SIMONE, UMA CARTA DE AMOR – A sua alma é minha como a sua nudez de vestal
no meu corpo, porque é una comigo e nus vamos adiante. Desde a menina
parisiense de face judia, que não era só a irmã do jovem matemático que cresceu
agnóstica marciana solidária ao sofrimento de todos, que comungamos o nosso
anarquismo e a nossa feiura de coração compassivo, e na nossa inferioridade,
compelidos contra o intolerável uso da força e da violência. Na flor da
adolescência você queria morrer porque não havia alcançado o reino da verdade,
intuindo as aporias de sempre, uma virgem vermelha com sua personalidade
excêntrica. Recusava o alimento em nome de um idealismo e a manter-se virgem,
enquanto ateu, eu seguia entre parábolas e transcendências, na contemplação da
verdade. Vi-a professorinha de estranhas vestes, falava às moças quando ninguém
entendia o coração do mundo em suas mãos delicadas e as constantes enxaquecas até
o fim das aulas. Fomos juntos com a ascensão da doença política e a barbárie da
guerra. Éramos na causa republicana da Guerra Civil Espanhola e na resistência
francesa: tantas atrocidades e abstrações cristalizadas, doutrinas e sistemas
ideológicos da chacina, quanto massacre. Atuamos pelas fazendas, o solidário no
olhar dos mineiros de Saint-Etienne,
os lavradores, os desempregados e famintos. A fábrica roubava o
pensamento e gente virava coisa, marcados pela escravidão como ferro em brasa, a experiência da miséria, a obediência
e apatia nos gestos dos outros, a dolorosa Expérience
de la vie d'usine: coisas fazem o papel de homens, homens o papel de coisas.
Míope e frágil, rifle na mão, o pé numa panela de óleo fervente, era a servente, a vindimadora,
a operária numa sociedade desequilibrada e suicida: não podemos escapar exceto pela privação.
O labor arrancava-lhe
a juventude. Tudo era do contra, a fome grassava, a fadiga de quem,
refratária aos poderes, vagava pelas mentiras de tudo, o intenso viver na
luta libertária diante da injustiça, da expropriação, o sofrimento nas feridas
da carne. Seguimos juntos o aprendizado do sânscrito, o Livro dos
Mortos e Gita. Éramos Nietzsche no anagrama Emile Novis, herética para todas as
concepções: todo cristão é escravo da culpa e do medo, e nós Um de mãos dadas
com tudo e todas as coisas. Sabíamos que o mundo era o lugar adequado: o tempo
como condução, o espaço como objeto. Findamos exilados por nossas recusas, seguíamos
ascetas pelos campos e vinhedos, a cama era um saco forrado no chão, cebolas e
tomates por alimentos. Fincamos como podíamos nossas raízes na pobreza e os nossos
deveres com o outro, nenhuma vaidade, errantes, vagabundos, costurando camisas
de anêmonas, para que não fossem cisnes, mas gente com o sorriso no rosto
amado. O chão nos foi negado, nosso enraizamento de refugiado. Quantas vezes folheei
seu diário, o sonho de uma sociedade sem opressão. Merecia o seu lugar e podia
desposar um lavrador. Eu estava ali e recitamos
juntos e nus milhões de vezes o poema de George Herbert que era a nossa oração.
Eu deitei sua cabeça esgotada
ao meu ombro, juntando farrapos de ideias e o malheur, desenraizada da vida, a sua quase morte pela degradação
angustiante. E me dizia que a dor é a origem do conhecimento e eu guardei
todos os seus dilaceramentos, vulnerabilidades, a sua terrível responsabilidade de pensar, a sua coragem
de ter esperança mesmo sem fundamento e que é a vida para esquecidos e
proscritos. Ouvíamos cantos gregorianos, comíamos apenas a ração e nos
recusávamos a algo mais, porque Deus é o que não somos e o pecado é a miséria. Renunciamos a tudo
com as mulheres de pescadores e nos ajoelhamos para Francisco, porque o exílio é sua casa, um belo
quarto para morrer a nossa obra póstuma. E
nos abraçamos ao ideal cátaro: morrer antes de sucumbir às tentações. Então,
a tuberculose chegou antes, a desnutrição a consumia até cair enferma, extenuada,
pleura inflamada, com o Journal d'usine
às mãos exaustas, até quase não mais pensar, e a parada cardíaca. Fui eu quem lhe banhei no
batismo paradoxal de última hora, porque fui Camus na sua alcova antes do
prêmio. Hoje eu voo no que você mesma disse: Eu posso, portanto, eu sou.
© Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.
