A SOLIDÃO DE COLERDIGE - Sempre escapei por pouco, não havia outro
jeito, a sorte assim, desde sempre. Na minha imaginação infantil mórbida,
brincava sozinho. Inventava histórias dos livros lidos, era a forma de não me
sentir rejeitado pelos outros da minha idade, adorado pelas tias e parentes que
não tinham tempo para brincar. Meu pai logo se foi para nunca mais. Um tio me
levou e eu com mendigos, severa disciplina, apetite enganado. Nas horas de
folga nadava no New Rider ou pelas ruas sombrias, era o meu mundo de fantasia, quanta separação,
ausência, distância. Já autoproclamado poeta na biblioteca de Cheapside, ouvia
as vozes de sereia das musas: todos os meus paradoxos na cauda dos lunáticos.
Era por pouco e escapava da escola para me alistar no regimento dos dragões: o
mais desastrado cavaleiro. Tornei-me ordenança por causa de uma frase latina. Foi
no aparecimento de Sarah, a imoral de Bath no sarcasmo de Byron. Era a Sara do
meu sonho de embarcar para a América e lá a minha república platônica, o meu
primeiro livro e a Terra Prometida. Eu e ela embalados na cabana de Nether
Stowey. Ela resiliente à beira da pobreza, era quem amei logo com urgência e
pensava nela com indescritível ternura. Para ela O beijo naqueles adoráveis lábios e o sopro do amor na minha
senhora, era o alento da vida, a companheira ideal para um homem. Eu amava, era
amado e feliz. Ela escrevia poemas enquanto eu lutava pela sobrevivência. Para nada
deram os dez números do The Watchman
e o sermão no púlpito unitário. Novos fracassos acumulados e alguns anjos
disfarçados em socorro. Confundido como contrabandista ao perambular pela costa
do Canal da Mancha, periogoso revolucionário enquanto uma poesia simples e
mágica era apenas o que eu queria. Sucumbi ao ópio e ao reumatismo, sonhando
Xanadu e ir para Malta para que me deixassem em paz no meu profundo abismo
pantisocrático. Era, porém, o espinho na carne e o láudano para alívio, porque
o indissolúvel tornou-se insurportável, gangrenando a tranquilidade. Na fuga o carinho de Dorothy da alma ansiosa e eletrômetro perfeito
do seu gosto. Ao meu lado, outra Sara, a de Asra,
a curvilínea animada e atraente ao redor da lareira, o meu desejo desesperado
pela musa extrovertida, a ruiva luz de fogo, o exotismo da quentura da sua pudenda muliebria, e a longa entrada de
beijo do amor verdadeiro. Assim era. Por pouco, escapei: um deus em ruínas e meus
inconsistentes ideais, a armadilha da hipocrisia retórica. Fiquei mudo,
sentimentos dilacerados nas horas sombrias da noite de insônia. Qual Sara, não
sabia. Ora uma, ora outra. Nunca ganhei dinheiro suficiente, as minhas muitas
enfermidades, e ela, uma, a primeira, o queijo tostado, as cartas distantes, a
casa fedia a enxofre, quantas privações, provações. Fugia e afundava em
Spinoza, eu era um sapo em uma rocha. Na real, a imponência destruida,
cristabel e os meus desvarios. A outra e um sorriso, o encanto. Falido e a
viver em vão, escapou-me a vida e me esvaí areia pelas mãos. Mais nada. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.
DITOS
& DESDITOS: [...] A menina que eles
viram era assim: tinha cabelo cor de cenoura e usava duas tranças bem apertadas,
que ficavam espichadas para os lados. Seu nariz parecia uma batatinha bem
pequena, e era todo pintado de sardas. Debaixo de seu nariz havia uma boca
realmente bem larga, com dentes brancos e fortes. A roupa que ela estava usando
era muito engraçada. A própria Píppi é que tinha feito. No começo, ela
pretendia fazer um vestido azul, só que o pano azul era muito pequeno, não dava
para fazer o vestido, por isso Píppi tinha costurado pequenos quadrados
vermelhos em vários lugares. Suas pernas compridas e magricelas estavam
cobertas por um par de meias compridas, uma marrom, outra preta. Além disso,
ela estava usando uns sapatos pretos com exatamente o dobro do tamanho de seus pés.
O pai de Píppi tinha comprado aqueles sapatos para ela na América do Sul, para
que a filha não precisasse se preocupar com a questão quando crescesse, e eram
os únicos sapatos que a menina gostava de usar. [...]. Trecho
extraído da obra Píppi Meialonga (Companhia das Letrinhas,
2016), da escritora sueca Astrid
Lindgren (1907-2002), que assim se expressou sobre livros na infância: Uma infância sem livros não seria infância.
Seria como ser trancada fora do lugar encantado onde você pode ir e encontrar o
tipo mais raro de alegria. Veja mais aqui e aqui.
