A SOLIDÃO DE VILLON – Poderia ter sido diferente, mas não: o indesejado foi criado com folhas
de nabos de maldições. Ficou órfão de pai ainda garoto, a mãe tudo fizera até
abrir mão na sua adolescência transferindo o fardo aos cuidados de um tio
pároco. Assim foi educado com o auxilio de tundas de vara de marmelo nas
nádegas, sobrevivendo na monotonia da vida de clausura conventual. Estouvado, o
sangue fervia nas veias tornou-se assíduo frequentador de prostitutas da
Taberna da Mula, da Estalagem Ponta de Pinheiro e da Espada de Madeira. Lá ia
pelo lodo dos escoadouros noite adentro, até se tornar o campeão da velhacaria e
diplomar-se bacharel e professor. Mão se dignou da ventura e levou-se inclinado
para a trapaça e jntou-se a uma dupla de delinquentes. Estaria mestre pelas
práticas extracurriculares do crime. E daí foi vivendo da universidade à
penitenciária por devassidão e roubos. O seu olhar oblíquos transitava pelas epidemias
sem fim, entre os que morrem de fome ou de frio. Magérrimo e sem tomar jeito na
vida, resolveu um dia abandonar de vez a vida errante para tornar-se devoto. Durou
alguns instantes, ao contrário, o desprezível por conta do golpe de uma adaga
desfigurando o lábio superior por conta de um duelo com um padre, em defesa de
uma jovem, agora era, de vez, um assassino. Seguia daí vias tortuosas: os
mortos para o inferno com um requirm sombrio e às gargalhadas. Trapaceiro
furtivo, andava sempre a um passo do carrasco. Eis que uma certa Katherine de
Vausseles virou-lhe a cabeça. Altos e baixos, escreveu o Pequeno testamento –
pobre, estiolado e triste coração, uma obra burlesca. Deu-se, então, revoltado,
ao assalto do Colégio de Navarra: a comemoração pelo êxito da fortuna em festas
ruidosas e mulheres de faces rosadas por sobremesa. A farra também durou pouco
tempo: o fardo de ambulante, sem um vintém no bolso. Entrava e saía pela porta
dos fundos de todos os lugares. Safou-se diversas vezes da corda à garganta,
bardo sátiro, cantava os lupanares imundos, uma criatura licenciosa, blasfema,
descarnada. O corpo macilento, um estranho cantor, inquieto, um torpe a mais
entre trapaceiros e salteadores, sicários e rufiões, o mais hábil e vil ladrão
entre os Cavalheiros do Punhal de Paris, de espírito fino como uma agulha,
devoto do amor pecaminoso. Chegou a vez de compor A balada dos enforcados.
Em seguidam As baladas das damas do tempo antigo e dos tempos idos. Combalido,
escreveu o Grande Testamento: Rio através das minhas lágrimas. Sentia agora
a verdadeira dor. Era o hino glorioso nascido no cárcere diante da sua execução:
nunca fora inteiramente tolo, nem completamente sábio. Amarrado ao infortúnio: A
necessidade faz com que os homens se extraviem, e a fome incita o lobo a sair
uivando da mata. Mas não, era a hora da Balada das damas mortas: ... Elas
são doces a vossos olhos como o almíscar, \ mas confiai nelas e adeus vossa
paz. \ Sejam claras ou morenas, altas ou baixas, \ felizes são aqueles que com
elas não se metem... E lega aos pósteros chacotas, motejos e maldições,
rajadas de vaias obscenas. Empregou-se como garçom no bordel da Margot: Por
causa da sua doce pessoa, empenho minha espada e meu escudo... Sou um
licencioso e Margot uma criatura sórdida. Somos da mesma espécie e igualmente
indignos. Mas nos compreendemos. Estamos apaixonados pela imundíce, e a
imundicie está apaixonada por nós, neste bordel onde dirigimos o nosso comércio
desonesto... Era o seu lar e fonte de seu alimento. Com a Balada de Nossa
Senhora: Pertence a Deus aquele que canta o seu mágico canto melancólico. \
E vive como lacaio na Casa da Dor... Não escapou de um tumulto de bêbados,
restou-lhe a cadeia. Não tinha mais nada, amigos todos pendurados à forca.
Crimes desenterrados, enfim, condenado à morte. Pesadelos rondavam. Graças ao
tio a pena foi comutada. A sua figura esquálida e solitária caminhava pela neve
do exílio, até o seu epitáfio: Este bastardo inutil e desmiolado devolveu o
seu corpo à Terra, nossa Mãe comum. Os vermos não encontrarão muito que comer
nele, pois a fome já o roeu até quase os ossos... Não conheceu o descanso até
que a morte chegou e deu-lhe um pontapé
para fora do mundo. Deus Misericordioso, tende piedade da sua alma e
concedei-lhe a paz eterna... Estes os desígnios do poeta francês François Villon (1431-1489). Veja mais aqui e aqui.
DITOS & DESDITOS - Sentimentos ou emoções são a
linguagem universal e devem ser honrados. Eles são a expressão autêntica de
quem você é no seu lugar mais profundo. Aprendi a estar comigo mesma em vez de
me evitar com hábitos limitantes. Comecei a ter
mais consciência dos meus sentimentos, em vez de entorpecê-los. À medida que
superamos nossos desejos materiais superficiais e gratificação instantânea, nos
conectamos a uma parte mais profunda de nós mesmos, bem como aos outros e ao
universo. Pensamento da escritora
australiana Judith Arundell Wright (1915-2000). Veja mais aqui, aqui e
aqui.