DITOS
& DESDITOS: [...] Depois do
meu primeiro ano de fábrica, antes de retomar o ensino, os meus pais levaram-me
a Portugal, e aí separei-me deles para ir sozinha a uma pequena aldeia. Tinha,
de algum modo, a alma e o corpo em pedaços. Aquele contato com a infelicidade
havia matado a minha juventude. Até essa altura, não tinha tido a experiência
da infelicidade, senão da minha própria, que, sendo minha, me parecia de pouca
importância, e que ademais era apenas uma semi-infelicidade, pois era biológica
e não social. Sabia bem que havia muita infelicidade no mundo, estava obcecada
por isso, mas nunca o tinha constatado através de um contato prolongado. Na fábrica,
confundida aos olhos de todos e a meus próprios olhos com a massa anônima, a
infelicidade dos outros entrou na minha carne e na minha alma. Nada me separava
dela, porque tinha realmente esquecido o meu passado, não aguardava qualquer
futuro e dificilmente conseguia imaginar a possibilidade de sobreviver àquelas
fadigas. O que aí sofri marcou-me de forma tão duradoura que, ainda hoje,
quando um ser humano, seja ele qual for, e não importa em que circunstâncias,
me fala sem brutalidade, não consigo deixar de pensar que se deve ter enganado
e que o engano vai certa e infelizmente desfazer-se. Recebi aí e para sempre a
marca da escravatura, como a marca do ferro em brasa que os romanos impunham na
fronte dos seus escravos mais desprezados. Depois disso, passei a olhar-me
sempre como escrava [...]. A plenitude do amor ao próximo é simplesmente ser capaz de lhe
perguntar: “Qual é o teu tormento?” É saber que o infeliz existe, não como uma unidade
numa coleção, não como um exemplar da categoria social etiquetada “infelizes”,
mas enquanto homem exatamente semelhante a nós, que foi um dia atingido e
marcado com uma marca inimitável pela infelicidade. Para isso é suficiente, mas
indispensável, saber pousar sobre ele um certo olhar. Este olhar é em primeiro
lugar um olhar atento, em que a alma se esvazia tal como ele é, em toda a sua
verdade. Disto só é capaz aquele que é capaz de atenção [...] Quando dois seres humanos têm que fazer
juntos, e quando nenhum tem o poder de impor ao outro seja o que for, é
necessário que se entendam. Examina-se então a justiça, pois apenas a justiça
tem o poder de fazer coincidir duas vontades. Ela é a imagem desse amor que em
Deus une o Pai e o Filho, o pensamento comum daqueles que pensam separadamente.
Mas quando há um forte e um fraco, não há necessidade alguma de unir duas
vontades. Não há senão uma vontade, a do forte. O fraco obedece. Tudo se passa
como quando um homem manipula a matéria. Não há duas vontades a fazer
coincidir. O homem quer e a matéria sujeita-se, o fraco é como uma coisa [...].
A criação é da parte de Deus um ato não
de expansão de si, mas de retraimento, de renúncia. Deus e todas as criaturas,
isso é menos do que Deus apenas. Esvaziou-se desde então nesse ato da sua
divindade; [...] Deus permitiu que
existissem outras coisas, coisas distintas dele e valendo infinitamente menos
do que Ele. Pelo ato criador, Ele negou-se a si mesmo, tal como Cristo nos
prescreveu que nos neguemos a nós mesmos. Deus negou-se em atenção a nós para
nos dar a possibilidade de nos negarmos por Ele. Esta resposta, este eco, cuja
recusa depende de nós, é a única justificação possível para a loucura de amor
do ato criador. [...] Trechos da obra A espera de Deus (Assírio e Alvim, 2005), da filósofa e escritora
francesa Simone Weil (1909-1943),
que se licenciou da universidade para se tornar operária, com o objetivo de
estudar o cotidiano das fábricas. Também lutou na Guerra Civil Espanhola e
participou da Resistência Francesa. Com seu pensamento ela expressa: [...] A
contradição não é somente o cume ao qual deve chegar uma inteligência honesta
consigo mesma, mas também a característica de Deus, onipotente e onisciente,
pessoal e impessoal, uno e trino, puro sofrimento e pura alegria. Tais
contradições não se podem explicar com a teologia, mas somente contemplar na
“loucura do amor” e da mística. [...]. E
acrescenta: [...] Comungar com o
sofrimento do outro, e não apenas fazer teorias sobre ele; participar das
aflições do outro, e não apenas dissertar sobre elas; mergulhar profundamente
na dor do mundo até o ponto de fazê-la sua, não ficando longe dela e tratando-a
assepticamente. [...]. Entre suas obras estão O enraizamento (EDUSC, 2001), Aulas de filosofia (Papirus, 1991), A gravidade e a graça (Martins Fontes,
1993), Opressão e liberdade (EDUSC,
2001), A condição operária e outros escritos sobre a opressão (Paz e
Terra, 1979), Pensamentos desordenados acerca do amor de Deus (ECE, 1991),
A fonte grega (Cotovia, 2006), Pela supressão dos partidos políticos
(Âyiné. 2016), entre outras. Sobre sua vida e obras: Simone Weil: a força e a fraqueza do amor (Rocco, 2007) e Simone
Weil: uma síntese entre mística e compromisso sociopolítico (Paulus, 2012), ambos de
Maria Clara Lucchetti Bingemer; A filosofia de Simone Weil:
uma mística da ação e da contemplação (Sísifo,
2017), da professora Maria Simone Marinho Nogueira; Simone
Weil. A razão dos vencidos
(Brasiliense, 1983), de Ecléa Bosi; A
pobreza e a graça: experiência de Deus em meio ao sofrimento em Simone Weil
(Paulus, 2013), de Alexandre Andrade Martins; Simone Weil: Testemunha da paixão e da compaixão (EDUSC, 2014), de Maria Clara Lucchetti Bingemer. Veja mais
aqui.
