Foto: Ana Cláudia. Fonte: XXI Salão do Humor. Cartum de Paulo Volmar Mattos Vilanova.
ESTOPÔ CALANGO
- Teje preso!
Êpa! O que houve? Nada, era o juiz Dermeliandito Catendense que implicava com um transeunte qualquer em fortuita circunstância. Pensa que era de brincadeira? Estava preso de mesmo. Algemado e sacudido atrás das grades, numa daquelas preventivas e arbitrárias averiguações coercitivas peculiares aos bafejos dos donos da ordem. Lei é lei. E pronto!
Adepto que era da teoria do Cesare Lombroso, fanático até, a autoridade, de sopetão, identificava um qualquer suspeito pelos caracteres biológicos, enquadrando-o no biotipo criminoso correlato, por antecipação. Bastava só o cara ter um maxilar proeminente ou o arco zigomático desenvolvido, expor tatuagem, possuir uma protuberância occipital, uma arcada supraciliar pronunciada, uma precocidade sexual com jeitinho de quem solta o bocal da quartinha por aí, queda pela indolência, arrastando chinelo e todo amaneirado como quem anda no balanço do navio, linguagem recheada de gírias e onomatopéias, inclinação para jogos crudelíssimos e andar aos bandos, sinais de supersticioso, desproporção entre a caixa craniana e o desenvolvimento do cérebro, um ar de crueldade, insensibilidade à dor, ora, tava ali o dito cujo malévolo autenticado pela perspicácia do vigilante defensor da ordem e da boa convivência, devidamente encaminhado para reclusão numa solitária até quando ele bem quisesse. Dito e escrito e dou fé. Só podia comer bosta de cigano, adivinhava o delito de véspera. E num tinha jeito, fosse quem fosse, tava lá qualquer coitado acusado respondendo a processo criminal por alguma coisa cometida, incurso nas penas que lhe aprouvesse. E não adiantava vir com lamúrias e peditórios provocando sua piedade, não. Inexoravelmente estava dito e feito, em cima do risco, pronto. Sem mais delongas.
Segundo ele magistrado - um homem de poucas palavras e pequena estatura, bigodinho hitleriano e atitudes extravagantes, parecendo até a reencarnação do tal de tão cagado e cuspido -, era a sua maneira preventiva de coibir a criminalidade, afugentando a impunidade da sua comarca. Gostava, o togado, na veneta, de bebericar até altas horas da noite, fungando como a praga, pigarreando com cólera, puxando as calças num aperto dos braços nos quadris quando nervoso, falando na ponta do pé quando enfatizava seu ponto de vista, espiando desconfiado pelos cantos na sua vigilância jurídica, não dando trela a ninguém, pagando a conta à maneira inglesa por não querer dever nem favor a vivente, bordejando por bares e antros de perdição, catando sujeitos obscuros que perambulavam ao arrepio da lei, assumindo, para si, atitude de atalhar ação contra contumazes e primários, adivinhando o sinistro na mais recôndita intenção.
- Tô vendo na sua cara que você vai cometer um delito, sujeito!
- Eu não, doutor, tô só enfezado com a patroa lá de casa!
- Você num me engana não, salafrário.
Estava ele ali, em Alagoinhanduba, há mais de quinze anos, usando de todo aparato constitucional segundo seu próprio juízo e interpretação, sem trastejar na punição. A lei segundo o seu modo. Qualquer violação por mais ínfima que fosse, inofensiva besta que se possa existir, estava ali devidamente enquadrada. Se não houvesse razão para punir, inventava jurisprudência pessoal e lascava no toitiço do miserável. Tome! Depois era só ver a língua de fora do enclausurado. E não se restringia apenas aos racionais não, vez que símios, alimárias, bípedes emplumados, mamutes, fósseis, batráquios, répteis, o que fosse, já fora vítima da sua ordem severa e vigilante. Bastava atravessar-lhe o caminho e estava dito e feito. Exemplos? Muitos, até São Benedito fora encarcerado por ordem sua, porque foi tomado por padroeiro da zona do baixo meretrício, acolhendo sob sua santidade gente da laia de prostitutas, pirôbos, meliantes, abigeatos e outros possíveis contraventores. Nada escapulia de sua ira. Lá estavam detidos no fétido xadrez a imagem do santo, periquitos, passarinhos, porcos, cachorros, cavalos, sagüis, espingardas, pares de sapatos, bolas de gude, tacos de sinuca, facões, escapulários, toalhas de banho, livros, réguas, fios de prumo, colheres de pedreiro, latas de tinta e todas as coisas suspeitas, instrumentos estes delituosos que pudessem ser usados para incrementar querela qualquer. Era mesmo, juro!
E quando qualquer bacharel metido a besta, intervinha fazendo uso do artigo 350 do Código Penal ou do artigo 4.º, itens II e VIII ou do artigo 5.º itens III, X, XI, XII, XXXIX, LIV, LVII, LXVI, LXVII, LXVIII, LXIX e LXXV da Constituição Federal, vôte! Viesse falar de direitos humanos ou das garantias fundamentais, hum! - Que é isso? Reduzia-o ao mais incipiente rábula, mandando incinerar logo o diploma do intrometido para nunca mais atuar causídico no fórum, esfregando na venta do adiantado defensor, a peitadas, que quem mandava ali era ele e só.
- Retire-se ou teje preso!
