DA VIDA E DO VIVER ENTRE NOITES E DIAS – Imagem: arte
do artista plástico brasileiro Wesley Duke Lee
(1931-2010) - Onde estou, não sei, tenho que prosseguir. Chove muito, a noite
escura. Não há como distinguir cada passo para nada, sigo cego pelo umbral, não
há luz alguma, nem céu, nem estrelas. Vejo-me perdido entre trevas, a sombria
demora da ignorância. Sinto que algo se move ao meu redor, passos furtivos,
como se fantasmas rondassem meus temores. Eu me arrepio e procuro desviar
inutilmente, há muita hostilidade. Não sei. Sou perseguido, sei e não sei por
quem, ou o que quer que seja, apenas uma perseguição sentida, algo inescapável.
Talvez minha própria sombra aprontando comigo, ou sei lá quê. Pode ser, não há
como identificar se alguém ou quem, talvez alguma fera, à caça preu vacilar e
cair, medroso, talvez eu mesmo não saiba do meu próprio medo que se agiganta
pra que me veja enredado na minha turva percepção, indefeso, inseguro. Dá pra
me amedrontar até comigo mesmo, não sei até quando posso manter a lucidez,
provável já enlouquecido no meio dessa assustadora ausência do que encontrar
pra me segurar. Vou em frente sem saber pra onde ou razão alguma para tal, só
sei que não posso parar, sinto que se eu assim não fizer, com certeza, um alvo
fácil para o abate, se eu andar talvez possa fugir do que me persegue. Fujo, na
verdade, busco abrigo. Não há pra onde fugir nem me abrigar. Não há onde me encostar,
apenas a escuridão que piso e engulo distâncias sem direção visível, na
vertigem do negrume e a sensação de que estou perdido, cansado, pronto para
desabar meu peso em qualquer lugar, indefeso. Não aguento mais, as pernas não
mais obedecem, meus olhos pesam, meu corpo mais ainda, preciso dormir, não
importa mais ameaças de perigo, que seja. Estou exausto. Vou ficar aqui, fecho
os olhos. Não mais, é o fim. De repente sinto luz nas pálpebras, abro os olhos
inevitavelmente: céu azul, o Sol brilha, a vida é plena, não sei onde estou,
apenas, sentado à beira de um precipício, não sei há quanto tempo, não sei mais
nada, apenas o que vejo e a paz dentro de mim. Pelo menos me dou conta,
felizmente parei e dormi, acho. Agora sei que devo voltar não sei pra onde, mas
voltar. O abismo me espreita, mas é dia. Posso escolher qualquer direção, com
certeza chegarei a algum lugar. Vou me guiar pro leste, pra longe do oeste
abissal que vai de norte a sul. Só me resta o leste, seguir o Sol: a vida. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ: 24 HORAS NO AR!!!
Hoje na Rádio Tataritaritatá: especiais com o
compositor alemão Carl Orff e a sua cantata Carmina Burana & Streetsong; a
violinista britânica Chloë
Hanslip interpretando Mozart, Cinema Paradiso de
Ennio Morricone & Fantasy de Franz Waxman; o
pianista Nelson Freire interpretando obras de Villa-Lobos & Debussy In
Recital; e da pianista e maestro japonesa Mitsuko
Uchida interpretando estudo de Debussy & concerto de Beethoven. Para
conferir é só ligar o som e curtir.
PENSAMENTO DO DIA – Quem precisa de braços e pernas para levar
uma vida rica e atarefada? Não me interessa o que vocês pensam, deixem que eu
me arranjo socinha! Eu vou para mesa sem a ajuda de ninguém! - Palavras da
escritora e pintora de boca francesa Denise
Legrix (1910-2010), que nascera com dismelia – Transtorno do
desenvolvimento das extremidades, considerada como doença congênita que não há
tratamento possível. Por não possuir nem braços nem pernas, desde criança ela
começou a pintar e desenhar com a boca, passando a ser, mais tarde, pintora
profissional, tornando-se membro da Associação de Pintura de Artistas de Boca e
Pé (AAPBP) e fundadora da Associação para Auxílio Mútuo para Crianças e Adultos
Dismélicos (ANEEAD). Ela também é escritora autora da autobiografia em três
volumes Née comme ça (Minha alegria
de viver – Segep-Kent, 1962).
