OUTRA FILHA DA DOR: LUTAR & ENLOUQUECER – Solange Lourenço
Gomes (1947-1982) – Ela que veio de Campinas para fazer
o colegial e, logo após, estudar Psicologia no Rio. A partir de então passou a
participar de grupos de estudos marxistas, quando caiu na clandestinidade ao se
juntar à Dissidência da Guanabara. Foi, então, denunciada como supostamente
envolvida no sequestro do embaixador estadunidense, quando entrou para o grupo
Organização Pará-Partidária (OPP). Foi nesta organização que ela foi denunciada
por participar de assaltos a banco e carros, afora trabalhos de agitação e
propagada. Depois disso passou a integrar a Frente de Trabalho Armado e a
Frente Operária. Foi então perseguida por estar associada a movimentos que enfrentavam
a repressão do período militar ditatorial dos anos 1960-80. Neste cenário ela
mudou-se para a Bahia quando, no dia da reinauguração do estádio da Fonte Nova,
em Salvador, ela participava de uma panfletagem, quando foi acometida por um
surto psicótico, entregando-se à polícia. Ela se autodeclarou subversiva às
autoridades e revelou informação sobre o MR-8. Mesmo assim ela foi por 90 dias brutalmente
torturada e vítima de abusos sexuais nas dependências da delegacia e, depois,
no Doi-Codi do Rio. Ao ser julgada foi considerada inimputável pela Justiça
Militar e sentenciada a cumprir pena no manicômio judiciário por dois anos. Por
gestão da defesa ela cumpriu pena na prisão, angariando amizades no cárcere apesar
do constante estado de delírio. Foi enfim libertada por necessitar de
tratamento psicológico, conseguindo cursar Medicina e se casar. Não demorou
muito, um dia ela se jogou pela janela do apartamento onde morava, resquícios
da tortura física e mental sofrida durante a prisão e que deixaram marcas insuperáveis,
principalmente a matéria sensacionalista intitulada "Sexo é arma para
atrair os jovens à subversão", publicada pela imprensa brasileira da época.
Veja mais aqui e aqui.
DITOS & DESDITOS - Somos basicamente feitos da mesma coisa:
generosidade e egoísmo, bondade e ganância. Continuamos a culpar os pobres por
sua própria condição. Eles são preguiçosos. Nós não queremos saber que os mais
pobres dos pobres são crianças com menos de três anos de idade... Aqueles que
falam, aqueles que usam suas conexões, são mais propensos a ter sucesso do que
aqueles que sentam e esperam. Não há mais desculpas para deixar as mulheres fora
dos círculos internos do poder. As mulheres estão em todas as partes. As
mulheres estão prontas para a liderança; Eles só precisam ser identificados e
questionados. Pensamento da escritora, professora e diplomata
estadunidense Madeleine Kunin.
ALGUÉM FALOU: Para a mesa e para a cama, uma só vez se chama. Pensamento da escritora mexicana Laura
Esquivel. Veja mais aqui.
REGULANDO A AVERSÃO - [...] Os indivíduos tolerados serão sempre aqueles que se
desviam da norma, nunca aqueles que a defendem, mas também serão articulados
como indivíduos (desviantes) através do próprio discurso da tolerância. [...] Apesar do seu comportamento pacífico, a tolerância é um
termo internamente pouco harmonioso, misturando bondade, amplitude e
conciliação com desconforto, julgamento e aversão. Assim como a paciência, a tolerância
é necessária por algo que preferiríamos que não existisse. Envolve gerenciar a presença do
indesejável, do insípido, do defeituosos - até mesmo os revoltantes,
repugnantes ou vis. Nesta
actividade de gestão, a tolerância não oferece resolução ou transcendência, mas
apenas uma estratégia de enfrentamento. [...] A culturalização da política vence
analiticamente a economia política, os estados, a história e as relações
internacionais e transnacionais. Elimina o colonialismo, o capital, a estratificação de castas ou classes e
a dominação política externa dos relatos de conflito ou instabilidade política. Em seu lugar, a “cultura” é
convocada para explicar os motivos e aspirações que levam a certos conflitos [...] A despolitização envolve
afastar um fenómeno político da compreensão da sua emergência histórica e do
reconhecimento dos poderes que o produzem e contornam. Não importa a sua forma e mecânica
particulares, a despolitização sempre evita o poder e a história na
representação do seu sujeito. Quando estas duas fontes constitutivas das relações sociais e do conflito
político são eliminadas, uma naturalidade ontológica ou essencialismo quase
inevitavelmente passa a residir nos nossos entendimentos e explicações. No caso em questão, um objeto de
tolerância analiticamente despojado de constituição pela história e pelo poder
é identificado como natural e essencialmente diferente do sujeito tolerante; nesta diferença, surge como uma
provocação natural a quem a tolera. Além disso, não apenas as partes da tolerância, mas a própria cena da
tolerância é naturalizada, ontologizada na sua constituição produzida pelo
próprio problema da diferença. [...] A