Era, arrotava, peidava e arrogava. Processo mesmo só andava quando ele queria, ou melhor, dava logo celeridade a qualquer denúncia besta. Era tempo recorde nos processos. Não havia morosidade não, exigia vistas dos autos e tascava despacho ou sentença na horinha. Até inventários volumosos com arenga e pacutia muita pelo avultado rol de bens por partilhar no espólio, ele de pronto, metia logo sem dó nem piedade uns tantos dos tais na cadeia e distribuía a seu modo o quinhão para cada um dos herdeiros.
Teve uma hora que a cadeia não cabia mais ninguém de abarrotada. Nem aí, meu, ele distribuía nego enganchado nas árvores, nos confessionários, pelas garagens, pelas privadas, até pendurado nos postes, atrepados no badalo do sino, no pau-de-sêbo, no semáforo da esquina central que nem funcionava, tudo para chamar atenção do povaréu, provocando pânico para que ninguém se metesse a besta para a sua banda. Quem num respeitava?
E Alagoinhanduba, por causa disso, tornou-se uma cidade pacata visto as sucessivas intervenções prévias do douto julgador na vida das pessoas, antes do nascimento de qualquer litígio. Adivinhava tudo. Houvesse qualquer discussão contenciosa, de chofre, estava ele lá, coagindo os interlocutores com anúncio das mais diversas razões, cíveis ou criminais, para que aquele bate boca se extinguisse ali mesmo e logo, ora.
Não havia quem enfrentasse figura tão labrêga quando este usava do expediente da desconfiança, eita! Suspeitasse, lascou-se, vai sofrer pro resto da vida, perseguido até a próxima encarnação.
O homem era insone e houvesse o que fosse o bicho chegava na hora certa. A ocasião é calva e marcha sobre o fio da navalha!
Outra figura impoluta e muito folclórica do lugar era o Deno Cláudio que retornara à sua cidade natal depois de uma aventureira estada por São Paulo à procura por emprego. Fora a convite de um amigo de infância que o interpelara para prestar-lhes serviços gerais. Chegando lá, às primeiras instruções, o Deno Cláudio argüiu sobre qual montante resultaria a título de salário.
- Ué, só isso? Vejamos: lanche, passagem, almoço, janta, café da manhã, pernoite, fica a conta pela receita! E o CPF?
- Você não possui CPF?
- Possuo CIC, Cadastro Individual do Contribuinte do Ministério da Fazenda, esse tenho sim. Eu tô falando do cigarro, da Pitú e da foda, o CPF, como é que fica? Não sobra nada! Sou um chofer de respeito, meu, mereço mais! Amplie meus proventos, senão arribo.
Não entenderam a transa toda, claro, vez que o solicitante exigia dele mais altruísmo nos afazeres que consolidá-lo em vínculos empregatícios. E Deno Cláudio depois de anos de sofrimento na paulicéia, voltou mais decepcionado quanto antes estivera. Sem fazer nada, de manhã, de tarde e de noite, caçoando de todos e analisando a movimentação estelar, ficara.
O galo canta
O macaco assobia
Pica de jegue
No cu do vigia!
O macaco assobia
Pica de jegue
No cu do vigia!
Deno Cláudio motejava do seu João, um vigia de rua, que se vestia impecavelmente com uma farda alinhada cedida para a milícia municipal, marchando com firmeza e altivez, dando continências, arrumando o trânsito e tomando conta das casas e das pessoas no apogeu de sua probidade. Dava ordens, já anos gastos, respeitador que era de toda lei cumprida em cima da risca, fã número um do juiz de direito. Diziam ser ele o cheleléu do meretíssimo.
Do que se sabe, era casado com a Nega Beba, crioula atarracada que andava a dar rasteiras no velho. Deno mesmo engalhou-lhe duas de quinhentos, noite após noite.
O ancião já se dera por desafeto do intrometido jurando-lhe desforra. Precavendo-se de ventos aziagos, Deno conseguira emprego de motorista na transportadora dum concunhado seu e se metera estrada afora, desbravando antros de perdição.
Na boléia do caminhão exercitava sua voz cantando músicas que embalariam o coração de ouvintes nos cabarés visitados, enquanto penteava com insistência a sua longa cabeleira, lisa e contornada nos ombros, tratada aos melhores produtos da higiene capilar.
Durante as viagens se lembrava com nostalgia do tempo em que fora locutor de rádio, cobrindo tudo, irradiando por horas, de velório à campanha política, enlaçando os corações das mocinhas casamenteiras, adúlteras, encalhadas e desengonçadas. Aquele, sim, é que era o seu trabalho preferido, ganhava pouco, mas dava para o gasto. Não havia boca livre que não fosse convidado para, no dia seguinte, homenagear ao microfone radiofônico os patrocinadores do regabofe no maior teitei. Por isso, não havia grota que ele não se enrabichasse com uma qualquer, sem passar aperto para escolher no caderninho a que se engalfinharia de noite. Para sua tristeza, perdera o sonhado emprego na rádio, sua desdita maior, segundo ele próprio, porque esculhambara com palavras de baixíssimo calão um seu colega por tirar-lhe uma dedada desgraçada no oiti goroba.
- Puta que pariu, filho da puta, meter esse dedo nojento no meu cu é foda, porra!
O reclamo inadvertidamente estava no ar para seu desespero, não notara isso. A população inteira ouvira aquele impropério nas ondas radiofônicas da Caititu AM, ZYB 279, 1101,5 megahertz, Rádio Caitutu de Comunicações, a emissora da integração regional. Daí, demissão por justa causa, acompanhada de um apupo pro resto da vida.
- Melhor perder o emprego que a honra do papeiro! -, consolava-se arrependido.
