PROEZAS DO BIRITOALDO - III - Quem é bom já nasce troncho, apesar da água benta no quengo do sopiado - Quem testemunhou o inusitado nascimento do Biritoaldo não ignorará, por certo, as sapecagens que ele será capaz de, num triz de raio, montar e desfazer. Não fossem a bem-aventurada índole e paciência de Ancheta e Terência, vizinhos de boa cepa, não se deixaria por irrelevante e na conta do menos, a presepada do desinfeliz de invadir o domicílio alheio, além do sacrossanto leito matrimonial deles, de forma tão impune quanto folclórica se tornara pela sucedên cia corriqueira dos fatos. O mancebo, depois de tudo, ainda expunha fisionomia lisa que só cara de anjo que nada fizera de demais então. No entanto, quem conhecera a maneira insólita de como abriu a porteira do mundo, num berreiro sem precedentes e da forma desalinhada em que se encontravam os planetas, propiciando augúrios e encantamentos, certifica-se, de antemão, dos maus bofes que dotara aquele arteiro, bruguelo de uma figa. Um maloqueiro, deveras, destamaínho, já se insinuava quando gostava de tirar catôta da venta e ficar amolegando entre os dedos e depois engolir a bolotinha. Eca! - Palmatória não é santa, mas obra milagres! -, ameaçava a progenitora devido o mau costume do menino. O danado, desde miudinho, parecia que tinha um cotôco no rabo de tanta travessura e de não parar quieto em canto algum. Era todo levado da breca. Quando os pais chegavam com a feira, ele saía espragatando tomates, laranjas, cajús, frutas outras e verduras tantas, deixando a sala da casa toda meleguenta com seu pesunhado. Ou então, tomava da vassoura e saía sacudindo as panelas penduradas na prateleira das caçarolas. E não se intimidava: fazia das portas da petisqueira o seu balancim. Tei bei! E era uma vez pratos, xícaras, talheres, tudo espatifado no chão com a queda do móvel em cima dele. Nem chorar, chorava. Pouco? Não podia ver gaiola no alpendre que jogava pedras, passarinho fugia e ele com um bodoque para derrubar o avoador. Outra? Era muito comum, nas horas de aperto, sacar do urinol e ficar cantando, horas e horas ali, enchendo a privadinha. - Mama, sodado! Mama, sodado! A mãe gritava aflita. O menino com o penico na cabeça e a merda rala escorrendo pela cara sebosa. Eita! Doutra feita queria do sabonete seu patim, levando um escorregão de abrir duas janelinhas no meio da boca: o sangreiro espirrou pela casa toda. E bote emboança nisso. Para não perturbar a paz alheia, foi que a mãe, com a sua premonição peculiar, dava de amarrá-lo aos pés da mesa, tudo para conter a travessura do peralta reinante. Ora, piscou de um olho, estava a mesa escangalhada no meio de um farelo que virara os pratos e utensílios de louça que lá se depositavam. Bisquís? Quantos houvessem ele varria com ira aos baques do rodo. Brinquedo? O negócio dele era ver a queda dos outros. Visse um portão aberto, hum, só encontrava esgueirado depois de tantos quarteirões numa carreira de levantar poeira. Quantas e quantas vezes não matou a mãe de vergonha numa carreira desabalada, até ser capturado horas depois e ficar levantando a saia da genitora para se desvencilhar da pisa ali na hora. - Óia a caçola dela! Óia a caçola dela! E todo mundo olhando, no meio da rua, aquele espetáculo. O quê? Um beliscão parecia uma pisa de dez horas de tanto soluço. Chorava mais que cachoeira das Sete Quedas. Mais? As amigas nem podiam visitar a mãe porque morriam de vergonha. Ruborizavam cada vez que ele, alegando calor ou se fazendo por doente, deitava no chão só para ver os fundilhos das tias. Adorava ele ficar investigando as intimidades delas. - Esse menino tem um vício feio, mulher! - Um é pouco! - A quem será que ele puxou, deus meu? A tia Nevinha era a maior vítima dele. Saísse ela do banheiro do banho, ele tramava temor da rua e se escondia - zapt! - por baixo da toalha, mexendo na aranhola dela. - Sai prá lá, menino! -, e não adiantava ralhar, ele nem aí. Mal ele começara a balbuciar algumas sílabas e já pedia o que lhe viesse na telha. - Tia, dêisa eu pedar no teu pitito! - Tome jeito, cabra! - Tia, dêisa eu pedar no teu pitito! - Num amola, menino! - Deixa de encrencar com o menino, Nevinha -, reclamava o pai. - Ele é bom, come sal com ele, vai! E por falar nisso, não tinha fastio algum. Amolava os dentes direitinho. Era o primeiro a sentar à mesa, ficar enfiando o dedo em tudo e o último a sair puxado pelas orelhas. Certa feita queimara os dedos na sopa. - Tá tente! Tá tente! Disso aprendera logo uma lição, mas me diga quem não viu pau nascer torto num morrer envergado? Pois bem, chegou a hora, enfim, do batizado do bruguelo. Padrinho que era bom, nem dera as caras. Ficara apadrinhando o treloso apenas a avó e a tia Nevinha, as corajosas. O vigário que ali realizava o sacramento inicial de todas as religiões cristãs, se arregalava a cada travessura do pestinha. Foi que o chupêta virou a igreja de pernas pro ar, imagem no chão, banquetas desviradas, ritual atropelado e, de tanta peraltice, água benta que já era, veio então um bule quente e batizou-lo ali mesmo. Fora o sacristão que escorregara numa casca de banana que o trastezinho havia jogado no assoalho do templo. Queimou-se em terceiro e quarto graus da fervura do bule. E vem mais por aí, aguarde no próximo capítulo. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais Proezas do Biritoaldo.
