PANEGÍRICO APAIXONADO - Charlotte bela! Você não me conhece, nunca me viu nem verá. Somos
coetâneos, a vi por um triz emergencial: sua cabeleira castanha aos ombros de
mares apaziguados, seus olhos azuis salientes de tardes ensolaradas, o seu belo
corpo gracioso de pomares floridos. Muito prazer. Sei tudo da sua vida ádvena de
criança solitária: as malquerenças com a madrasta e o pai distante, os parentes
ocasionais e as poucas amigas, uma jovem enclausurada na Abadia das Senhoras.
Sei das suas leituras de Plutarco, Rousseau e Voltaire, seus heróis alheios Brutus
e Regulus, o convento de nenhuma saudade. Impossível não perceber os seus suspiros
revolucionários na declaração dos Direitos dos Homens, a realista justiceira
pela justa da causa do seu povo. Os seus embaraços, a sua deficiência
ortográfica, a insegura pontuação, a crença desfeita na religião desvanecida, o
desdém pelo brasão de ouro da família e o lustro nobiliárquico, seus despojos e
espólios. Sei do seu encanto pelas inflamadas declamações nas esquinas, a
solidária dor dos sofrimentos de seus camponeses e a brutalidade dos cobradores
de impostos, a opressão e o seu pacifismo, a guilhotina e a terrível saturnália
de Paris, a hediondez pantanosa do Amigo do Povo, a nossa desgraça. Nada mais consentâneo
ao meu desejo de encorajá-la a viver e falar do seu trisavô – aquele que
representa até hoje o heroísmo, a integridade e a grandeza da alma francesa -, que
foi desenganado por amor para tornar-se poeta de Melita, do El Cid, de Cinna e
de tantas cenas com a paráfrase poética da imitação de Jesus e os
decassílabos sonoros da paixão e da vida. Ah, Eva camponesa
de Caen, como eu queria essa Jeanne d’Arc com salvo-conduto,
viajante na diligência, eu a seu lado para a ventura do amor. Eu me apaixonei e
como eu queria não deixá-la sozinha no Albergue da Providência às vésperas de
aniversário da Tomada da Bastilha. Ah, como eu queria acompanhá-la no solar dos
Cordays, as saias jogadas e a vida passando, visitar a parente em Caen e poder
privar dos seus olhos corajosos eloquentes de verdade, e ouvi-la falar de tudo
com sua cativante boca firme, o vinco resoluto dos lábios e beijá-la para vê-la
sorrir com toda sua força e graça, candura juvenil, e nunca levá-la a renunciar
da sua independência, jamais senhora, só o amor, por
certo. Ah, eu seguiria seus passos de deuterocanônica viúva Judite, a piedosa
que invade obstinada com a sua beleza para cumprir a missão no acampamento do
exército inimigo, em defesa do seu povo oprimido, armada com a astúcia de Tamar
e uma estaca a marteladas na têmpora de Siserá, eu me ocuparia disso, com
certeza, não sou nada, apenas você e a poupava disso. Eu também fui iludido:
deixei casa, mulher e três filhos, a vida de agricultor e doutor em entusiasmo,
adepto, como você, de Rousseau. Plantei o poste de liberdade em honra da
Revolução e fiquei enojado com a erupção do Terror triunfante do abjeto
partido dos radicais da Montanha: tudo
devorado pelas mãos de monstruosos miseráveis, incitando a violência. Ah, eu
queria vivê-la com o vestido leve listrado, a charpa rósea cruzada ao peito, a
decisão tomada e tomaria a faca de cozinha afiada e desviaria os seus ardis por
três vezes chegar à banheira de cobre do enorme rato esbelto de olhos
inconstantes – um canibal sedento de sangue, um mata-mouros feio repulsivo e
perverso, eu que desferisse o golpe, sem misericórdia nem piedade, para vê-lo a
agonia da aorta seccionada. Não haveria a sua captura à força de murros e
cadeiradas, a prisão de l’Abbaye, os protestos em vão contra os gendarmes
vigilantes, o tribunal, o banco dos réus, o olhar orgulhoso diante da acusação,
a inquirição e o que tinha a dizer: Nada, exceto que eu consegui! Não haveria apenas quatro dias restantes para
manifestar o meu amor por você que levou a bom termo, cumpriu a sua missão e,
para nós, a paz restabelecida, a Montanha não reinaria mais, estávamos
enganados, meu amor. Seria outra a história. Não veria a defesa acusá-la de Medusa
com músculos de Vulcanus, louca fanática: Eu