O caminhão, não, desde tenra adolescência aprendera a guiá-lo vez que toda a sua parentalha era de bem sucedidos fornecedores de cana da região. Bastava qualquer piscar de olhos, lá estava ele lá, verdadeiro guará, ainda desabilitado para tal, puxando uma Julieta com toneladas de cana. E quando chegava na usina era uma mangação sem fim, porque meio mundo de coisas as mais estranhas, estavam penduradas no gaiolão, enfeitando o transporte canavieiro. Contavam nos dedos os utensílios enganchados: era pára-choque de fusca, farol de trator, braço de calunga, pára-lama de rural, pára-brisa de jipe, toitiço de ticoqueira, roupas estendidas dum varal, reboco de parede, folha de zinco, estepe de picape, folha de coqueiro, tronco de árvores, pedaço de postes de eletrificação, peruca de careca, cabides de engomados, caçoá de cambiteiro, cavalo de carroça, anágua rasgada, galhos de fruteiras, estacas de cercado com arame farpado e tudo, tudo mesmo arrancado pelo desembesto dele ao volante, levantando a maior poeira por onde passasse.
Certa feita ele vinha desembestado descendo a ladeira, quando faltou freio e entrou numa feira livre de levar um bocado de tolda para casa, não precisando muito mais de fazer feira para mais de mês. Tempo longo sem aparecer na cidade, eximindo-se uma surra da populaça ofendida.
Doutra vez de madrugada, numa esquina apertada, o treminhão esbarrou com a casa de Nonoca Bandoleira que se encontrava atualizando a vida com o marido caminhoneiro que chegara do sul do país, do bicho arrastar cama, coito, cozinha, bruguelos, tudo no peito, indo parar no quintal, puto da vida.
- Travou a direção, meu, num pude fazer nada!
Era tanto poste rolado, da companhia de eletrificação urbana já deixar tudo arrumadinho e amontoados pelas esquinas esperando a reclamação dos incidentes, suspendendo o fornecimento de energia elétrica.
- Já sei, meu senhor, o doido arrancou outro poste com o caminhão, num foi?
Certo dia, após descarregar o caminhão, aportou na porta de um lupanar duma cidade interiorana vizinha e se encheu dos quequéos, cantando aquelas canções de roedeira e dor de corno até altas horas.
- Olhaí, magote de puta, o sucesso do momento na voz maviosa de Dênio Cláudio, o cantor da boêmia e dos desencaminhados. Digo-vos, do fundo da minha sapiência, "a vida não se extingue, transfere-se". Já dizia o douto Cascudo no apogeu potiguar dos papa-jerimuns!
No maior dos aplausos da platéia, depois de entoar a maior lubrificação de gaia, aproveitou-se da ocasião e se mandou embaixo de aplausos peculiares aos maiores astros do momento, deixando de pagar a conta, no maior fiado da paróquia. Desatenção dos bestas roedores e suas eventuais dores de cotovelo. Amuntou no caminhão, debreou e largou marcha à ré, não se dando conta da bronca em que se metia. Era que uma viatura policial se encontrava estacionada logo na rabeta do pesado. O pára-choque arrombou com tudo, transformando o veículo da DP em verdadeiro destroço. Ele, desapercebidamente, deixara a viatura toda amassada, visto que, as rodas traseiras do caminhão, passaram por cima do inditoso veículo, causando um prejuízo enorme ao serviço policial. Nem se tocou, rumou para longe, até outro cabaré na saída da cidade, aonde chegara e se apossara doutro microfone a cantarolar noite adentro.
Lá pelas tantas, já aos peidos e completamente embriagado, atendendo o pedido de bis por mais de vinte vezes, recantava o sucesso do momento, aguando a cornice dos presentes.
A polícia dera conta do seu paradeiro e já cercara o cabaré, intimando-o a prestar esclarecimentos. Ele nem aí, insistia ainda mais em bisar o bolero.
- Distinta gente que lota este respeitável rendezvouz! Saúdo a todos, saúdo os briosos policiais que nos guardam nesta ocasião, imprimindo respeito e segurança às nossas danças. Deixo-lhes com o coração partido, tendo que atender outros compromissos noutras plagas. O sol já desmonta a madrugada e me vou deixando o meu bom dia para todos! Obrigado! Obrigado!
Madrugada profunda, já cansado de cantar, solicitou aplausos os quais vieram efusivos por uma tietagem fiel e encantada. Só a polícia esperava antipatizada e doida para recolhê-lo no mais imundo xadrez que se tenha notícia.
Calmamente e cheio de glamour desceu do palco gesticulando muito, quando o comandante da tropa já o interceptara, dando-lhe voz de prisão. Ihhhh! É bronca braba! Sai dessa, bicho!
- Oh! diletos milicos, como vão? Instado por gente tão distinta assim, a gente sente a segurança e o dever cumprido por disciplinados homens da lei. Saúdo-vos, folgo em ver-vos alegre e retumbante!
- Deixe de conversa mole e nos acompanhe até a DP, seu porra!
- Quanta gentileza, escoltar minha pobre alma, não precisa, dispenso-vos de tal incumbência!
- Deixe de conversa mole, cabra-safado! Ou vai por bem, ou vai por mal embaixo do maior cacete!
- Vocês conhecem, por acaso, o coronel Queijerão? Se conhecerem, eu gostaria de me apresentar, sou Deno Cláudio, sobrinho predileto do coronel Queijerão!
