A arte da pintora cubana Antonia Eiriz Vázquez (1929-1995).
A DOR DO SOFRIMENTO – À memória Sônia Maria Lopes de Moraes (1946-1973)
– Soube que ela veio de Santiago do Boqueirão e o pai era oficial do exército. Estudante
ainda foi expulsa da faculdade por participação em atividades subversivas. Por conta
disso, saiu de casa e tornou-se professora de português no Rio. Foi morar
sozinha e, algum tempo depois, casou-se e foi presa no dia primeiro de maio de
1969, na praça Tiradentes, e levada para o Dops, depois encaminhada para o
presídio, só liberada e absolvida três meses depois. Por conta de perseguições,
caiu na clandestinidade como Esmeralda Siqueira Aguiar. Foi então que se
exilou na França, em 1970, passando a estudar cinema e fotografia, enquanto lecionava
português numa escola de Paris. Nesse trâmite, soube então que seu marido havia
desaparecido. Na verdade, ele havia sido sequestrado, torturado e assassinado
em 1971, ficando bastante tempo sendo dado como desaparecido, o que levou às
constantes buscas da famosa mãe dele
que se tornou musa homenageada na canção Angélica,
de Chico Buarque: Quem é essa mulher / Que canta sempre esse
estribilho / Só queria embalar meu filho / Que mora na escuridão do mar / Quem
é essa mulher / Que canta sempre esse lamento / Só queria lembrar o tormento / Que
fez o meu filho suspirar / Quem é essa mulher / Que canta sempre o mesmo
arranjo / Só queria agasalhar meu anjo / E deixar seu corpo descansar / Quem é
essa mulher / Que canta como dobra um sino / Queria cantar por meu menino / Que
ele já não pode mais cantar... Motivada pelo incidente, retornou ao Brasil
com o objetivo decisivo de fazer justiça e investigar o que ocorrera de verdade
com seu marido. Por conta disso, refugiou-se no Chile, onde trabalhou como
fotógrafa. O choro, as buscas, a mãe
dele também seria morta cinco anos depois pelas ações de agentes da repressão. Novamente
de volta ao Brasil se estabeleceu em São Vicente e logo correram boatos de que
ali estava uma terrorista. Não deu outra, foi presa em novembro de 1973, no
Posto Rodoviário do Canal 1, em Santos, denunciada por um médico infiltrado
Jota – na verdade, João Henrique Ferreira de Carvalho, responsável pela
denúncia e morte de outros tantos militantes. Ela foi agarrada no guichê de
passagens da rodoviária, carregada aos murros e pontapés, algemada e sacudida
dentro de um carro para ser torturada, estuprada e abandonada exangue por dias na
Fazenda 31 de Março, em Palheiros, até a morte com dois tiros e enterrada como
indigente no cemitério Dom Bosco, em Perus, São Paulo. Só se soube de seu
assassinato no final do mês, quando se noticiou que fora vítima de tiroteio na
avenida Pinedo, na Capela do Socorro. Nas manchetes o nome era outro, mas seu
corpo foi reconhecido por seus pais que foram esbofeteados e ameaçados de serem
jogados do terceiro andar do prédio policial, mesmo com a identificação de
oficial apresentada pelo pai dela. Dias depois, receberam um inusitado
presente: um cassetete do exército com a recomendação de ficarem quietos. Tornou-se
uma relíquia de família, a crueldade dos porões da repressão militar e se
passaram mais de duas décadas para que seus restos mortais fossem identificados.
Está tudo registrado no livro O calvário
de Sônia: uma história de terror nos porões da ditadura (Gráfica Mec,
1994), publicado por seu pai João Luiz de Moraes: Fazê-lo era um dever de pai e cidadão. E ouviam Anjos, composta por Ricardo Vilas Boas.
Veja mais abaixo e aqui e aqui.
DITOS & DESDITOS - A morte é um problema dos vivos. Os mortos não têm problemas. Pensamento do sociólogo alemão Norbert Elias
(1897-1990). Veja mais aqui.
ALGUÉM FALOU: Acho que
a arte tem que transcender a realidade, tem que ser testemunha de uma época, de
uma sociedade. Pensamento do escritor
Luiz Ruffato. Veja mais aqui.
A DOR DA TORTURA - A primeira coisa que fizeram foi arrancar toda a minha roupa e me jogar
no chão molhado. Aí, começaram os choques em tudo quanto é lado – seio, vagina,
ouvido – e os chutes. Uma coisa de louco. Passei por afogamento várias vezes.