AMOR, DE GEORGE
HERBERT - O
Amor deu-me boas vindas, porém retraiu-se / minha alma, em pó e pecado eivada. /
Mas o Amor, de olhar sagaz, observando-me / recuar àquela minha primeira
entrada, / achegou-se de mim, suave, indagando / se algo me faltava. / “Um
hóspede,” disse-lhe, “em mérito de entrar à vossa casa." / Falou o Amor,
“Tu o serás.” / “Eu, o ingrato, o desamável? Ah, não sou digno / de a Vós
erguer os olhos, meu amado.” / O Amor tomou minha mão e, sorrindo, retorquiu, /
“Quem, senão eu, teria os olhos criado? / “Verdade, Senhor; mas eu os turvei;
deixai minha desonra / tomar o rumo que lhe caiba.” / “Acaso não sabes”, diz o
Amor, “quem toda humana culpa assumiu?” / "Meu querido, serei de vossa
mesa, assim, o servo." / “Deves sentar-te,” diz-me o Amor, “e de minha
carne provar.” / Então sentei-me, e de sua carne provei. Poema do poeta anglo-galês George
Herbert (1593-1633), integrante da Escola Metafísica de Poetas.
A MÚSICA DE BIA
VILLA-CHAN
A música está na veia, na convivência e na paixão. Não posso deixar meu
lado artístico guardado. E acredito que já estou colhendo alguns frutos e
reconhecimentos. Venho fazendo amigos, conexões, amizades e intercâmbios
artísticos. As mulheres precisam ocupar espaços.
BIA
VILLA-CHAN – A arte da premiada cantora e multi-instrumentista Bia
Villa-Chan, que lançou em 2018 o Pedacinho de mim e em 2019 Girassons.
Veja mais aqui.
A ARTE DE EMMA LAFLÛTE
O amor
pelos corpos, o amor pela decoração: movimento da vida onírica que dá origem a
um universo mágico. O corpo cativado pela luz, finalmente tratado
com uma suavidade penetrante. Entrega-se sem o aparato necessário; é exposto à
luz do tempo. O sensível e o intelectual se combinam. As modelos nuas parecem
inocentemente enigmáticas e têm seu próprio espaço, sua interioridade
respeitada.
EMMA LAFLÛTE - A arte da artista
conceitual francesa Emma Laflûte, que utiliza técnicas
que ilustram a partir da pintura e fotografia, compondo a partir da imaginação
uma atmosfera particular e íntima do heterogêneo. Filha de pai cego, ela
mistura estados de espirito com base no que sente, vive e pensa, ocupando a
feminilidade grande lugar no seu trabalho. Veja mais aqui.
A ARTE PERNAMBUCANA
A
literatura do escritor, jornalista e sociólogo Alberto da Cunha Melo
(1942-2007) aqui.
O cordel
do poeta, cantador, violeiro
e repentista Otacílio Batista (1923-2003) aqui.
A poesia
de Carlos Pena Filho (1929-1960) aqui.
A arte
de Maurício Silva aqui.
A música
de Isaar França aqui.
A
fotografia de Luiz Santos aqui.
O Maracatu
Real da Várzea aqui.
Sinhá
Terta: uma forte presença na minha vida, de Tereza Figueiredo aqui.
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