Quando ele citou o nome daquela autoridade onipotente, os meganhas ficaram brancos de medo e trataram desesperadamente de limpar as roupas do cantor, figura ilustre e sobrinho da maior reputação do país, retirando-lhe qualquer sujeira por acaso impregnada pela chegada abrupta deles, dando continência e solicitando para que ele voltasse ao palco brindar os presentes com a sua voz maviosa mais um sucesso das paradas.
Deno dispensou, então, a segurança deles e lascou em fá maior mais uma brega música peguenta, das gaias se agitarem todas numa cornice geral. Lalarilarilará. E foi aquela meleguenta serestada desfilada em tons menores de acordes que tocavam fundo naquelas alminhas penadas.
Terminada, depois de arrancar chôros e compaixões mil dos mais carentes e pretensos cornos futuros, agradeceu aos presentes, louvou a deus pelos dotes artísticos, à sua mãe por tê-lo concebido e a todos por terem a oportunidade de comprovar o seu talento naquela comovente canção e se foi. Até a polícia se comoveu, fazendo um cordão de isolamento até a saída do distinto.
Despedindo-se, emitiu um aceno de adeus e saltou na boléia pelas estradas da madrugada.
Ao cabo de dois dias a polícia vasculhava o seu paradeiro numa busca incessante até debaixo d'água, tatu forçando terreno até nos quintos dos infernos. O coronel mandara que lhe trouxessem à sua presença, vivinho da silva e sem escoriações algumas porque ele mesmo as queria arrear lenha naquele insolente sobrinho que desconhecia. Fez afixar até uma foto do procurado em todos os locais públicos e notórios da redondeza. E nada do cabra dar o ar de sua graça, abufelando o graduado da corporação militar e desmoralizando o quartel.
- Quero-lo aqui, amanhã cedo, nem que seja estrupiado, apodrecido ou degolado! -, era essa agora a ordem ensandecida do oficial.
Dois meses depois fora capturado enquanto dançava num cabaré em terras do Ceará. Trazido à força e aos puxavanques, dera na presença do suposto tio que lhe inquirira pela folga tamanha. Antes de levar a maior surra na cadeia, um irmão do seu concunhado interviera indenizando a viatura e liberando o desgraçado da cadeia. Foi a sua salvação. Mas, não escapara de uma jura de sova, dê tempo, dê tempo. Ainda hoje relata esse fato com ar de galhofeiro. Saíra impune daquilo. Que fino! Ficara a esmo. Desempregado.
Regressara ao convívio dos seus, ficando horas e horas levando reprimenda dos parentes que condenavam-no a atitude de se meter logo com a polícia. Tomou, assim, claro, logo conhecimento das coações do juiz. Viu de perto a ameaça, o bafo sinistro do da lei.
- Num tô vendo o senhor trabalhar, posso metê-lo na cadeia por vagabundagem. Arrume logo uma lavagem de roupa para se ocupar, senão arrumo uma acusação por vadiagem -, era o juiz em riste, esfregando o seu pau da venta.
Ficou matutando aquela alfinetada. E agora? Investira no adultério da Nega Beba, procurando sarna para se coçar. O guarda João desconfiava de sua desídia. Até que certa tarde deu-lhe um flagra com a mão, o bregueço e a intenção inteira enfiada na botija da danada.
- Num avance que é feio! –, disse Deno para o traído.
- Só vai dar ele! –, retrucou o guarda.
O vigilante acoloiado com um seu primo, o cabo Dilércio, deu-lhe uma pisa de deixá-lo bambo esquecendo de viver, morre mais num morre, quebrado até o esperma que se enfiou na mãe para gerá-lo. Nele e na Nega Beba que sumira para nunca mais ser vista. Dele restou apenas uma perna quebrada, o baço estourado, o olho esquerdo perdido, o queixo rachado, o pau da venta inchado, as costas lapeadas, uma mão espragatada e uma série de hematomas pelo resto do corpo. Mole, molezinho, ficou prá mais de mês em cima da cama. Parecia mais que num teria recuperação mais nunca. Entronchado todo, ele foi se reabilitando a prazo, meio lá, meio cá. Até que já estirava uma perna, bulia um braço, um pulmão funcionava. Foi assim preguiçosamente que se deu pronto pra outra. Quando se sentiu totalmente novo, deu logo de providenciar umas coisas que lhe removia na cabeça: roubou de um revólver calibre 38 de seu pai, acomodando-o na cintura e tramando vingança. Isso andando com a maior santidade, um jeitinho de pederasta sonso, todo detalhador, cheio de pantim, rezando forte e cumprindo obrigações religiosas na vera.
Quando madrugava, saía insone pelas ruas, tapiando que passava noite após noite tentando encontrar os dois meliantes responsáveis por aquelas lesões. A família já estava com as mãos na cabeça exigindo que não se metesse mais em nenhuma doidice. Ele lá, silente, penteando o cabelo com as mãos, hum-hum na voz para afiná-la na hora do blefe e uma calma de deixar os outros enervados. Onde passasse matava a grama, num nascia nunca mais. Era uma verdadeira pata choca, ali. Um passo ali, outro acolá, respeite o balanço do mar.
Vinte dias depois, ei-los. E lá estavam o guarda João e o cabo Dilércio na maior folia cachaceira. Era mais de uma hora da madrugada. Os dois mangavam, imponentes, de suas estripulias com um e com outro. Deno Cláudio bateu forte no piso do recinto.
- Cara dum, cara doutro, quem não cair é gafanhoto!
