quarta-feira, setembro 19, 2012

MARIE DARRIEUSSECQ, SUBIRATS, BLAKE, JORGE DE SENA, PARACELSO, KLEE, ELLEN ARKBRO & LITERÓTICA

XIMÊNIA, A PRINSPA DO COITÉ


Luiz Alberto Machado


Ximênia, menina do mato, moreninha brejeira, matutinha acesa com olhos bem vivos dos dias reais de sol, nasceu nos rincões do cafundó de Judas, lá na beira das matas, morros e grotões, no meio da vida com seus rios, árvores, brejos, aves e bichos.

Nasceu filha de Zé-do-pente, um bóia-fria que não tinha paradeiro, e Judinalva, uma ticoqueira das plantações de cana.

O pai saía de casa e só voltava seis meses depois. Agora mesmo, por causa da entresafra canavieira ali, está no sul, cortando cana para buscar seu sustento.

A mãe quando não tinha serviço na roça, lavava roupa das famílias ou servia de faxineira nas casas onde fosse requisitada.

Avós? Parentes? A sua árvore genealógica parava nos pais, vez que os avós maternos e paternos eram todos ignorados na certidão de nascimento.

Moravam ali, nem Ximênia sabia onde era. Cresceu danadinha a dar carreira na rodagem, a pular corda, porteira, mata-burro e idade. E quanto mais crescia mantinha aquela ingênua infantilidade de promissora parideira.



Moça feita, taluda, uma maravilha! Reboladeira, perna torneada, quartuda, jeitão faceiro, quanta faceirice! O olhar penetrante, peitinhos miúdos e duros, e aquele aroma feminil contagiando o ar e o coração dos matutos. 

De manhã, acordava embalada com a voz do locutor de sua predileção no rádio. Como suspirava.

No mormaço da tarde, folheava revistas gastas com as fotos dos galãs de seus devaneios.

No breu da noite, fixada nas novelas da única televisão local, acompanhando um a um todos os capítulos de todas as novelas mais dramáticas e depois se deitava com o sonho de ver-se contemplada pela visita inesperada do seu príncipe encantado que viria, não se sabe de onde, montado no seu cavalo branco.

Esse príncipe fabricado nas suas idéias reunia todas as belezuras fisionômicas e corporais dos seus ídolos mais devotados. O mais lindo de todos os homens, o mais corpulento, espadaúdo, gigantesco em fortaleza e lindo de morrer. E esse seu Apolo perseguia seus mais demorados sonhos e fantasias nas horas minguadas de toda sua existência. Coitada, como esperava. Nem aceitava namorar com ninguém, alegando que o seu namorado morava longe e qualquer dia a levaria dali.

Os enamorados se enciumavam e zangados já taxavam por fantasminha essa sua fixação oculta.

Os anos se passaram, Ximênia esborrava a casa dos vinte e já beirando os trinta desabrochava em maior e cada vez mais formosura. E quando ela botava o pé na rua, parecia que o sol brilhava mais espetacular e todas as coisas se tornavam verdadeiros encantamentos fantásticos. Não havia quem não se encantasse com o seu fascínio. E ela sonhando com aquele lindão que viria fazê-la feliz remexendo as entranhas por baixo do seu vestido de chita, carregando essa idéia fixa guardada na calcinha, descontrolando sua tremedeira e vitalidade, descortinando seus mistérios de águas caudalosas e profundas.

Sonhava tanto de ficar com a fonte molhadinha, com os bicos dos peitos duros feito um pitoco proeminente a querer saltar fora, com as pernas inquietas e trepidantes e resfolegando abrasada.

Já mais de trinta anos de espera e a fantasia não dava um por cento sequer de descontos, mantida a todo custo em sua carne, alma e desejos.

Vão-se os dias e as noites e ela delirantemente apaixonada por uma idéia que só existia no que era de seu. E era o mais importante justo porque era só seu. Sabia que existia em qualquer lugar ignoto e, desesperada, chegava a se perguntar a razão de ainda não ter vindo alentar sua agonia.