O CORAÇÃO: ANTIGA LENDA AFRICANA DE UGANDA – [...]
o deus superior, Kabeyza-Mpungu, tinha
quatro filhos: o Sol, a Lua, a Escuridão e a Chuva. Não havia nem terra, nem
céu, nem animais, nem seres humanos. Um belo dia Kabeyza-Mpungu criou o céu e a
terra. Criou os muitos animais e criou o homem e a mulher. O ser humano se
assemelhava muito aos animais, exceto por ser dotado de razão. Kabeyza-Mpungu
chamou seus quatro filhos para lhes dizer que em breve os deixaria, e
aconselhou-os a serem ponderados enquanto estivesse fora. Ele não queria que
nenhum mal ocorresse ao homem e aos animais. Mas, enquanto estivesse ausente,
enviaria à Terra, em seu lugar, Mutima – ou o coração – uma parte dele mesmo
para cuidar de suas criaturas. Kabeyza-Mpungu então partiu. Tudo o que dele
ficou na Terra foi Mutima ou coração, um pedaço de Deus não maior que a palma
da mão. Entretanto, não durou muito para que Mutima sentisse saudades de
Kabeyza-Mpungu. “Onde está Kabeyza-Mpungu nosso Pai?”, perguntou Mutima ao Sol,
Lua, Escuridão e Chuva. Tudo o que podiam responder era: “Nosso Pai foi embora,
e não sabemos para onde”. Mutima lamentou, “ah, como eu gostaria de voltar a
ser um com ele outra vez”. Então Mutima voltou-se a seus protegidos, o homem e
a mulher – as criaturas que Kabeyza-Mpungu dotara de razão e intelecto. Tomou
uma decisão. “Vou entrar neles”, disse, “e através de sua capacidade de
raciocínio procurarei regressar a Deus, de geração em geração”. E isso
exatamente foi o que Mutima fez. Desde aquela época, o homem tem em seu peito
Mutima, ou coração, um pedaço de Deus. Agora, com Mutima neles, todos os seres
humanos anseiam por Deus e procuram meios de encontrar Deus. Trecho da
lenda africana de Uganda, registrada na obra African Folk Tales (The Peter Pauper Press, 1963), de Charlotte
Leslau & Wolf Leslau, recolhida do artigo O despertar do coração psíquico do homem (O Rosacruz, jan/fev,
1986), do médico quiroprático estradunidense John Palo.
AUTOCONHECIMENTO, FANTASMAS & TEMORES
HUMANOS - [...] Dois grandes obstáculos, entretanto, dificultam este autoconhecimento,
que Sócrates já reclamava como princípio de toda atuação: o primeiro deles
consiste na própria proximidade, que dificulta enormemente todo intento introspectivo
(do mesmo modo que quanto mais aproximamos um objeto de nossa vista pior o
vemos); o segundo deriva das modificações constantes de nosso tonus vital —
refletidas em nosso humor e em nossa autoconfiança — que nos levam a tingir
sempre o autojuízo estimativo, dando-lhe uma exagerada coloração rósea ou um
injustificado tom de obscuro pessimismo. De fato, o homem, depois de
considerar-se o ‘Rei da Criação’, passa, quase que sem meio-termo, a julgar-se
‘simples barro’; umas vezes se considera como espírito ‘próximo de Deus’ e
outras como ‘máquina de reflexos’. [...] Por que até os mais valorosos guerreiros,
capazes de lançar-se a descoberto contra uma muralha de fogo ou de lanças,
retrocedem espavoridos ante a suspeita de um inimigo tênue e invisível. É assim
que os “mortos” assustam mais que os “vivos”; os fantasmas angustiam e torturam
as mentes ingênuas muito mais que um bandido de carne e osso; em suma, o que
não existe oprime mais do que aquilo que existe. Não obstante, seria injusto
negar existência a isso que não existe, no sentido comum do termo, pois a
verdade é que existe na imaginação, ou seja, criado por quem o sofre e,
justamente por isso, não lhe pode fugir pois seria necessário fugir de si
próprio para conseguir safar-se de sua ameaça. [...] Trechos extraídos da
obra Quatro gigantes da alma: o medo, a
ira, o amor, o dever (José Olympio, 1994), do sociólogo, psicólogo e
psiquiatra cubano Emílio Mira y López
(1896-1964), refletindo com rigor científico sobre a origem biológica e social
de cada manifestação que leva a vítima a ter de elaborar uma verdade e a estratégia
bélica para enfrentamento das batalhas individuais contra os gigantes criados
pelo próprio ser humano.