E disparou toda a carga do revólver na cara dos dois. Estendidos e se debatendo, Deno ficou olhando o estertor deles.
Não tardou muito, chegou a polícia e efetuou sua prisão em flagrante delito. O juiz foi lá vê-lo.
- Eu num disse, cabra, que lhe prendia de um jeito ou de outro? Você tem todas as características de um assassino e vai mofar ai dentro pro resto da sua vida!
Foi o maior rebu.
Chegaram para mais de dez advogados parentes do homicida, visando defendê-lo. Vieram as diligências preliminares com interrogatório do réu que confessou o crime em legítima defesa da honra, chegou a sentença foi pronunciado, condenado, negado habeas corpus, fiança e sursis.
O juiz Dermeliandito devassou-lhe a vida e descobrira que o recluso já tivera pena imputada por deflagração perigosa ao soltar uns rojões avantajados em via pública, a ponto de um dos traques descomunais se enfiar cu adentro da Maria Bunduda, dela voar mais que Apolo 11 e de morar até hoje na lua dando língua para gente daqui.
Outra de que foi condenado a alguns dias de cadeia como incurso nas penas do artigo 28 das Leis das Contravenções Penais e pagando o pato pelo desaparecimento da quejanda.
Mais outra por defraudação de penhor, quando desalienou garantia pignoratícia, esta nunca muito bem explicada por ninguém, mas que findou dele na polícia e nas garras da justiça, foi.
E ultimamente, andara se estranhando com a polícia doutra cidade por vandalismo, atentando contra o patrimônio público.
A parentela agoniada trouxe-lhe advogados, cada um mais doido que o outro, outorgando procuração com poderes para defendê-lo a doze bacharéis do seu parentesco, que abonaram sua conduta ilibada, pleitearam sua soltura, requereram o relaxamento da sua prisão, postularam a improcedência da acusação e ainda fizeram o maior carnaval.
Mas, o indigitado estava na mira do magistrado e não havia lei nem representante dotado de capacidade postulatória que fizesse do detento um anjo naquela hora, a ponto dos seus defensores remexerem a legislação vigente apresentando um calhamaço de quase três mil páginas na defesa prévia, usando de jurisprudência vária ao que, o meretíssimo, usando do mesmo expediente, largou despacho longo e rebuscado na improcedência do requerimento.
Foram apresentadas aos autos processuais mais de duzentas testemunhas arroladas pela defesa que não acrescentaram em nada, recorrendo, então, à inimputabilidade do denunciado pelo fato dele não gozar de saúde mental, exigindo estudo através da metodologia clínica, psicológica e psicossociológica, diagnosticando a personalidade do agente do crime, encontrando medidas terapêuticas para prevenir patologias que poderiam desviar ainda mais o criminoso.
Mil e uma outras tantas doidices jurídicas cometeram impetrando, por fim, um mandado de segurança contra o egrégio representante da magistratura, alegando, fundamentalmente, abuso de poder e perseguição política contra o apenado. Concentraram a defesa na imaturidade, egocentricidade e relações emocionais, observando que nem a morfologia craneana nem as localizações cerebrais correspondiam a de um homicida nato, contestando sua condição genético-hereditária visto que seus antepassados eram pessoas de bem nunca dantes metido com broncas ou quizílias; nem o aspecto biotipológico, nem psicológico ou sociológico do réu evidenciaria indício de um reincidente por se tratar de primário, sendo o caso afeito a um delito acessório, conforme o artigo 180 do Código Penal, uma vez que ele infrigira a lei por ter sido vítima de agressão praticada pelas vítimas contra a sua pessoa. Enfim, um zoadeiro sem fim.
Não se fazendo de rogado, o juiz fez a identificação do réu, com base nas classificações de Nicolas Pende, como sendo o transgressor, com todos os caracteres biológicos, do biotipo brevilíneo-estênico: de estatura inferior, peso excessivo, membros inferiores curtos com tronco bem desenvolvido, temperamento lento, se bem que forte; comportamento sexual tendendo ao exagero, prova de sua natureza criminosa. De fato, estava a foto do Deno ali descrita pelo dito jurisconsulto.
Depois de muitos recursos, voltas, prescrições, indeferimentos, baixas, arquivamentos, vistas, despachos, juntadas e loucuras mil, veio então o tribunal do júri, gente como a praga para ver no que aquela zona ia dar. Tinha até cantador de repente na porta do fórum narrando as doideiras. E, logo no primeiro instante era gente como a gota conferindo as especificações lombrosianas de um assassino, uns aos outros desconfiados de que ali poderia estar um facínora para subverter a ordem ou cometer qualquer desgraça contra o alheio. Todos desconfiavam agora de todos, conferindo as suas feições, jeitos, sabe-se lá o quê.
No início da sessão foi lida a acusação em seus pormenores o que Deno levantou-se e contestou tudo. O juiz mandou-lhe que se sentasse, mantendo-se em silêncio. Fora obrigado por seus advogados a se calar o que, não havendo, largaram um esparadrapo na boca e amarraram-no na cadeira. Assim imobilizado, teve início o discurso da promotoria pública que não conseguia se concentrar por causa da inquietação maluca dos advogados de defesa, uns aos outros se estranhando na estratégia da defesa. Era um magote de doido no plenário.
A representante do Ministério Público desferiu discurso áspero ao que o condenado levantou-se duas vezes para contraditá-la, quando fora admoestado a ficar quieto. Fora dada voz de prisão a ele. Assim, Deno tascou palavrório depois de arrancar o que lhe tapava a boca.