Tanto esperou de quase ficar mais que impaciente, endoidada, rezando a todo instante para que seu salvador aparecesse e, cada vez mais, pedir, suplicar, implorar aos céus e a tudo que fosse possível. Elegia tudo como santificado, desde galho, árvores, passarinhos, cruzes, sinais, tudo, e nada dele apontar no horizonte.



Aquilo já transfigurava seu modo de ser, a ponto de só de pensar nele já alcançava múltiplos orgasmos, embolando na cama afogueada. E foi justo num desses momentos de delírio exagerado, ninguém em casa, eis que de fora ouviram-se os gemidos aperreados dela.

Nessa hora alguém acudiu e ela ao tentar abrir os olhos no meio do espasmo, enxergara aquele que visitara sempre e a todos os momentos, os seus pensamentos. Ela, então, fora de si e incontida de felicidade agarrou-se com força naquele que a socorria no meio da mais insana das loucuras de amor e, despudoramente, integralmente, enlouquecidamente fez-se de comida boa regada pelo prazer.

Nesse dia fez-se festa no seu coração, no seu corpo todo e em sua alma. Foram momentos de delícia em que ela conseguiu mergulhar na mais das exageradas entregas.

Quando veio a si, horas e horas depois, certificou-se que esse príncipe sonhado, não passava de um cabôco brôco das grotas vizinhas, um xucro atarracado que sequer passara, nem de longe, pela sua preferência, mas, mesmo assim, não conseguia se arrepender. Estava feito, estava tratado. Tinha que casar, era a ordem dali. E assim foi numa tarde de domingo sem muita graça, levada pela simplicidade e penúria para o altar da capelinha do Padre Bidião que, em nome do pai, do filho e do Espírito Santo, deu posse abençoada ao nubente cristão de sua mais nova propriedade. E assim foi que Ximênia, a ditosa prinspa do coité, se encontrava de agora e para todo o sempre, com juramento de fidelidade e doação até que a morte os separasse, casada com Zé Bilola, um matuto ogro das brenhas mais fechadas. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo, aqui e aqui.


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DITOS & DESDITOS - A medicina se fundamenta na natureza, a natureza é a medicina, e somente naquela devem os homens buscá-la. A natureza é o mestre do médico, já que ela é mais antiga do que ele e ela existe dentro e fora do homem. A natureza é a causa e a cura das doenças. Só a dose faz o veneno. O que Deus quer são nossos corações e não as cerimônias, já que com elas a fé nele perece. Se queremos buscar a Deus, devemos buscá-lo dentro de nós mesmos, pois fora de nós jamais o encontraremos. Todos são interligados. O céu e a terra, ar e água. Todos são, uma só coisa; não quatro, e não duas, e não três, mas um. Se não estiverem juntos, há apenas uma peça incompleta. Pensamento do médico e alquimista suíço Paracelso (1493-1541). Veja mais aqui e aqui.

 

ALGUÉM FALOU: A arte não existe para produzir o visível, e sim para tornar visível o que está além. A arte não reproduz o que vemos. Ela nos faz ver. Um olho vê, o outro sente. O objeto expande-se além dos limites da sua aparência pelo conhecimento que temos de que ele significa mais do que o que vemos exteriormente, com os nossos olhos. A gente encontra o próprio estilo, quando não consegue fazer as coisas de outra maneira. O pior acontece quando a ciência é considerada uma forma de arte. Pensamento do poeta e pintor suíço Paul Klee (1879—1940). Veja mais aqui e aqui.

 

MÚSICAA música combina pensamento e sentimento de uma forma que é totalmente impossível de separar no produto final. Pensamento da compositora de vanguarda sueca Ellen Arkbro, que trabalha em grande parte no temperamento intencional e seu instrumento principal é o órgão de tubos, e ela também compõe para metais e ventos.