matei um homem para salvar cem mil. Não
precisaria acompanhar todos os seus interrogatórios, julgando-a integrante de
conspiração: Nenhum inocente será
caluniado e comprometido por minha causa. Não testemunharia seu olhar
firme, sereno, distante no escabelo: Apenas
eu concebi o plano e o executei. Não choraria com suas pálpebras abaixadas,
vencida pelo cansaço, as falas de teatro como se nem soubesse que estava diante
da morte. Não confessaria a sangue frio, a premeditação, nenhum remorso nem pose
para o belo desenho de Hauer: as faces cor do Sol aos ventos, cílios longos
e escuros, as requintadas cadências da voz maravilhosa, a expressão de um
sacrifício divino. Ah, seria apenas o amor, o nosso amor. Eu seria o seu dolo e
poderia tê-la heroína dos meus sonhos, sem a condenação e todos os seus bens
confiscados, nem libelo acusatório e a multidão. Jamais permitiria as lágrimas de sangue, nem que cortassem suas franjas,
amarrassem suas as mãos para o suplício no ocaso de julho: Perdoai-me pai, a vergonha está no crime, e não no patíbulo. Não
deixaria subir ao cadafalso, enfrentaria todos os insultos e maldições, a sua
recusa religiosa, a sua prontidão estátua de si mesma. Não seriam horas de um dia
estival contando nuvens negras azuladas que rolavam em grandes
massas pelo céu, nem o trovão distante resmungaria além do rio com as gotas de
chuva, nem o raio repentino do sol poente romperia as nuvens para iluminar sua
expressão esbelta aos olhos dos espectadores assustados, nem se curvaria ao cutelo
porque não haveria pena nem cairia lâmina para tremerem lábios com o único
pedido: Meu dever é suficiente - o resto
não é nada! Seria outra a história, seria. O seu último olhar guardei comigo
e não deixaria morrer porque não haveria decapitação, nem o carpinteiro Legros
esbofetearia suas faces na Place de Grève, nem a descartaria no cemitério de
Madeleine. Nada disso haveria. Assim não fizesse, a minha indignação me mataria
em frente à Convenção Nacional, por protesto!
Assim o fiz. Malogrei, cheguei tarde e fui reduzido a marido da Dorothea de
Goethe, o meu prêmio para os tempos de depois. Só me restava recolher seu
discurso escrito, a minha denúncia; fui preso por traição, julgado e condenado:
o exílio para me retratar, ou a sentença de morte. Escolhi o banquete do nosso
casamento eterno. Preferi seguir seu exemplo, meu amor, o autossacrifício
da liberdade: morrer com e por você. © Luiz Alberto Machado.
Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.
DITOS & DESDITOS: [...] estávamos
pois apaixonados e decidimos que eu ficaria a viver com ele. Foi pouco depois
que Miguel me levou a casa da Françoise. Estranhei que ela quisesse
relacionar-se comigo. A verdade é que eram amantes e ela tinha razões para me
detestar. Mas Miguel explicou-me que a Françoise era assim que tinha uma forma muito
elástica de amar. Um amor em que cabiam muitas pessoas ao mesmo tempo. Foi ela
que nos veio abrir a porta. Tive um choque quando percebi que aquela mulher cujos
cabelos começavam a branquear e que tinha duas bolsas de pele pisada debaixo de
uns olhos muito abertos e translúcidos que esses sim pareciam de uma rapariga enamorada,
era a Françoise de quem eu fizera uma imagem algo despeitada de uma criatura
irresistível. [...]– Não esperava que
fosse tão velha. Percebi que a minha observação lhe desagradava. – Velha? Estás
doida. A Françoise tem trinta anos. Gastou-se em corridas na noite para lançar
bombas nos centros dos SS. E depois, na prisão [...]. Trechos extraídos da
obra A madona (Notícias, 2000), da
escritora portuguesa Natalia
Correia (1923-1993), a que se expressou assim em seu poema Autorretrato: Espáduas brancas palpitantes: / asas no exílio dum corpo. / Os braços
calhas cintilantes / para o comboio da alma. / E os olhos emigrantes / no navio
da pálpebra / encalhado em renúncia ou cobardia. / Por vezes fêmea. Por vezes
monja. / Conforme a noite. Conforme o dia. / Molusco. Esponja / embebida num
filtro de magia. / Aranha de ouro / presa na teia dos seus ardis. / E aos pés
um coração de louça / quebrado em jogos infantis.