tolerância também requer uma aceitação pública de crenças e valores em
desacordo com os nossos, crenças e valores que podemos considerar equivocados e
até imorais. ... Neste contexto, um cidadão moralmente apaixonado torna-se
estranhamente intolerável. [...] Só recentemente a tolerância se
tornou um emblema da civilização ocidental, um emblema que identifica o
Ocidente exclusivamente com a modernidade, e com a democracia liberal em
particular, ao mesmo tempo que repudia a história selvagemente intolerante, que
inclui as Cruzadas, a Inquisição, queima de bruxas, séculos de anti-semitismo,
escravatura, linchamentos, práticas genocidas e outras práticas violentas do
imperialismo e do colonialismo, nazismo e respostas brutais à descolonização. [...] Além da despolitização como um modo de desapropriação das
histórias e dos poderes constitutivos que organizam os problemas contemporâneos
e os sujeitos políticos contemporâneos – isto é, a despolitização das fontes
dos problemas políticos – há um segundo significado de despolitização,
relacionado com o qual este livro se preocupa: nomeadamente, aquilo que
substitui vocabulários emocionais e pessoais por políticos na formulação de
soluções para problemas políticos. Quando o ideal ou a prática da tolerância é
substituído pela justiça ou pela igualdade, quando a sensibilidade ou mesmo o
respeito pelo outro é substituído pela justiça pelo outro, quando o sofrimento
historicamente induzido é reduzido à “diferença” ou a um meio de “ofensa”,
quando o sofrimento como tal é reduzido a um problema de sentimento pessoal,
então o campo da batalha política e da transformação política é substituído por
uma agenda de práticas comportamentais, atitudinais e emocionais. Embora tais
práticas muitas vezes tenham o seu valor, substituir uma atitude ou ethos
tolerante pela reparação política da desigualdade ou das exclusões violentas
não só reifica as diferenças produzidas politicamente, mas também reduz a acção
política e os projectos de justiça a uma formação de sensibilidade, ou ao que
Richard Rorty chamou de uma “melhoria nas maneiras”. .” Um projeto de justiça é
substituído por um projeto terapêutico ou comportamental. [...] Se a tolerância se coloca como um caminho intermédio
entre a rejeição, por um lado, e a assimilação, por outro, este caminho, como
já foi sugerido, é pavimentado pela necessidade e não pela virtude; a tolerância, como diria Nietzsche,
torna-se uma virtude apenas retroativa e retrospectivamente. [...] Os objetos designados de
tolerância são invariavelmente marcados como indesejáveis e marginais, como
sujeitos civis liminares ou mesmo humanos liminares; e pede-se aos que são chamados a exercer
tolerância que reprimam ou ignorem a sua hostilidade ou repugnância em nome da
civilidade, da paz ou do progresso. Psiquicamente, o primeiro é o material da abjeção e de uma variedade de
ressentimento (aquele associado à exclusão); o último é o material da agressão
reprimida e de outra variedade de ressentimento (aquele associado à força ou
dominação renegada). [...] Chegamos agora a um
ponto bastante insidioso no discurso contemporâneo da tolerância. Ao converter
os efeitos da desigualdade – por exemplo, o racismo institucionalizado – numa
questão de “práticas e crenças diferentes”, este discurso mascara o
funcionamento da desigualdade e da cultura hegemónica como aquilo que produz as
diferenças que procura proteger. Ao essencializar a diferença e reificar a
sexualidade, a raça e a etnicidade ao nível das ideias e das práticas, o
discurso contemporâneo da tolerância abrange o funcionamento do poder e a
importância da história na produção das diferenças chamadas sexualidade, raça e
etnia. Considera essas diferenças culturalmente produzidas como inatas ou
dadas, como questões da natureza que dividem a espécie humana e não como locais
de desigualdade ou dominação. [...] A despolitização envolve a
interpretação da desigualdade, da subordinação, da marginalização e do conflito
social, que exigem análise política e soluções políticas, como pessoais e
individuais, por um lado, ou como naturais, religiosas ou culturais, por outro. A tolerância funciona ao longo de
ambos os vectores de despolitização – personaliza e naturaliza ou culturaliza –
e por vezes entrelaça-os. A
tolerância, tal como é comumente usada hoje, tende a considerar os casos de
desigualdade ou lesão social como questões de preconceito individual ou de
grupo. [...]. Trechos extraídos da obra Regulating Aversion:
Tolerance in the Age of Identity and Empire (Princeton
University Press, 2006), da professora estadunidense de Ciência Política, Wendy
Brown, autora da frase: Quer se trate do Estado, da Máfia, dos pais, dos cafetões,
da polícia ou dos maridos, o alto preço da proteção institucionalizada é sempre
uma medida de dependência e concordância para cumprir as regras do protetor. Veja mais aqui e aqui.
