percorrer o caminho certo e seguir meu próprio caminho errante... Ninguém e nada pode nos
prejudicar, criança, exceto aquilo que tememos e amamos... Ante minha solidão e
dela o dentro e o fora e o que ardia nada impropriamente espreitava porque a
lua se escondeu em mercúrio e se aproximava de marte, igualmente eu perdido numa
encruzilhada. Ela me falou dos analectos de Confúcio: a arte da
arquearia sem disputa nem ou eu ou ela. Curvou-se porque era eu o seu oponente
e mutuamente emergiu o convite para bebericarmos a festa dos ninguéns – havia
de retificar o coração com o arco e a flecha deloutra na prática de construir a
humanidade. Nem tão lacônico disse-lhe que não seria jamais servo da ambição alheia nem da minha,
e não pedi ajuda para minha pobre alma, corvo Poe; nem perguntei se
alguém me entendia, James Joyce; nem fiquei num quarto de hotel,
O’Neil; nem amei tantas coisas e pessoas, Tolstoi. E digo mais: não
pedi que afastassem as pastilhas de Lewis Carol, nem dormi o sono de Byron,
nem senti o frio de Truman Capote. E mesmo que quisesse não me serviriam
uma taça de champanhe, Tchekhov. Ela, então, caminhou Emily Dickinson
pelo nevoeiro que aumentava e quantas vezes não me vi sozinho no topo do Chomolugma: nenhuma autocompaixão no
meu périplo, porque mesmo que olhos não vissem os sentidos desconheceriam. Poderia
ser diferente, quantas escolhas no caminho para o autoconhecimento profundo
entre sambaquis que apareceram no Orbe Dourado do Alaska, o inacessível à palma
da mão. Era ela agora Grazia Deledda: Todos mudamos, de um dia para o
outro, através de evoluções lentas e inconscientes, vencidos por aquela
inelutável lei do tempo que agora deixa de apagar o que escreveu ontem nas
misteriosas mesas do coração humano... Talvez eu seja mesmo um caso incurável e precise
sempre retornar ao local de nenhuma saudade, só porque lá não há mais amizade
nem preciso procurar por mim nem ninguém, porque fora de prumo e esquadro entre
nomes infames sem que nada possa desacreditar, porque nunca aprendi a arte da
fuga, deveria ter ido há mais tempo sem ter nem pra onde. Ela agora Selma Lagerlöf: Ninguém
pode livrar os homens da dor, mas será bendito aquele que fizer renascer neles
a coragem para a suportar... A alegria é a dor que se dissimula - à face da
Terra só existe a dor... Bem dito. Tudo fiz do que não foi feito nem será – se eu
tivesse o mar seria outro. Até agora nada, sou apenas um bêbado solitário sem
nome e faço o que posso: sincero consigo e mutuamente com todos - a boca
mandarim ao ouvido. E a noit&dia seguinte olhava a lua sem distância. Num
dar de olhos ela me deu o favor de seu amparo, um talismã ao anoitecer para que
no sonho dela eu sonhasse. E suas asas multicores roçaram minha face e seus
beijos eram santo remédio fulgurante para que eu pudesse entrar no frescor de seu
corpo em festa toda vida com a fúria de sua fome de mulher. Dali não perdi
nenhum de seus passos, mas a vida é a vida, não outra coisa. E como se eu
tivesse sido aniquilado por um raio numa causa perdida, mais que apenas grato
eu pude viver mais que o merecido e ela me deu. Até mais ver.
DOIS
POEMAS
Imagem:
Acervo ArtLAM.
ISTO NÃO É UM PAPEL: Há várias
coisas aqui que são impossíveis de ver: \ um corpo etérico matéria escura,
hologramas a serem deduzidos. \ Uma visão sem olhos, espéculo da minha mão
esquerda. \ Tiro o pó das páginas em branco, \ Eu não tenho ideia de onde eles
vão parar depois do tiro perolado isso sai dos meus dedos. \ Isto não é um
papel, e se for, será exposto ao esquecimento, \ à poeira contínua que assenta
nos meus olhos e muda de rumo.
REGISTRO: Aqui está meu corpo,
movido pelo sopro do tempo. \ Aqui a tentativa das palavras, e a memória do
centro cerziu tudo: \ para o estrangeiro, esquecido para a memória ao sublime e
ao profano, \ para o bando ao qual eu pertencia antes de andar sobre dois
membros. \ Se eu não fosse mestiço se não tivessem me negado as línguas
originais das minhas avós \ Eu saberia o que fazer com um kipu nas mãos ou com
uma roda medicinal em locais sagrados. \ Eu saberia pronunciar meu nome em
Nahuatl ou Quechua. \ Uma irmã me lê tarô e reconheço a reflexão fragmentada de
vários continentes \ no meu sangue o eco de canções e histórias tão diferentes,
\ em uma mancha de pigmento tecido na pele. \ As cicatrizes são tão antigas que
caem umas sobre as outras. \ Multidões em meus poros eles cabem em um pôr do
sol, batida após batida, códice após códice.