ALGUÉM FALOU: [...] Franceses! Conheceis os vossos inimigos!
Erguei-vos, marchai! E que a Montanha, aniquilada, só deixe atrás de si irmãos
e amigos. Ó França! A tua paz depende da observância das leis. Não creio
violá-las matando Marat; condenado pelo mundo inteiro, ele se pôs fora da lei. Que
tribunal me julgará? Se sou culpada, haveria de sê-lo também Hércules quando
destruía os monstros? Mas jamais encontrou monstro tão odioso. Ó minha pátria!
Só posso oferecer-te a minha vida, e graças ao céu pela liberdade que tenho de
dispor dela. Ninguém terá nada a perder com a minha morte. Quero que o meu
último suspiro seja útil aos concidadãos e que minha cabeça, transportada pelas
ruas de Paris, seja um sinal de reunião para todos os amigos das leis; que a
Montanha vacilante veja a própria ruina decretada com o meu sangue; que eu seja
a última das suas vítimas, e que o universo vingado me declare benemérita da
humanidade. Se eu não for bem sucedida na minha empresa, franceses, ter-vos-ei
indicado o caminho: conhecei os vossos inimigos. Erguei-vos! Marchai e golpeai!
[...] Trechos finais do manifesto intitulado Discurso ao povo francês, amigos da lei e da
paz, por Marie-Anne Charlotte de Corday d'Armont (1768- 1793),
conhecida como Charlotte Corday,
figura da Revolução Francesa, escrito às vésperas do ataque que
ela desferiu no assassinato por esfaqueamento, do líder
jacobino, médico e jornalista Jean-Paul
Marat, durante seu banho medicinal, cena esta retratada pelo pintor francês
Jacques-Louis David (1748-1825). Ela
foi presa, julgada e executada com pena de morte na guilhotina. O seu ato
sugeriu a proibição de clubes políticos femininos e as execuções de ativistas
como a girondista Madame Roland (1754-1793),
depois de todos os girondinos serem declarados proscritos, que escreveu seu Appel
à l'Impartiale Postérité (Apelo à Posteridade Imparcial), sendo julgada em 1793, conduzida
ao suplício, ao exclamar: Ó Liberdade, quantos crimes cometem-se em teu nome. Charlotte era
descendente matrilinear de quinta geração do poeta e dramaturgo francês Pierre Corneille (1606-1684), fundador
da tragédia francesa e ídolo da trineta. Ela foi agraciada com o apelido
póstumo de l'ange de l'assassinat (o anjo do assassinato), pelo escritor
Alphonse de Lamartine (1790-1869). O
seu quadro foi pintado pelo artista oficial da Guarda Nacional, Jean-Jacques Hauer, que já a havia
esboçado da galeria do tribunal. Entre as muitas manifestações posteriores ao
seu ato, eclodiram homenagens do poeta André Chénier e o escritor Albert Camus,
nas Reflexões sobre a guilhotina, expressou: Dizem que a cabeça decepada de Charlotte
Corday corou sob o tapa do carrasco. Esse
crime contra uma mulher executada, momentos antes foi considerado inaceitável e
Legros ficou preso por três meses por causa de sua explosão. Depois
disso, seu corpo foi autopsiado e teve a constatação de que era virgem. As
consequências do seu ato foram opostas: foram intensificados os terrores
promovidos pelos jacobinos, tornando Marat um mártir. Ela também foi
referenciada e reverenciada nas mais diversas obras: no livro Beware
Madame la Guillotine: The French Revolution with Charlotte(LLC, 2014) de Sarah Towle; Grandes
Julgamentos da História: Ravaillac e
Charlotte Corday (Otto Pierre, 1978), de Claude Bertin; na peça teatral The Female Enthusiast: A Tragedy in Five Act (1807), da dramaturga
estadunidense Sarah Pogson Smith; na peça teatral Charlotte
Corday (1850), do dramaturgo