ZANONI - [...] Ali, entre aquelas
lúgubres paredes, o astro matutino brilhava por entre as barras da grade sobre
aqueles três seres, nos quais estava concentrado tudo o que os laços humanos
podem oferecer de mais misterioso e encantador; tudo o que há de mais
misterioso nas combinações da mente humana; a Inocência entregue ao sono; a
Afeição confiante que, contentando-se com um olhar e um contato, não prevê as
mágoas; e a fatigada Ciência que, depois de penetrar todos os segredos da
Criação, vem, por fim, achar na Morte a solução desses segredos, e
aproximando-se já da tumba, ainda se abraça com o Amor. Assim, lá dentro viam-se
as tristes paredes de um calabouço; e, no exterior, cheio de mercados e salões,
palácios e templos, reinava a Vingança e o Terror, forjando negros projetos e
contra-projetos; de um lado para outro, flutuando sobre a crescente maré das
agitadas paixões, oscilavam os destinos dos homens e das nações; e a estrela d’alva,
desvanecendo. Se no espaço, fitava com olho imparcial a torre da igreja e a
guilhotina. Radiante, começa a aparecer a luz do dia. Lá, nos jardins, as aves
renovam seus cantos favoritos. Os peixes saltam brincando nas frescas águas do
rio Sena. A alegria da divina natureza e o buliçoso e discordante ruído da vida
mortal, novamente despertam: o comerciante abre as suas janelas; as raparigas,
ornadas de flores, dirigem-se para as suas lides; operários correm, com passes
ligeiros, aos trabalhos diários nas oficinas, que as revoluções, derribando os
reis e os imperadores, deixam, como herança de Caim, aos pobres e rústicos; os
carros gemem debaixo do peso das mercadorias; a tirania sobressaltada madruga e
se levanta com o rosto pálido; a Conspiração, que não dormiu, escuta atenta o
relógio murmurando no coração: “Aproxima-se a hora”. Nas avenidas do salão da
Convenção vão-se formando grupos, em cujos semblantes se vê pintada a
ansiedade; hoje se decide a soberania da França! Nos arredores do Tribunal,
nota-se o ruído e movimento do costume. Não importa o que o Fado está
preparando; neste dia cairão oitenta cabeças! [...] Assim terminou o Reinado do
Terror. A luz do novo dia iluminou o calabouço. A gente corria, de cela em
cela, a levar a feliz notícia. Os alegres presos se mesclavam com os
carcereiros, os quais, de medo, também mostravam ar alegre. Os presos corriam
embriagados de prazer, por aquelas espeluncas e por aqueles corredores da
terrível casa que, em breve, iam deixar. Entraram numa cela, esquecida desde a
manhã anterior. Ali acharam uma mulher ainda moça, sentada sobre a sua
miserável cama, com os braços cruzados sobre o peito, a face levantada para o
céu os olhos abertos e um sorriso nos lábios, que revelava não só serenidade,
mas até felicidade. A gente, ainda no tumulto de sua alegria, retrocedeu cheia
de respeito. Nunca, na vida, haviam visto tanta beleza; e quando se aproximaram
silenciosamente, ao lado daquela formosa mulher, viram que os seus lábios não
respiravam, que o seu repouso era o de mármore, e que a beleza e o êxtase eram
de morte. Trechos extraídos do romance Zanoni (Zéfiro, 2009), do escritor e dramaturgo inglês Edward Bulwer-Lytton (1803-1873),
contando a história vivida por um conde, uma cantora de ópera e um aprendiz de
pintor na busca pelos ideais e a compreensão da alma.
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