 

ADEUS AO PARAÍSO - [...] O século XX, com suas inacabáveis paisagens de ruínas e genocídios, com suas diversas ameaças de destruição global, pôs fim às representações clássicas do progresso moral da humanidade. Seu lugar foi ocupado por grande variedade de metáforas degradadas e ícones propagandísticos, assim como pelas incontáveis expressões de fundamentalismos escatológicos que coroaram o fim do século. Ao mesmo tempo, a filosofia e a literatura modernas substituíram o progresso civilizatório em direção ao reino ideal de lugar nenhum, a utopia do retorno da Idade de Ouro, pelo seu contrário: o futuro como catástrofe. Do futurismo às utopias revolucionárias modernas, seus sinais do progresso se confundiram, ao mesmo tempo, com uma nova ordem civilizatória global os sistemas totalitários modernos. [...] O diálogo de linguagens e funções diferentes articula em torno da arte uma comunidade, social e culturalmente descontínua. E o faz de maneira aberta, transparente. E isso quer dizer que a arquitetura é concebida como meio de integração da diversidade lingüística de uma comunidade e de suas expressões espontâneas e cotidianas. Cultura popular, arte popular, museu aberto, seriam as categorias apropriadas para definir esse centro... Tudo isso está presente nele. Mas não é o aspecto mais importante a definir seu projeto artístico. Muito mais intenso é o novo vínculo que essa arquitetura estabelece entre cultura e cidade, sob a interação de linguagens locais, regionais e internacionais. O relevante nesse conjunto arquitetônico é que ele contempla as novas condições de produção e comunicação da megalópole pós-industrial, sem com isso abandonar aquele espírito da utopia, do jogo e da liberdade que um dia também distinguiu as vanguardas da América Latina. [...]. Trechos extraídos da obra A penúltima visão do paraíso - Ensaios sobre memória e globalização (Studio Nobel, 2001), do filósofo espanhol Eduardo Subirats.

 

OBVIEDADES - [...] Então a faca afunda. O manobrista lhe dá dois empurrões para fazê-lo cruzar a casca, após o que, é como se a lâmina longa derretesse em afundando para o cabo através da gordura do pescoço. A princípio o javali não não percebe nada, fica alguns segundos deitado para pensar um pouco. Se! Ele então entende que está sendo morto e uiva em gritos abafados até não poder mais. [...] Eu sei até que ponto esta história será capaz de semear problemas e angústias, até que ponto não vai perturbar as pessoas. Confio que o editor que concordar em levar em carregar este manuscrito se exporá a problemas infinitos. A prisão provavelmente não será para ele não poupado, e quero pedir desculpas a ele imediatamente pelo inconveniente. [...] peço ao leitor, ao leitor desempregado em particular, que me perdoe por estes palavras indecentes. Mas, infelizmente, não serei indecente neste livro; e Peço a quem possa se ofender com isso que gentilmente com licença. [...] Eu não podia mais comer um sanduíche de presunto, me dava náuseas, uma vez até vomitei na praça [...] Você tinha que ver como eu comia, essas maçãs. Eu nunca tive tempo suficiente na praça para comê-los bem, para mastigá-los bem, fez muito suco na minha boca, esmagou sob meus dentes, ficou com gosto! Meus poucos minutos de descanso na praça com meu maçãs, entre os pássaros, era, por assim dizer, a felicidade da minha vida. Eu queria verde, natureza. [...] Eu entendo o quão chocante e desagradável deve ser ler uma jovem que se expressa assim, mas devo dizer também que agora não sou mais exatamente o mesmo que antes, e que esses tipos de considerações começam a escapar. [...] Na praça sempre encontrava botões de ouro, era primavera de novo, e mastiguei-os lentamente em segredo, achei que tinham gosto de manteiga e prado [...] Quando chegou o verão não encontrei tantas flores e caí na grama de maneira bem idiota, e no outono descobri as castanhas [...] descasquei-as facilmente, dourei-as, as minhas unhas ficaram muito duras e mais corte do que antes. Meus dentes eram muito fortes também [...] eu constantemente tinha com fome, eu teria comido qualquer coisa. Eu teria comido cascas, frutas blets, bolotas, minhocas. [...] Eu estava descansando. Fiquei na minha cama e não tive mais dores nas costas. eu tinha menos de inchaço no rosto. Obriguei-me a encontrar uma figura humana, dormi muito, penteava o cabelo. Meu cabelo estava quase todo no ralo mas eles estavam recuando agora. Cortei minhas unhas, raspei minhas pernas e Eu vi meus seios desinflarem, ficarem visíveis de mês para mês, não havia mais do que as manchas escuras nos mamilos [...] eu tinha engordado muito, ficando ali sem mover. [...] Foi assim que por trás das vidraças lascadas da pia encontrei livros, e então eu encontrei em todos os lugares, uma infecção, foi até no meu colchão. Tentei comê-los, no começo, mas realmente estava muito seco [...] comecei a ler todos os livros que encontrei, foi passando o tempo e esqueça a fome porque rapidamente chegamos ao fim dos cadáveres [...] Ouvi um grito do lado do banco. Yvan estava de pé, ele estava levantando sua rosto para a lua e ele balançou o punho para ela. Isso me chocou. E então Ivan caiu de quatro. Suas costas arquearam. Suas roupas rangiam o tempo todo longos e longos cabelos grisalhos eriçados através da lágrima, seu corpo alargou e também rachou nos ombros e nas mangas. O rosto de Yvan era tudo distorcido, comprido e anguloso, brilhava com baba e dentes e seu cabelo tinha empurrou até cobrir completamente seus ombros, grossos [...] Suas mãos estavam enrolada no chão, como se cortada, enterrada, agarrada ao chão, cheia de nós e garras [...] Algo gritou em seu corpo, subiu para ele barriga como quando sinto o cheiro da morte. [...]. Trechos extraídos da obra Truismes (P.O.L, 1996), da escritora e psicanalista francesa Marie Darrieussecq. Veja mais aqui.