A arte
do pintor estadunidense Eric Wallis.
Curtindo
o akbum Cello Sonatas Myaskovsky, Kabalevsky (Naxxos, 2012), com a
violoncelista alemã Ina-Esther Joost Bem-Sasson
& o pianista Allan Sternfield.
PENSAMENTO DO DIA – Um de nossos
problemas contemporâneos é a abundancia de informação irrelevante, a
dificuldade em selecioná-la e a perda de memória do passado. Pensamento do
escritor, filósofo e bibliófilo italiano Umberto Eco (1932-2016). Veja
mais aqui.
CRÍTICA CIENTÍFICA, O QUE É AFINAL? [...] Os defensores da crítica científica esqueceram-se de nos dizer o que
devemos fazer à opinião. Deixar de a ter? admitamos que mitir opinião não seja
crítica. Então o que é: eis ao que o crítico cientifico não sabe responder
[...] se ciência é sinônimo de rigor e
escrúpulo na apreciação de adequada informação, de conhecimento profundo da
matéria em questão – então viva a crítica científica! Mas se é mais uma
manifestação da estafada crença na impessoalidade – então, ai da pobre crítica
científica. [...]. Trechos extraídos da obra Clareza e mistério da crítica
(Fundo de Cultura, 1961), do poeta, ensaísta, crítico literário e professor
universitário português Adolfo Casais Monteiro (1908-1972). Veja mais aqui.
A MULHER, AS MULHERES - [...] Não
existe “opressão feminina” nem “especificidade da problemática feminina”
isoladamente. Existe o fenômeno da subordinação da mulher ao homem em termos de
relações sociais entre homem e mulher ou, em outras palavras, relações sociais
de gênero. É sempre no contexto de uma determinada sociedade que as relações
sociais de gênero são vividas. Consequentemente, nas sociedades capitalistas,
como são na maioria os países latino-americanos, o estudodas relações sociais
de gênero só abrange seu pleno significado no contexto global da análise da
sociedade dividida em classes. [...]. Trecho extraído da obra As mulheres... da República Dominicana: “se
alguém quiser saber...” (Global, 1982), da escritora, socióloga e militante
feminista Moema Viezzer. Veja mais
aqui e aqui.
A EDUCAÇÃO & A TÉCNICA - [...] se a técnica, em termos simples, significa a maneira considerada
correta de se executar uma tarefa, a competcnia técnica significa o
conhecimento, o domínio das formas adequadas de agir: é, pois, o saber-fazer.
Nesse sentido, ao nos defrontarmos com as camadas trabalhadoras nas escolas,
não parece razoável supor que seria possível assumir o compromisso político que
temos com elas sem sermos competentes em nossa prática educativa. O compromisso
político assumido apenas no nível do discurso pode dispensar a competência
tencica. Se se trata, porém, de assumi-lo na prátca, então não é possível
prescindir dela. Sua ausência não apenas neutraliza o compromisso político, mas
também o converte em seu contrário, já que dessa forma caímos na armadilha da
estratégia acionada pela classe dominante que, quando não consegue resistir às
pressões das classes populares pelo acesso à escola, ao mesmo tempo em que
admite tal acesso esvazia seu conteúdo, sonegando os conhecimentos também
(embora não somente), pela mediação da incompetencia dos professores. [...].