Os caras me enfiavam de capuz num tanque de água suja, fedida, nojenta. Quando
retiravam a minha cabeça, eu não conseguia respirar, porque aquele pano grudava
no nariz. Um dos torturadores ficou tantas horas em pé em cima das minhas
pernas que elas ficaram afundadas. Demorou um tempão para se recuperarem. Meu
corpo ficou todo preto de tanto chute, de tanto ser pisada. Fui para o pau de
arara várias vezes. De tanta porrada, uma vez meu corpo ficou todo tremendo, eu
estrebuchava no chão. Eles abusavam muito da parte sexual, com choques nos
seios, na vagina passavam a mão. Também faziam acareações minhas com um
companheiro do movimento estudantil, o Pedro Eugênio de Toledo. Eles obrigavam
a gente a se encostar nas partes sexuais e a torturar um ao outro. Tínhamos que
por a mão no órgão um do outro para receber choques. Eles também faziam a gente
se encostar como se fôssemos ter uma relação, para os dois serem atingidos pelo
choque. Fiquei quase um mês sendo torturada diariamente. Em uma outra vez, eles
simularam a minha morte. Me acordaram de madrugada, saíram me arrastando,
dizendo que iam me matar. Me puseram dentro de um camburão, onde tinha corda,
pá, um monte de ferramentas. Deram muitas voltas e depois pararam num lugar
esquisito. Aí, soube que não iam me matar, pois me disseram que eu ia ser
colocada numa solitária e que iam espalhar o boato que eu tinha morrido. Depoimento da professora Maria
do Socorro Diógenes, extraído da obra Luta,
substantivo feminino: mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na
resistência à ditadura – Direito à memória e à verdade (Caros Amigos,
2010). Veja mais aqui e aqui.
O IMAGINÁRIO - Semanticamente falando, pode-se dizer que não há luz sem trevas
enquanto o inverso não é verdadeiro: a noite tem uma existência simbólica
autônoma. O Regime Diurno da
imagem define-se, portanto, de uma maneira geral, como o regime da antítese.
Este maniqueísmo das imagens diurnas não escapou aos que abordaram o estudo
aprofundado dos poetas da luz. [...] aos
esquemas, arquétipos, símbolos, valorizados negativamente e às faces
imaginárias do tempo poder-se-ia opor, ponto por ponto, o simbolismo simétrico
da fuga diante do tempo ou da vitória sobre o destino e a morte. [...] A ascensão é, assim, a “viagem em si”, a
“viagem imaginária mais real de todas” com que sonha a nostalgia inata da verticalidade
pura, do desejo de evasão para o lugar hiper ou supraceleste, e não é por acaso
que Desoille pôs na base de sua terapêutica dos estados depressivos a meditação
imaginária dos símbolos ascensionais. [...] O complexo do regresso à mãe vem inverter e sobredeterminar a
valorização da própria morte e do sepulcro. Poder-se-ia consagrar uma vasta
obra aos ritos de enterramento e às fantasias do repouso e da intimidade que os
estruturam. Mesmo as populações que utilizam, também, a incineração praticam o
enterramento ritual das crianças. [...] Numerosas
sociedades assimilam o reino dos mortos àquele donde vêm as crianças [...].
A vida não é mais que a separação das
entranhas da terra, a morte reduz-se a um retorno à casa [...]. A cadeia isomórfica que vai da revalorização
da noite à da morte e do seu império é, assim, contínua. [...] O espaço sagrado possui esse notável poder
de ser multiplicado indefinidamente. A história das religiões insiste com razão
nesta facilidade de multiplicação dos “centros” e na ubiquidade absoluta do
sagrado: “A noção de espaço sagrado implica a ideia de repetição primordial,
que consagrou esse espaço transfigurando-o.” O homem afirma seu poder de eterno
recomeço, o espaço sagrado torna-se protótipo do tempo sagrado. [...]. Trechos
extraídos da obra As estruturas antropológicas do imaginário (Martins
Fontes, 1997), do filósofo, antropólogo, pesquisador e professor francês Gilbert
Durand (1921-2012).
O ARCO & A LIRA – [...] As imagens do poeta têm sentido em diversos níveis. Em primeiro lugar,
possuem autenticidade: o poeta as viu ou ouviu, são a expressão genuína de sua
visão e experiência de mundo. Trata-se, pois, de uma verdade de ordem
psicológica, que evidentemente nada tem a ver com o problema que nos preocupa.
Em segundo lugar, essas imagens constituem uma realidade objetiva, válida por
si mesma: são obras. [...]. Trecho extraído da obra O arco e a lira (Nova
Fronteira, 1982), do escritor e diplomata mexicano, Octavio Paz
(1914-1998). Veja mais aqui.
METAFÍSICA - Vai tempo onda marinha afogando teus mortos / rola na orla esteira
búzios e medusas / põe no ouvido ávido dos vivos / a breve canção do invisível
mar / canção de um longe que ressoa / vai tempo fantástica maré / anêmona
vibrante / colhe em teu cerco o sorriso do homem e o pólen dos séculos / Voa
pássaro marinho semente viva entre rochedos foge para as ilhas à beira das
águas taciturnas / Tempo / mar e marinheiro / barco e viagem / arrasta teus
cansados velames e o vento que os impele / vai velho marujo / rumo aos
horizontes incompletos. Poema da poeta e tradutora Dora Ferreira da Silva (1919-2006). Veja mais aqui.