A BALADA DO VELHO MARINHEIRO, COLERIDGE
I – É um velho Marinheiro / E aborda um desses três. / “Por tuas barbas
grisalhas e pelo fulgor dos teus olhos, / Diz por que é que me deténs! / A casa
do noivo está aberta de par em par / Estão já os convidados o banquete
preparado, Ouvem-se as vozes festivas, E eu sou parente chegado.” / Prende-o na
mão descarnada e assim começa a falar: / “De certa vez um navio…” “Basta,
barbudo, és tonto, / Larga-me, tira essa mão!” / A mão solta-se de pronto. / Com
a luz dos olhos o prende; imóvel o Convidado / Escuta como um menino de três
anos de idade: / Assim faz o Marinheiro / O que tinha na vontade. / Levantou-se
atrás de nós um vento sul de feição, / Seguiu-nos o Albatroz; / E depois dia
trás dia para comer ou para brincar, / Vinha ter com os marinheiros que o
chamavam de alta voz. / Entre névoa ou entre nuvens sobre os mastros, sobre os
cabos, / Nove noites foi pousar. / Entretanto a noite inteira entre o branco
nevoeiro, / Brilhava o baço luar.” / “Deus te defenda, Marujo de todos os
inimigos! / Porquê esse olhar atroz?” / “Com o arco e uma seta / Eu matei o Albatroz.”
II - Era à direita
agora que o sol se levantava, / Também de dentro do mar; / Sempre em névoa
oculto à esquerda inclinava o vulto / Para de novo ao mar voltar. / Continuava
soprando o vento sul de feição, / Mas já sem ave ditosa que viesse ao pé de nós;
/ Para comer ou para brincar, / Não mais tornaria a vir aos apelos de alta voz.
/ Água, água a toda a volta / e as pranchas a encolher; / Água, água a toda a
volta, / E nem gota para beber. / O oceano apodrecia: / Meu Deus, meu Deus e
que isto se haja podido passar! / Viam-se ali rastejar seres de lama com patas
/ Por sobre a lama do mar! / Pela noite à roda, à roda à roda em tonta ciranda,
/ Dançava o corpo-santo; / Entretanto a água ardia como luz de bruxaria / Em
azul e verde e branco. / A uns em sonho aparecia o Espírito que infligia / Este
tormento profundo: / Desde a terra da neblina vinha no nosso encalço / A nove
braças de fundo. / E a língua toda ela de secura e de míngua / Mirrava até à
origem. / Não podíamos falar. Seria o mesmo que estar / Sufocados com fuligem.
/ Ai de mim, novos e velhos todos eles me fulminavam / Com olhar ameaçador: / Ao
pescoço em vez da cruz / O Albatroz me vieram pôr.
III - Foi um tempo
desolado. / Tínhamos os olhos vidrados e a garganta ressequida. / Desolado!
Desolado! / O olhar vidrado e sem vida. / Foi então que de repente no céu para
Ocidente, / Vi qualquer coisa sumida. / Primeiro parecia mancha depois parecia
bruma, / Vinha cada vez mais perto, / E acabou por ganhar forma, / Uma forma,
eu estou certo. / Mancha, bruma, forma, é certo! / E mais e mais se acercava: /
Como querendo escapar a um espírito do mar / Ia e vinha e mergulhava. / Com os
lábios recozidos e a garganta a escaldar, / Perdidos, mortos de sede e todos
emudecidos, / Sem poder rir nem chorar! / Mordi o braço e chupei sangue do
braço chupei / Para lhes dizer: Vela à vista! E duas vezes gritei. / Com os
lábios recozidos e a garganta a escaldar, / Eles me ouviram dizer: / Louvado
Deus! E mostraram a alegria num esgar. / E todos ao mesmo tempo contendo um
fundo alento, / Mais pareciam beber. / Cada um por mim passou / Sibilando como
a seta e o Arco que a tinha lançado.
IV - “Tenho-te medo, Marujo! / Tenho medo, tenho medo da tua mão a descarnar!
E tu és alto e macilento / E sulcado como a areia em que o mar foi quebrar. / Tenho-te
medo, Marujo e aos teus olhos faiscantes, / Tenho medo à tua mão que mirrou e
escureceu!” / Não, Convidado, não temas, / Que este corpo não morreu. / Ninguém,
mais ninguém, eu só, / Só num vasto mar sem fim. / E jamais houve um santo / Que
se apiedasse de mim. / Os vivos louvados sejam / E todos mortos jaziam. / Entanto
juntos comigo / Mil seres de lama viviam. / Olho a podridão do mar, / Logo os
olhos se desviam; / Olho o podre do convés, / Aí os mortos jaziam. / Olhando
para lá da sombra vi as serpentes marinhas: / Moviam-se ao longo de linhas / Cujo
rasto alvejava. / De cada vez que se erguiam uns brancos flocos caíam / E eram
luz encantada. / E para cá dessa sombra via os seus ricos enfeites: / Azul,
negro aveludado e ainda lustro esverdeado. / Enroscavam-se e nadavam, / E a luz
que no mar deixavam / Era um feixe delineado todo a fogo dourado. / Felizes
seres viventes! Sua beleza ninguém / Poderia descrever; / Do coração me brotou uma
nascente de amor / E abençoei-os sem saber: / De mim se apiedou o meu santo
protetor / E abençoei-os sem saber. / Nesse instante eu orei: / Como se fosse
de chumbo, / Desprendeu-se o Albatroz / E sumiu-se no profundo.
