DITOS & DESDITOS - Em parte alguma sou apresentável, em toda parte sou
estrangeiro — eu gostaria de abarcar tudo, e tudo me escapa. Sou infeliz... Uma
vez que esta noite o lugar ainda não foi tomado, permita que eu vá me atirar de
cabeça no rio... O reino
da poesia é o reino da verdade. Pensamento do escritor e botânico alemão Adelbert
von Chamisso (1781-1838), autor da narrativa poética Peter Schlemihls
wundersame Geschichte (1814), contando a fantástica história do homem que
vendeu sua sombra.
ALGUEM FALOU: Terra e nação, como uma esposa, devem ser conquistadas todos os dias,
para que não caiam nas mãos de outra pessoa. Nada é impossível assim que uma pessoa começa
a pensar seriamente sobre isso. Tudo o que aprendi pode ser reduzido a isto:
quero ser o que não sou. A maior fortuna é o amor.
Pensamento do escritor estoniano Anton Hansen Tammsaare (1868-1940).
FILHA DA
DOR - Acordei no chão da cela com um deles me chutando. Comecei a ser
arrastada pelo corredor cheio de policiais e levada escada acima. Eles eram
muitos. Um deles começou a falar que era meu noivo, que ia casar comigo. De
repente, os outros começaram a passar a mão em mim, no meu corpo, nos meus
seios, coxas – aquele monte de homens – e começaram a cantar a marcha nupcial.
Quando abriram a porta, tinham montado uma sala de tortura no quartel de
Ribeirão Preto, com pau de arara, choque elétrico, e aquele monte de homens
gritando, me batendo. O homem que disse que ia casar comigo rasgou a minha
roupa. Me jogaram água, o bombeiro me amarrou na cadeira e começou a sessão de
choque elétrico praticamente a noite inteira, e eu nua, apanhando. Eram choques
nos seios, no ventre, na vagina, dentro do ouvido… Era um pesadelo. Era um
monte de homens, de 30 a 40 anos, todo o pessoal da Oban que tinha vindo para
Ribeirão. Três dias depois fui levada para São Paulo com meus companheiros de
organização. Durante a viagem, o torturador ia me assediando. Ele dizia que
queria trepar comigo e que a gente ia virar presunto na estrada. Na Oban nós já
chegamos apanhando, os meninos foram para um lado e eu subi para uma cela
minúscula com oito mulheres. Depois voltamos para Ribeirão. Quando chegamos no
quartel, foi um massacre. Era dia e noite gente caindo; os padres, a irmã
Maurina Borges da Silveira… Me lembro de quando ela chegou na cela. Eu estava
de bruços porque estava muito estraçalhada e pensei: ‘Meu deus, o que essa
freira está fazendo aqui?’. Ela foi torturada e assediada. Eu sou testemunha da
cena. O capitão Cirilo, do Exército de Pirassununga, tentando agarrá-la,
passando a mão nela. A repressão aqui foi tão grande que a Igreja excomungou os
dois delegados de Ribeirão, Miguel Lamano e Renato Ribeiro Soares. Não sei nem
como eu fi quei viva. Tiveram de tirar a gente do quartel porque qualquer
soldado se sentia no direito de ir no banheiro com a gente, assediar. Eles
falavam assim: ‘Ô boneca terrorista, vamos jogar dados e fazer a fila para ver
quem será o primeiro’. Relato da enfermeira e ex-militante d das
Forças Armadas de Libertação Nacional (FALN), Áurea Morretti. Veja mais aqui, aqui e aqui.
A SEMIOSFERA - [...]
o espaço todo da semiosfera é
interseccionado por fronteiras de diferentes níveis, ou mesmo de textos, e o
espaço interno de cada uma dessas subsemiosferas tem seu próprio “eu” semiótico
que é percebido como a relação de uma linguagem, grupo de textos, texto
separado, até o espaço metaestrutural que os descreve, porém sempre tendo em
mente que linguagens e textos estão dispostos hierarquicamente, em níveis
diferentes. Essas fronteiras secionais que cruzam a semiosfera criam um sistema
de vários níveis [...]. Trecho extraído da obra La semiosfera: semiótica de la cultura y del texto (Desiderio Navarro, 1996), do historiador e
semioticisca russo Yuri Mikhailovich Lotman (1922-1993),
autor de obras como A Delimitação dos Conceitos linguísticos e filosóficos
de Estrutura (1963) e de outros trabalhos sobre poética estrutural.
LIVRO DO DESASSOSSEGO – [...]
O coração, se pudesse pensar, pararia.
[...] Considero a vida uma estalagem onde
tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde me
levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque
estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis,
porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum.
Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde
esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as
músicas e as vozes chegam cómodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos
e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos
cantos que componho enquanto espero [...] Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido,
sozinho como sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca
coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de
milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como a minha ao
destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. Nestes momentos
meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo mais porque vivo
maior [...] Nós nunca nos realizamos.
Somos dois abismos – um poço fitando o céu [...]. Trechos extraídos da obra
O livro do Desassossego (Ática,
1982), obra fragmentada de Bernardo
Soares, semi-heterônico de Fernando
Pessoa. Veja mais aqui e aqui.
O LUGAR DOS MORTOS – I - Qual é o lugar dos
mortos, / têm eles como nós direito aos caminhos, / falam com palavras reais, /
são o espírito da folhagem ou copas muito altas? / Construiu a Fénix um castelo
para eles, / uma mesa posta para eles? / O grito de alguma ave no fogo de
alguma árvore, / é este o espaço onde eles se juntam? / Talvez descansem na
folha de uma era. / As suas
palavras derrotadas / são o porto de folhas desfeitas, quando a noite se
aproxima. II - O lugar dos mortos – / talvez seja a dobra do tecido vermelho. /
Talvez eles caiam / nas suas mãos rochosas; pioram / nos tufos no mar da cor
vermelha./ Têm como espelho / o corpo cinzento da jovem cega; têm como fome / no
cântico dos pássaros as suas mãos de afogados. / Ou estarão reunidos sob o
sicómoro ou o ácer? / Ainda não há ruido que perturbe a sua assembleia. / A
deusa permanece na copa da árvore, / Ela inclina sobre eles o gomil de ouro. / E
por vezes só cintila o braço da deusa na árvore / e os pássaros calam - se,
outros pássaros. Poemas do poeta,
ensaísta e tradutor francês Yves Bonnefoy.