 

O AMOR - O amor não busca agradar a si mesmo, nem destina qualquer cuidado a si próprio, mas se dá facilmente ao outro e constrói um Paraíso no desespero do Inferno. Não revele aos amigos os seus segredos, porque você não sabe se algum se tornará seu inimigo. Não cause ao seu inimigo todo o mal que lhe possa fazer, porque você não sabe se ele se tornará um dia seu amigo. Aqueles que reprimem o desejo assim o fazem porque o seu desejo é fraco o suficiente para ser reprimido. Quem nunca altera a sua opinião é como a água parada e começa a criar répteis no espírito. Uma verdade que é dita com má intenção derrota todas as mentiras que possamos inventar. A abelha atarefada não tem tempo para a tristeza. A ave constrói o ninho; a aranha, a teia; o homem, a amizade. O homem não tem um corpo separado da alma. Aquilo que chamamos de corpo é a parte da alma que se distingue pelos seus cinco sentidos. A energia é a eterna alegria. Exuberância é beleza. A simpatia é o coração a sorrir no rosto. O caminho do desmedido conduz ao palácio da sabedoria. Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo apareceria para o homem tal como é: infinito. Toda pergunta que pode ser concebida tem uma resposta. É justo que assim deva ser: é do homem a dor e o prazer Aquele que quer fazer o bem ao próximo, deve fazê-lo em termos particulares. O bem geral é a alegação do patife hipócrita e adulador. A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê. Ouve a reprovação do tolo! É um elogio soberano! Texto do poeta, tipógrafo e pintor inglês William Blake (1757-1827). Veja mais aqui e aqui.

 

POEMA - Falareis de nós como de um sonho. Crepúsculo dourado. Frases calmas. Gestos vagarosos. Música suave. Pensamento arguto. Subtis sorrisos. Paisagens deslizando na distância. Éramos livres. Falávamos, sabíamos, e amávamos serena e docemente. Uma angústia delida, melancólica, sobre ela sonhareis. E as tempestades, as desordens, gritos, violência, escárnio, confusão odienta, primaveras morrendo ignoradas nas encostas vizinhas, as prisões, as mortes, o amor vendido, as lágrimas e as lutas, o desespero da vida que nos roubam - apenas uma angústia melancólica, sobre a qual sonhareis a idade de oiro. E, em segredo, saudosos, enlevados, falareis de nós - de nós! - como de um sonho. Poema do poeta, dramaturgo e crítico português Jorge de Sena (1919-1978). Veja mais aqui e aqui.

 


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