Poemas da poeta e artista visual costariquenha
Nidia Marina González Vásquez.
VOZES DE CHERNOBYL - [...] A morte é a coisa mais justa do mundo. Ninguém nunca saiu dessa. A terra leva a todos - os gentis, os
cruéis, os pecadores. Fora
isso, não há justiça na terra. [...] Existe algo mais assustador do que as pessoas? [...] Não tenho medo de Deus. Tenho medo do homem. [...] Venha pegar suas maçãs! Maçãs de Chernobyl!’ Alguém lhe disse para não anunciar isso, ninguém as
compraria. ‘Não se
preocupe!’ ela diz. ‘Eles
compram de qualquer maneira. Alguns precisam deles para a sogra, outros para o chefe. [...] Eu tenho medo. Tenho
medo de uma coisa, que na nossa vida o medo tome o lugar do amor. [...] A realidade sempre me atraiu como um ímã, me torturou e hipnotizou, e eu queria
capturá-la no papel. Então me
apropriei imediatamente desse gênero de vozes e confissões humanas reais,
evidências de testemunhas e documentos. É assim que ouço e vejo o mundo – como um coro de vozes individuais e uma
colagem de detalhes do quotidiano. Desta forma, todo o meu potencial mental e emocional é plenamente
realizado. Desta
forma posso ser simultaneamente escritor, repórter, sociólogo, psicólogo e
pregador [...] Chernobyl é como a guerra de todas
as guerras. Não há
onde se esconder. Nem no
subsolo, nem debaixo d'água, nem no ar. [...] Mostre-me um romance de fantasia sobre Chernobyl – não existe nenhum! Porque a realidade é mais fantástica. [...] Muitas vezes ficamos em silêncio. Não gritamos e não reclamamos. Somos pacientes, como sempre. Porque ainda não temos as palavras. Temos medo de falar sobre isso. Não sabemos como. Não é
uma experiência comum e as questões que levanta não são comuns. O mundo foi dividido em dois: há
nós, os Chernobylites, e depois há vocês, os outros. Você percebeu? Ninguém aqui aponta que são russos,
bielorrussos ou ucranianos. Todos nós nos chamamos de Chernobylitas. "Somos de Chernobyl." "Eu sou um Chernobylita." Como se este fosse um povo separado. Uma nova nação. [...] O homem convive com a morte, mas não entende o que ela é. [...]. Trechos
extraídos da obra Voices from Chernobyl: The
Oral History of a Nuclear Disaster (Picador,
2006), da escritora e jornalista bielorrussa Svetlana Alexievitch,
Prêmio Nobel de Literatura de 2015 e autora de frases lapidares, tais como: Não há heróis na guerra. Assim que
uma pessoa pega uma arma, ela não pode mais ser boa. Ela não vai conseguir. A
morte é a coisa mais imparcial do mundo.
ANGÚSTIA
DA INFLUÊNCIA - [...] A Influência Poética quando envolve dois
poetas autênticos, fortes procede sempre por uma desleitura do poeta anterior,
um ato de correção criativa que é, na verdade, e necessariamente, uma
interpretação distorcida. A história das influências poéticas produtivas, que é
a história da tradição central da poesia do Ocidente a partir da Renascença, é
uma história da angústia e da caricatura autoprotetora, da distorção, do
revisionismo voluntarioso e perverso, sem o que a poesia moderna, como tal, não
poderia existir [...] Nenhum poeta moderno é um poeta da unidade, seja
qual for sua crença professada. Poetas modernos são necessariamente e
miseravelmente dualistas, porque essa miséria, essa pobreza é o ponto de
partida de sua arte [...] Pode causar estranheza que opiniões de peso
sejam encontradas em obras de poetas, e não de filósofos. A razão é que os
poetas escrevem por meio do entusiasmo e da imaginação; existem em nós sementes
do conhecimento, assim como há fogo na pedra; essas sementes são extraídas
pelos filósofos por um esforço racional, mas os poetas as arrancam a golpes de
imaginação, o que lhes confere um brilho redobrado [...] Já está na hora
de abandonarmos o projeto fracassado de compreender qualquer poema como uma
entidade isolada. Chegou a hora de nos lançarmos à tentativa de aprender a ler
todo poema como a interpretação deliberadamente equivocada que um poeta, como
poeta, constrói em relação a algum poema precursor, ou à poesia em geral
[...] O desvio, ou clinamen entre o poeta forte e seu Progenitor Poético é
executado pelo próprio ente do poeta posterior, e a verdadeira história da