V - Ah o Sono, o
sono é doce / E é amado em todo o mundo. / Mãe do Céu seja louvada! / Mais
doçura que essa boda, / Mais doçura e alegria / Sinto em ir até à igreja / Numa
boa companhia. / Ir em boa companhia / E depois todos rezarem / E ante Deus-Pai
se curvarem; / Tanto os velhos e os meninos como os bons amigos nossos / E as
donzelas e os moços. / Adeus, adeus Convidado; / Ainda te quero dizer / Que
apenas sabe rezar aquele que sabe amar / Tanto o homem e a ave como qualquer
outro ser. / E para rezar melhor deve amar com muito amor / Tanto os seres das
alturas como os ínfimos da lama, / Que Deus que nos ama a nós / Todos fez e
todos ama. / Foi-se embora o Marinheiro velho de olhar cintilante / E barbas
brancas do tempo; / Foi-se embora o Convidado, / Sem ter ido ao casamento. / Foi-se
embora aturdido, / Foi-se embora transtornado: / Acordou ao outro dia / Mais
grave e mais avisado.
SAMUEL TAYLOR
COLERIDGE – Poema
extraído da obra S. T. Coleridge - Poemas e
excertos da biografia literária - Texto Poético Bilíngue (Nova Alexandria; 1995),
do poeta, crítico e ensaísta inglês Samuel
Taylor Coleridge (1772-1834), traduzido por Paulo Vizioli. O poeta teve o
seu relacionamento com Sarah Fricker (1770-1845) que com ele
viveu longos anos entre ausências e pobreza, retirou o "H" de seu
primeiro nome para agradar seu marido, dando-lhe constantes apoios como seu
vício espiral fora de controle, simpatizava
com seu ideal filosófico de pantisocracia e atuva
suas várias paixões com outras mulheres. Para ela, escreveu o poema O beijo, em
cujo fragmento expressava: [...] Muito
bem aqueles lábios adoráveis divulgam / Os triunfos da abertura aumentaram, / Ou
justo! Ou gracioso! Eu ofereço a eles que provem / Como
passivo ao sopro do amor… [...]. Havia uma outra na paixão do poeta, a Sarah Hutchinson (1775- 1835), cunhada do seu amigo poeta Wordsworth, um objeto
duradouro da paixão não correspondida e a quem ele escrevia sob o codinome anagramático
de Asra e oriundo do grego antigo como vagina, a pudenda muliebria, como presente para ela por
meio de um desejo físico inextricavelmente emaranhado. Além delas, a sua amiga e companheira literária, Dorothy Wordsworth,
para quem escreveu cartas sobre o seu mundo íntimo e revelando seus conflitos
domésticos, descrita por ela como a "irmã requintada" de
Wordsworth, de temperamento atraente e educada,que
aprendeu a sublimar seus próprios desejos e inclinações, tornando-se uma companheira mais "adequada"
para ele. Veja mais aqui.
QUESTÃO DE ARTE
[...] nos tornamos
mais humanos à medida que nos fazemos mais artistas, e que as conquistas do
homem contemporâneo passam necessariamente pela consciência desse incalculável
legado. Um legado que, como nenhum outro, só nos engrandece e orgulha por suas
conquistas, intenções e realizações. Talvez seja esse o único patrimônio que o
homem jamais renega ou rejeita e que nos identifica, aproxima e universaliza.
QUESTÃO DE ARTE – Trecho extraído da obra Questão de arte: O belo, a percepção estética e o fazer artístico
(Moderna, 2004), da professora e pesquisadora Cristina Costa, que trata contos de fadas, estética e inteligência,
arte e vida social, fenomenologia e arte, o prazer do belo e o desenvolvimento
da sensibilidade, a diferença entre o belo e o bonito, a relatividade do gosto,
o artista moderno, a crítica a arte, o amador e o profissional, a revolução
tecnológica, o ingênuo e o autodidatismo, a arte do inconsciente, o aprendizado
para o arte e para o público, entre outros assuntos. Veja mais aqui.
A ARTE PERNAMBUCANA
A arte do artista plástico Bajado -
Euclides Francisco Amâncio (1912- 1996) aqui
A literatura de Frederico Spencer
aqui.
A Loja
de Répteis de Pedro Severien aqui.
A arte do humorista e consultor Murilo Gun aqui.
A fotografia de Natali Paiva aqui.
Vitória de Santo Antão aqui.
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