- Ué, oxente, eu num já tô preso, quer que me divida em dois é, abestalhada?
A risadagem comeu no centro. Ela nem se conteve, fula da vida, pronta para desbancar o réu, leu um libelo de não sei quantas páginas com as mais excêntricas loucuras cometidas por ele, acusando-o de milionário por trazer em sua defesa mais de dez advogados aos autos, cinco deles representando-o neste tribunal. E o pior era que cada um dos ilustres defensores e a seu modo davam de emitir petições independentes, cada uma mais esdrúxula que a outra, somente avolumando os autos processuais. Parecia mais uma competição de causídicos, quem seria o melhor capaz de inocentá-lo daquela fecunda bola de neve? Só pagando para ver.
Durante os catabís enfurecidos dela, um deles, o Derevaldo Ladeira, tio dele réu, levantou-se e balbuciou algo, atrapalhando com sua intervenção, o raciocínio da promotora.
- Deno Cláudio, Deno Cláudio, o Cláudio, tu num és nenhum imperador de Roma, és um pé-rapado, um bunda-mole, um fodido da vida!
Com essa intervenção, o tribunal caiu às gargalhadas. Nem a acusadora inexorável pôde resistir a tão tresloucada atitude.
O pior não foi nada. Enquanto Derevaldo Ladeira imprimia suas sábias palavras, outro deles, o Derciliado Ladeira Junior, deu-lhe uma dedada no cu da prótese dentária voar, quase matando o escrivão que datilografava tudo. Embaraçado com a desproposital atitude do colega sobrinho resolveu, então, sentar-se quando teve a cadeira puxada pelos asseclas, estatelando a bunda no chão. Começava então a hilariante e por demais vexatória defesa do Deno Cláudio.
- Onde já se viu, tio, num é ainda a hora de falar, porra! –, reclamava a plenos pulmões o Derciliado Ladeira Junior, ajudando o seu tio a se levantar daquela humilhante posição.
A promotora teve um ataque de risos, vendo ali cinco paspalhos, requerendo ela, então, a permissão para que se suspenda o júri visto não encontrar condições de prosseguir na acusação.
Na verdade eram vinte e dois defensores, quatro que arribaram quando viram de perto o nó cego; seis que tiveram suas procurações cassadas e carteiras da ordem apreendidas; dois que morreram do coração totalmente envergonhados; e outros que preferiram tomar uma cachaçada num boteco do lado do fórum, esperando para ver como ficava aquela zona; e apenas cinco se apresentando para a defesa do réu no tribunal. Foi um escarcéu. Cada qual dos advogados insistia na continuidade dos trabalhos, cada um falando mais alto que o outro, quando se constatou os fundilhos da calça do Derevaldo rasgada, mostrando uma cueca velha com dois buracos no furico. Os presentes se embolavam no chão de tanto rir.
O juiz arretou-se e deu mais de mil marteladas, botou ordem em tudo e mandou a promotora continuar seu libelo. Ela não se aguentava em pé, conseguindo, aos engasgos, encerrar seus trabalhos.
Foi dada, então, a palavra aos defensores do réu.
A pulso e contra a vontade dos outros, Derevaldo levantou-se, ocasião que os outros meteram a mão nas suas próprias cabeças prevendo o desmantelo. O aperreio deles dava-se pelo fato dele, Derevaldo, ter sido formado em Direito por engano, quando o mesmo sonhava ser médico cirurgião. Era, assim, um frustrado que julgava tudo e todos segundo princípios da medicina, reclamando sua má sorte. Aliado a isso, vinha a dificuldade dele de se expressar pela folga na perereca que se balançava na boca, causando pilhérias. No entanto, estufou o peito, pigarreou e começou a relatar a vida pregressa e a árvore genealógica de sua família, chamando atenção para a estirpe dos Ladeiras oriundos de Quiprocolândia, ilustres da vida pública, não só do estado como de todo país, quando dali nasceram vultos do melhor quilate que fizeram a história, desde o marechal Lindalvo Ladeira que deu a maior força ao marechal Deodoro para proclamar a república; passando pelo senador Irvindácio Ladeira, proeminente figura do cenário nacional e braço direito nas duas legislaturas de Getúlio Vargas; do deputado federal Cleindinaldo Ladeira, eminente responsável pela instalação da principal usina de açúcar no município e mola propulsora para o desenvolvimento do estado; do deputado estadual Freidinaldino Ladeira, emérito político e destemido colaborador da redentora de 64 colocando o país nos eixos mediante tanta algazarra, dizem tratar-se do maior alcagüete federal; do governador Manuelinito Ladeira que enfrentou sozinho a oligarquia dos Mendoneiros, donos do poder e dos desmandos estaduais; do ministro Calcidelino Ladeira, moralizador das pendengas com os países latino-americanos e mestre que ensinou tudo ao Barão do Rio Branco; do desembargador Emereciano Ladeira, jurisconsulto dos mais renomados e profícuo herdeiro da nomeação de Ordem e Progresso no pavilhão nacional, fiel que era da filosofia positivista; parentes excelsos deste humílimo defensor e do execrado réu, vítima de uma agressão violenta e hoje recebendo os rigores da lei injustamente. E mais, exemplificou tais e quais razões para justificar a probidade indubitável do Deno Cláudio oriundo de estirpe tão respeitável.
Houve escarcéu: incrédulos, aplaudiram no maior Ibope.