PSICANÁLISE DO FOGO – [...] Basta
falarmos de um objeto para nos acreditarmos objetivos. Mas, por nossa primeira
escolha, o objeto nos designa mais do que o designamos, e o que julgamos nossos
pensamentos fundamentais são amiúde confidências sobre a juventude de nosso
espírito. Às vezes nos maravilhamos diante de um objeto eleito; acumulamos as
hipóteses e os devaneios; formamos assim convicções que têm a aparência de um
saber. Mas a fonte inicial é impura: a evidência primeira não é uma verdade
fundamental. De fato, a objetividade científica só é possível se inicialmente
rompemos com o objeto imediato, se recusamos a sedução da primeira escolha, se
detemos e refutamos os pensamentos que nascem da primeira observação.
[...]. Trecho extraído da obra A psicanálise do fogo (Martins Fontes,
1994), do filósofo, crítico literário e epistemólogo francês Gaston
Bachelard (1884-1962). Veja mais aqui e aqui.
OS
SUICIDAS DO FIM DO MUNDO – [...] Como seria, pensei, não se ver refletido nas notícias,
nunca se envolver na previsão do tempo, nas estatísticas, não ter nada a ver
com o resto de um país inteiro? [...] Eu tinha
ouvido tantas teorias para explicar tudo. Porque sim, porque não tinha o que
fazer, porque estavam entediados, porque não se davam bem com os pais, porque
não tinham pais ou porque tinham muitos, porque apanhavam, porque os obrigavam
a abortar , porque beberam tanto álcool e tantas drogas, porque foram
prejudicados, porque saíram à noite, porque roubaram, porque saíram com
mulheres, porque saíram com mulheres à noite, porque tiveram traumas de
infância , traumas de adolescência, traumas de primeira juventude, porque
gostariam de ter nascido em outro lugar, porque não puderam ver o pai, porque a
mãe os abandonou, porque prefeririam que a mãe os abandonasse, porque eles
foram estupradas, porque eram solteiras, porque tinham amores mas eram
infelizes, porque deixaram de ir à missa, porque eram católicos, satanistas,
evangelistas, fãs de desenho, punks, sentimentais, esquisitos, estudiosos,
paqueradores, preguiçosos, petroleiros , porque tinham problemas, porque não os
tinham. Teorias. E as coisas que insistiam em não ter resposta. [...] Lá fora o vento era um silvo sombrio, uma boca quebrada
que engolia todos os sons: os beijos, as risadas. Um gemido de aço, uma mandíbula. [...] Profunda consternação, notícias trágicas, uma vida inteira pela frente, mas
ninguém fez nada. [...]. Trechos extraídos
da obra Los suicidas del fin del mundo: Crónica de un pueblo
patagônico (TusQuets, 2005), da escritora e
jornalista argentina Leila Guerriero.
CINCO
POEMAS & RAZÕES DE UMA POESIA - I – Com a fome do meu lobo Eu
carrego o corpo do meu cordeiro para baixo como uma vela Eu sou como o barco
miserável e o mar lascivo. II – Deixe me ser como uma
coisa esquerda em um canto e esquecido. III - Desta poesia Fiquei com o vazio de um
segredo sem fim. IV - É azul demais este céu austral. Estrelas
demais o apinham, E, para nós, nenhuma é familiar… V - Sou um poeta um grito
unânime Sou um coágulo de sonhos Sou um fruto de incontáveis enxertos
contrastantes amadurecido numa estufa. Poemas do poeta e professor italiano Giuseppe Ungaretti (1888-1970), autor
da obra Razões de Uma Poesia (EDUSP, 1994), na qual expressa: [...] O Brasil é um país em que o
homem ainda hoje contrasta com a natureza virgem, é um daqueles países da
descoberta da América cujos contrastes com o espírito ocidental contribuíram
para sugerir as formas do barroco e tornaram popular, na poesia de então,
Polifemo. Polifemo era a imagem, surgida na Sicília, da violência que jamais
conseguirá domar a graça. [...] Eu deixava nesta terra a parte mais
nobre de minha alma: uma criança enterrada. Aqui viveu seus poucos anos.
[…] Eu fora autorizado a levar comigo os amados restos: hesitei. Disse não.
[…] Não se arranca um corpo da terra onde se desfaz e a qual enriquece com
seu pó. [...] Memória e inocência, razão e natureza como eu as vi e
senti entrechocar aqui constituíam para mim uma experiência diversa de todas as
outras, inteiramente novas, e me pareciam não mais como uma catástrofe a ser
delicadamente remediada, mas como espetáculos de gênese, de uma nova gênese tão
desmedidamente realçada que a medida da civilização humana não poderia
enfrentá-la a não ser através de uma arte intrépida e desmedida. [...] se
tornaram a substância de minhas novas palavras, essências, do meu renovado
tormento semântico, métrico, sintático, expressivo [...]. Veja mais aqui e
aqui.