poesia moderna seria, assim, o registro acurado desses desvios revisionários
[...] Só é propriedade do poeta aquilo que for capaz de nomear pela primeira
vez [...] Uma vez que a poesia (como o trabalho do sonho) é mesmo
regressiva e arcaica, e uma vez que o precursor não será nunca integrado ao
superego (o Outro que nos rege), mas sim a uma parcela do id, a desleitura é
natural para o efebo. Mesmo o trabalho do sonho é uma mensagem. ou uma
tradução, e portanto uma forma de comunicação, mas um poema é uma comunicação
deliberadamente distorcida, estropiada. É uma destradução dos precursores. A
despeito de todos os seus esforços, um poema será sempre uma díade, e não uma
mônada, mas uma díade que se rebela permanentemente contra o terror de uma
comunicação unilateral [...] Todo poeta está preso numa relação dialética
(transferência, repetição, erro, comunicação) com outro poeta ou outros poetas
[...] A crítica aristotélica, ou retórica, ou fenomenológica, ou
estruturalista é sempre redutora: o poema é reduzido a idéias, imagens, objetos
ou fonemas [...] Todo poema é o desvirtuamento de um poema-pai. Um poema
não é a superação de uma angústia, mas a própria angústia [...] Interpretação
não existe: só existe a desinterpretação, e toda crítica é uma poesia em prosa
[...] Poesia é angústia da influência, é desapropriação, é uma perversão
disciplinada. Poesia é desentendimento, mal-compreensão, mésalliance [...] Cada
poema é uma evasão não só de outro poema, mas também de si mesmo; o que
equivale a dizer que todo poema é uma interpretação desvirtuada do que poderia
ter sido [...] Minha tese, aqui, que aliás me desagrada, é a de que em
sua askesis purificadora o poeta forte só tem consciência de si mesmo e daquele
Outro que deve, afinal, destruir: seu precursor, que a esta altura bem pode ser
uma figura imaginária ou composta, mas que continua a ser formado por poemas,
poemas reais do passado, que não se deixam esquecer. Porque clinamen e tessera
se esforçam para corrigir ou complementar os mortos, kenosis e demonização
laboram para reprimir a memória dos mortos, mas a askesis é o embate
propriamente dito, uma luta-até-a-morte com os mortos [...]. O artista é
um Édipo cego, que não sabia que a esfinge era sua musa. [...] Trechos
extraídos da obra A Angústia da Influência - Uma Teoria da Poesia (Imago,
1991), do professor e crítico literário estadunidense Harold Bloom (1930-2019),
que em outra obra Como e porque ler (Objetiva, 1998), assinala que: [...]
Recorro, novamente, a Emerson para definir o quarto princípio da leitura: Para
ler bem é preciso ser inventor. O que, para Emerson, seria “leitura criativa”
foi por mim chamado de “leitura equivocada”, expressão que levou meus
adversários a crer que eu sofresse de dislexia. O fracasso, ou o branco, que
tais indivíduos veem quando se deparam com um poema está em seus próprios
olhos. Autoconfiança não é dom, mas o Renascimento da mente, o que só ocorre
após anos de muita leitura. [...] Já na obra Poesia e repressão: o
revisionismo de Blake a Stevens (Imago, 1994), ele expressa que: [...] O
que o gnóstico sabe, o que ele conhece, é sua própria subjetividade e nessa autoconsciência
procura a liberdade, que chama de “salvação”, o que pragmaticamente parece ser
a liberação da angústia de ser influenciado pelo Deus judaico, a Lei bíblica ou
a natureza. Os gnósticos estão próximos, por temperamento, tanto dos primitivos
mágicos de Vico quanto dos poetas pós-iluministas; sua luta com as palavras que
os separavam de sua própria palavra foi essencialmente a mesma de qualquer
criador tardio contra seu precursor. [...]. Veja mais aqui, aqui e aqui.
BALDRAMES
DE BAUDELAIRE
Entrou o poema em contato \ com fagulhas (amanhecendo) \ e amianto criminoso. E morreu. \ O poema vai às estrelas \ se o poeta parar de sonhar. \ Com medidas de som \ e aritméticas do verbo. \ As ondas cósmicas desaguam \ no pensamento humano...
Trecho do
poema Insubstancial, extraído da obra Baldrames de Baudelaire –
poética não recomendada para leitores avulsos ou, mesmo, até convulsos (CriaArt,
2023), do poeta Vital Corrêa de Araújo, organização e seleção do
professor e poeta Admmauro Gommes. Veja mais aqui, aqui e aqui.