Durante o discurso de Derevaldo todos notaram sua braguilha aberta a mostrar a peça sumária encardida e um rasgão nos fundos de ver-se as coisas escapulidas do lado de fora, balançando preguiçosamente, o que todos rebolavam de rir, quando ele tentando abafar os apupos, ousou enunciar a palavra inconstitucionalissimamente, novamente sua prótese escorregou, todo mundo se abaixou para não ser atingido por arma letal e, a assassina, desintegrou-se no chão, deixando-o com a boca murcha. Felizmente, livrou-se de flagrante em outra vítima de sua perereca criminosa, quando seria outro delito para júri. Banguela, acorreu em socorro da dentadura, recebendo um puxavanque, enquanto catava as sobras da prótese, para que o sobrinho, agora, tomasse da palavra prosseguindo na defesa espetacular.
Derceliado Junior retomou a defesa, confirmando os dizeres do seu predecessor, acusando a promotoria de inverídica e requisitando do corpo de jurados a absolvição inconteste do seu assistido. Argumentou como base de seu discurso que toda ação corresponde a uma reação igual e contrária, numa profusa e prolixa oratória, arremedando Durkheim, citando o Espírito das Leis de Hobbes, a física de Newton, a relatividade de Einstein, o milésimo gol de Pelé, o grito do Ipiranga às margens plácidas, a democracia americana, o poderio das superpotências, as descobertas do milênio, os milagres da ciência, enrolou-se todo e fora interrompido pelo Edinaldito Ladeira que se encontrava com uma indumentária esquisita: uma camisa bufenta cor de rosa, coberta por um paletó alaranjado cheguei, uma gravata grená meio que mofada, uma calça de linho branco encardido e um tênis melado de barro e de bosta. Todo desengonçado, deselegantemente arrumado, fazendo reluzir no meio daquilo tudo uma careca saliente e bem iluminada, com sua voz impostada de locutor de rádio AM, num temperamento impulsivo, possesso, cheio de gás, proferiu solenemente suas arguições vetustas, começando por elogiar o excelentíssimo senhor juiz, douto magistrado; a egrégia representante da justiça pública, senhora de doutora sabedoria e bem aquinhoada nos profundos conhecimentos acusatórios e equipamentos corporais, duma presença irrefutável e duma representação feminina digna das grandes mulheres...
- Dispenso seus elogios, excelência, gostaria que apenas se ativesse aos autos do processo! –, desafiou a colenda promotora.
- Pensávamos, na nossa santa ignorância, que a ilustre e simpática representante do Ministério Público, fosse capaz de absorver nossa mais legítima admiração pelo abnegado trabalho que desenvolve na presente comarca. Engano nosso, mediante nosso elogioso e tênue ademanes, a mesma nos trata com patadas peculiares às mais infamantes feministas mal resolvidas que se aboletam no cargo para desencadear a discórdia e a submissão dos homens ao seu mando!
- Protesto, excelência!
Um novo bate boca se insurgia e o rebú não tinha nem data marcada para terminar.
O Edinaldito fora puxado pelo ancião doutor Desbastianildo Ladeira que tomou a frente, agradecendo a intervenção do douto julgador para moralizar a sessão.
O doutor Desbastianildo foi logo de pronto acusando os outros três defensores por desqualificados a realizar tão sagrada sessão em que o direito e o fenômeno jurídico fossem cumpridos e zelados e a justiça exercitasse plena naquele recinto, quando três débeis malinformados e transgressores causídicos maculavam o exercício do direito com esdrúxulas manifestações de defesa, autóctones que eram da mais parva etnia de bastardos que se alastravam sobre os doutos defensores, tidos como mequetrefes da bunda lisa. Ele, não, que se formara no curso de Ciências Jurídicas pela Universidade de Brasília, respeitado e juramentado, ao lado daqueles amalucados e desconcertantes compradores de diploma da faculdade local, tal ignomínia seria salva com a candura de sua imagem perante geringonça mais sem pé nem cabeça de cínicos aproveitadores.
Peraí, era um defensor do réu ou um Fouquier-Tinville enérgico, ajudando os discursos da representante do Ministério Público? Vôte, que enérgico!
- Tio, vá para a porra!
- Tio, cachaça e bunda nós damos e tomamos!
- Cala boca, Cocão!
Era a sacanagem dos sobrinhos contra o discurso inaugural do tio.
Mas, enquanto o doutor Desbastianildo derramava sua verborragia inócua, um mosquito pousou em seu nariz. Parou atônito. Viu aquele abjeto inseto amolegando a sua venta, deixando-o zanolho esbugalhado. Por causa disso, deu-se, a si mesmo, um tabefe nas fuças tão violento, visando expulsar do seu septo nasal tão indesejável inseto, logo ele que possuía a mania de assepsia, hipocondríaco de não poder ouvir nem um zunido de mosca, puritano de afugentar qualquer tênue poeira em sua mesa, abominando a pobreza e a miséria por fabricarem nojeiras, lixo de uma penca de gente imunda e fedorenta, oxente. Mas o tabefe fora tão violento que ele titubeou, cambaleou e se segurou aos outros que deixaram-no estatelar-se no chão. Uuuuhhhh! Um silêncio tumular tomou conta daquelas dependências.
Nunca se vira tão tresloucado manifesto de desacordo.
As gargalhadas explodiram. Não teve quem se sustentasse com hilária situação, quando ele, se recompondo, ainda berrou para os comparsas:
- São todos uns advogados marca bosta!
Restabelecido do vexame, finalizou acompanhado de uma manifestação ruidosa de reprovação.