ALGUÉM FALOU: Cada
momento da vida é um passo para morte. Quando não há perigo na luta, não há
glória no triunfo. É indispensável boa memória após se haver mentido. Os
mentirosos estão sempre dispostos a jurar. Pensamento do dramaturgo francês Pierre
Corneille (1606-1684). Veja mais aqui e aqui.
VIVA A
MÚSICA – [...] Uma música que não envelhece é a decisão universal de que meus erros foram
perdoados.
[...] Se você sair do trabalho, morra em
paz, confiando em alguns bons amigos. Nunca permita que façam de você um
velho, um homem respeitável. Nunca deixe de ser criança, mesmo
que seus olhos estejam na nuca e seus dentes comecem a cair. Seus pais tiveram você. Que seus pais sempre o alimentem e
paguem com dinheiro ruim. A mim que. Nunca economize. Nunca se torne uma pessoa séria. Faça da falta de consideração e da
contradição sua norma de conduta. Elimine as tréguas recolha a sua
casa nos estragos, excessos e tremores. Tudo é seu. Você tem direito a tudo e cobra caro. [...] Uma é uma trajetória que erra tentando recolher as
migalhas do que um dia foram nossas forças, deixadas lá da forma mais vil,
sabe-se lá onde, ou recomendadas (e nunca mais voltar por elas) a quem não
merecia tê-las. A música é obra de um espírito
generoso que (com esforço ou não) reúne nossas forças primitivas e no-las
oferece, não para que possamos recuperá-las: para nos fazer saber que ainda
estão aí, os pobres coitados, e que precisa de mim. Eu sou a fragmentação. A música é cada um desses pedacinhos
que eu tinha em mim antes e fui destacando ao acaso. Estou diante de uma coisa e penso em
milhares. A música é a solução para o que não
enfrento, enquanto perco tempo olhando a coisa: um livro (no qual não aguento
mais duas páginas), a inclinação de uma saia, de uma cerca. A música é também, recuperado, o
tempo que perco. Eles apontam para mim, os músicos: quanto tempo, como e onde. Eu, inocente e nua, sou simples e
gentil escuto. Eles seguram as rédeas do universo. Para mim, gentilmente. Uma música que não envelhece é a
decisão universal de que meus erros foram perdoados. [...]. Trechos da obra ¡Que viva
la música! (Norma, 2008), do escritor e dramaturgo colombiano
Andrés Caicedo (1951-1977).
PÃO DE MINHA MÃE, ORAÇÃO DE MEU PAI – Minha mãe curvou-se \ Sobre o pão\ Que
envergou suas costas\ E sacudiu sua
cabeça\ E morreu muito jovem\ Antes de estar morta,\ E eu não aprovei.\ E eu, eu jurei que não tomaria\ O caminho em direção ao mesmo erro,\ Não havia nenhum pão que eu assaria,\ Minhas costas a envergar, minha cabeça a sacudir,\ E nenhum pão eu assei.\ O modo como vivo, ela
desprezaria \ Mas a morte fechou seus
olhos críticos.\ A escolha que fiz nem
sempre sábia,\ Tenho mantido minhas
coxas nuas,\ E ela não aprovaria.\ A sombra de meu pai cai
sobre mim,\ Com carinho eu olho; com
medo eu vejo\ Ele morreu muito jovem,
mas vive em mim,\ E ele não aprova. II - Meu pai levantou sua
mão sacerdotal \ Sobre a cabeça da
congregação.\ ‘O Deus é único’ ele
disse,\ E eu acreditei nele.\ Minha mãe assou o pão da
Sabbath\ E me ensinou como abençoar a
luz\ E proferir o Sh’ma ao
final de cada dia,\ E assim continuo.\ Vê a Shekinah a meu lado.\ Ela é o exílio errante da noiva.\ Eu não tenho casa. Eu não tenho lar.\ Eu acomodo meus sapatos dentro do meu poema.\ Eu tenho medo.\ Ela levanta suas mãos angelicais.\ Sobre minha cabeça estranha e abafada.\ ‘O Deus é Único’, ela diz,\ E eu acreditei nela.\ O estranho pão que
eu como,\ Ela abençoa com seus pés
espirituais,\ E diz ‘Amém’ quando eu
digo Sh’ma,\ E eu ainda digo.\ Eu não vejo o Rosto Sagrado de Deus.\ Eu ainda busco de lugar em lugar.\ A oração de meu pai, o pão de minha mãe,\ Encontro ao invés. Poema da atriz,
dramaturga e poeta teuto-americana Judith Malina (1926-2015). Veja mais aqui e aqui.
RECONTANDO CAETANO VELOSO
Seus podres poderes
Motos e fuscas avançam
Os sinais vermelhos
E perdem os verdes
Somos uns boçais...
Setecentas mil vezes
Como são lindos
Como são lindos os burgueses
E os japoneses
Mas tudo é muito mais...
Senão confirmar
A incompetência
Da América católica
Que sempre precisará
De ridículos tiranos
Que será, que será?
Será que esta
Minha estúpida retórica
Terá que soar
Terá que se ouvir
Por mais zil anos...
Seus podres poderes
Índios e padres e bichas
Negros e mulheres
E adolescentes
Fazem o carnaval...
Afinado com eles
Silenciar em respeito
Ao seu transe num êxtase
Ser indecente
Mas tudo é muito mau...
E cada capataz
Com sua burrice fará
Jorrar sangue demais
Nos pantanais, nas cidades
Caatingas e nos gerais
Os hermetismos pascoais
E os tons, os mil tons
Seus sons e seus dons geniais
Nos salvam, nos salvarão
Dessas trevas e nada mais...
Seus podres poderes
Morrer e matar de fome
De raiva e de sede
São tantas vezes
Gestos naturais...
O meu cantar vagabundo
Daqueles que velam
Pela alegria do mundo
Indo e mais fundo
Tins e bens e tais...