Extraído da obra Pedgogia
histórico-critico: primeira aproximação (Autores Associados, 2008), do filósofo e pedagogo Dermeval Saviani. Veja mais aqui e aqui.
A LITERATURA, A FILOSOFIA & A CIÊNCIA – [...] A
literatura deve ser um meio para que possamos enfrentar a tristeza da
realidade, os nossos medos e o silêncio. Ela deve tentar pronunciar palavras,
os nossos medos e o silêncio. Ela deve tentar proununciar palavras, pois temos
medo do desconhecido e do inominável. Acredito que todas as histórias – tanto
as minhas como as de outros escritores - são apenas elaborações lingüísticas
complexas que tentam dar um nome a nossas feriadas, a nossos medos,
tornando-os, deste modo, menos assustadores. É o imenso valor ético e civil das
narrações 9...] Se muitas pessoas lêem meus livros, é porque sentem, como eu,
medo da realidade, ainda que não tenham consciência disso. [...] Se conhecemos
o que nos assusta, podemos enfrentá-lo. Nomear é conhecer. Portanto, os
escritores nos ajudam a dominar nossos medos. Pessoalmente, prefiro a dominação
das narrações à dominação exercida pela ciência, a filosofia ou a religião. No
filósofo, no erudito ou no padre, há sempre uma espécie de autoridade que não
se encontra no escritor. [...]. Pensamento do escritor e artista popular
italiano Alessandro Baricco.
MEDO DE LEITURA – [...] Cada livro era um mundo em si mesmo e nele eu
me refugiava. Embora eu me soubesse incapaz de inventar histórias como as que
meus autores favoritos escreviam, achava que minhas opiniões freqüentemente
coincidiam com as deles e (para usar a frase de Montaigne) Passei a seguir-lhes
o rastro, murmurando: 'Ouçam, ouçam . Mais tarde, fui capaz de me dissociar da
ficção deles; mas na infância e em boa parte da adolescência, o que os livros
me contavam, por mais fantástico que fosse, era verdade no momento da leitura,
e tão tangível quanto o material de que o próprio livro era feito. Walter
Benjamin descreveu a mesma experiência. "O que meus primeiros livros foram
para mim — para lembrar isso eu deveria primeiramente esquecer todo o
conhecimento sobre livros. É certo que tudo o que sei deles hoje baseia-se na
presteza com que eu então me abria para eles, mas se conteúdo, tema e assunto
agora são extrínsecos ao livro, antes estavam exclusiva e inteiramente dentro
dele, não sendo mais externos ou independentes do que são hoje seu número de
páginas ou seu papel. O mundo que se revelava no livro e o próprio livro jamais
poderiam ser, de forma alguma, separados. Assim, junto com cada livro, também
seu conteúdo, seu mundo, estava ali, à mão, pálpavel. Mas, igualmente, esse
conteúdo e esse mundo transfiguravam cada parte do livro. Queimavam dentro
dele, lançavam chamas a partir dele; localizados não somente em sua
encadernação ou em suas figuras, estavam entesourados em títulos de capítulos e
capitulares, em parágrafos e colunas. Você não lia livros; habitava neles,
morava entre suas linhas e, reabrindo-os depois de um intervalo, surpreendia-se
no ponto onde havia parado. [...] O medo popular do que um leitor possa fazer
entre as páginas de um livro é semelhante ao medo intemporal que os homens têm
do que as mulheres possam fazer em lugares secretos de seus corpos, e do que as
bruxas e os alquimistas possam fazer em segredo, atrás de suas portas trancadas.
[...] Trechos extraídos da obra História
da Leitura (Companhia das Letras, 2004), do escritor, tradutor e editor
argentino Alberto Manguel.
A CARTA - Assim não se esperam cartas. / Assim se espera – a carta. / Pedaço de
papel / Com uma borda / De cola. Dentro – uma palavra / Apenas. Isto é tudo. / Assim
não se espera o bem. / Assim se espera – o fim: / Salva de soldados, / No peito
– três quartos / De chumbo. Céu vermelho. / E só. Isto é tudo. / Felicidade? E
a idade? / A flor – floriu. / Quadrado do pátio: / Bocas de fuzil. / (Quadrado
da carta: / Tinta, tanto!) / Para o sono da morte / Viver é bastante. / Quadrado
da carta. Poema da poeta e tradutora russa Marina Tsvetáyeva (1894-1941).
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CRÔNICA
DE AMOR POR ELA
CANTARAU
TATARITARITATÁ
Recital
Musical Tataritaritatá - Fanpage.