Nisso deu uma dor de barriga no Edinaldito dele sair cagando tudo, deixando um rastro de bosta por onde corria. O fedor cobriu tudo atrapalhando o evento. Fizeram faxina rápida para poder dar continuidade ao julgamento.
O Desbastianildo continuava imóvel, parece que pindurado pelo dedo em riste para proferir sua conclusão defensória.
Tudo recomposto ao cabo de quinze minutos, o presidente do tribunal retornou a palavra ao defensor Desbastianildo que quando sentiu que a platéia presente estava atônita com a desqualificação dos outros três advogados de defesa, ele prosseguiu rebaixando o réu, um criminoso deslavado, doloso, culpado, que envergonhava a ilibada conduta dos Ladeiras; que investira contra a vida de duas pessoas que honravam a farda que vestiam, levando ao óbito duas santas criaturas por uma inusitada loucura estapafúrdia. E arrematou:
- Este pusilânime merece a condenação máxima!
E rebuscou citando Sêneca: "bonum ex malo non fit", ou seja, de um mal desse não pode resultar bem algum. É só. E foi só o que disse, ponto final.
Para salvar tão adversa situação, levantou-se o quinto e último advogado de defesa, Gumercindo Ladeira, que tentou consertar tudo. Mas eis que sua gagueira ainda mais atenuava o irrespondível julgamento. Ele sabia tudo, abriu o código penal, o código de processo penal, jurisprudências muitas e saiu discorrendo solto, prevendo um discurso para mais de hora.
Foi quando o juiz arretou-se e interrompeu tudo porque a risadagem comia solta. Chamou a responsabilidade do corpo de jurados e mandou que fosse feita a escolha pelo sim, condenação; não, pela absolvição.
A doideira tomou conta do recinto proporcionando um sete a zero, isso pela reclusão por mais de trinta e tantos anos do acusado nos confins de uma cadeia pública no raio que o parta.
Aí um dos jurados chegou perto do juiz e destabocou:
- Seu doutor, quando é que a gente vai assistir outro show desse de graça, hem? © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais Noveletas.
DITOS & DESDITOS - A
fotografia nunca se revela por inteiro quando você se desmancha por alguém.
Essas relações lembram uma foto polaroid: a imagem vai aparecendo aos poucos.
Algumas coisas se distanciam do sentimento original, mas isso é a vida.
Pensamento da atriz estadunidense Mia
Farrow.
ALGUÉM FALOU: Mais de meio século se passou desde o inferno do
Holocausto, mas seu espectro ainda paira sobre o mundo e não nos permite
esquecer. Toda criança salva com a minha ajuda e com a ajuda de todos os
maravilhosos mensageiros secretos, que hoje não estão mais vivos, é a
justificativa da minha existência nesta terra, e não um título para a
glória. Sou a única pessoa ainda viva desse grupo de resgate, mas
quero que todos saibam que, enquanto eu coordenava nossos esforços, éramos
cerca de vinte a vinte e cinco pessoas. Eu não fiz isso sozinho. Heróis fazem
coisas extraordinárias. O que eu fiz não foi algo extraordinário. Foi normal. Fui criada para acreditar que uma
pessoa deve ser resgatada quando se afogar, independentemente da religião e
nacionalidade. Continuo com dores de consciência por ter feito tão pouco. Ainda
carrego no meu corpo as marcas do que aqueles "super-homens alemães"
fizeram comigo na época”. Palavras da enfermeira e ativista
polaca Irena Sendler (1910-2008), responsável por salvar a vida de mais
de 2.500 crianças durante a ação nazista alemã da Segunda Guerra Mundial. E foi
por isso que ficou conhecida como “A
mãe das crianças do Holocausto” ou “O Anjo do Gueto de Varsóvia”. Veja mais aqui &
aqui.
O DON SILENCIOSO - [...] É uma vida estranha, Aleksei! Os homens
caminham às apalpadelas, como se fossem cegos; juntam-se e se separam de novo,
às vezes se espezinhando uns aos outros… Aqui estamos, vivendo à beira da
morte, e só podemos nos perguntar selvagemente por que tudo isso? Acho que não
há nada mais terrível no mundo do que os seres humanos. Faça o que fizer, você
não chegará ao fundo deles… Aqui estou eu a seu lado e não sei o que você está
pensando e nunca soube, e também não sei que tipo de vida você leva. Você
tampouco sabe sobre a minha vida… Talvez eu esteja querendo matá-lo agora, e aí
está você me dando um biscoito, sem qualquer ideia do que estou pensando… As
pessoas sabem pouco sobre si mesmas. [...] Não. Sou
forte. Não pense que haja homens feitos de aço. Somos forjados de um só
material. Na vida real não há um homem que não tema a batalha, assim como não
há nenhum que possa matar pessoas sem carregar… sem se sentir moralmente
arranhado. [...]. Trechos da obra O Don silencioso (Record, 1987), do escritor russo Mikhail Cholokhov
(1905-1984).
PERENIDADE - Mesmo
depois do Tempo / ficaremos no coração aberto dos / que amamos. / E no grande
silêncio que restar, / na ausência dos gestos e do olhar / ainda assim
estaremos / e seremos. / Mesmo depois do Tempo / quando formos lembrança
evanescente, / seremos outra forma de presença / porque o Amor subsiste / Eternamente.
Poema da escritora e jornalista portuguesa Fernanda
Seno (1942-1996). Veja mais aqui.
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CRÔNICA
DE AMOR POR ELA
CANTARAU
TATARITARITATÁ
Recital
Musical Tataritaritatá - Fanpage.