francês François Ponsard; na peça Vera, ou the nihilists (1880), de Oscar Wilde; na peça teatral Charlotte Corday (1894), de Kyrle Bellew
e na homônima de 1939, de Drieu La Rochelle; na peça teatral The revolutionists (2017), de Lauren
Gunderson; na obra Os miserables (1862),
de Combeferre e nos Harper’s Weekly
(1865), no Rebecca of sunnybrook Form;
nos fragmentos póstumos de Margarety Nicholson, do poeta Percy Bysshe Shelley,
na obra Marat/Sade (1963), de Peter
Weiss, no filme de 1919, Charlotte
Cordday, estrelado por Lya Mara, na ópera do compositor italiano Lorenzo
Ferrero, na canção de parceria entre Al Stewart & Tori Amos, no álbum Famous Last Words (1993), no romance Oito de Katherine Neville e no romance Dr Guillotine (1993), de Herbert Lom. ADAM LUX: UM APAIXONADO SEGUIU SEUS PASSOS
- Durante o seu julgamento, o jovem revolucionário alemão e simpatizante da
Revolução francesa, Adam Lux
(1765-1793), que estudou na Universidade de Mainz e se tornou doutor sobre a
noção de entusiasmo, testemunhou todos os interrogatórios até a sua execução,
apaixonando-se por ela e publicando panfletos provocadores, defendendo que o
assassinato era um ato de libertação. Trata-se de um jovem representante da
Mongúncia, no seio da Convenção, depois de haver deixado em casa mulher e três
filhos. Ele odiava Marat, a quem se referia como um sanguinário cara de sapo. O
gesto de Carlota encheu-o de admiração e de remorso. Sentia haver sido superado
por uma mulher, a quem se apaixonara durante a execução do processo. Não
esperava que ela fosse tão bela. Chorando e fremindo, acompanhou-a até o patíbulo,
viu cair o cutelo. Depois, voltou para casa, escreveu e publicou seu panegírico
apaixonado. Depois de desistir de se matar publicamente, protestando contra a
violência: [...] A guilhotina não é mais
uma vergonha. Tornou-se um altar sagrado, do qual toda mancha foi removida pelo
sangue inocente derramado no dia 17 de julho. Perdoe-me, minha divina
Charlotte, se eu achar impossível, no último momento, mostrar a coragem e a
gentileza que eram suas! Eu me glorio porque você é superior a mim, pois é
certo que ela que é adorada seja maior e mais gloriosa que seu adorador! [...].
A Convenção o prendeu, julgado, teve a escolha entre o exílio ou pena capital, e
condenado, subiu ao cadafalso como se fosse uma tribuna, suas últimas palavras:
Morro por Charlotte Corday! Seu ato o
fez figurar no épico Hermann e Dorothea
(1798), de Goethe.
MÚSICA DE NADIA
BOULANGER
[...] me
ofereceram uma participação pequena num concerto em algum lugar, e eu aceitei, principalmente
para possibilitar aos músicos jovens ter a experiência de uma performance em
público. Nosso sucesso foi instantâneo, e veio então um contrato atrás do outro,
até que eu me dei conta de que tinha entrado numa bola de neve que envolvia a
mim e a todos os demais. Esta é a verdadeira razão pela qual eu me tornei regente.
Você não pode ter um grupo de cantores sem regência, e então eu tive que adentrar
e aprender este novo departamento da minha arte [...].
NADIA
BOULANGER - A música da compositora,
pianista, organista, maestrina e professora francesa Nadia Boulanger (1887-1979), considerada entre as personalidades
mais influentes na música do século XX. Ela foi professora da Escola Normal de
Música em Paris, do Conservatório de Paris e fundadora e diretora do
Conservatório de Fontainebleau, além de ter lecionado nos Estados Unidos e na
Inglaterra. Entre seus alunos estão Aaron Copland (1900-1992), Walter Piston
(1894-1976), Elliott Carter (1908-1912), Jean Françaix (1912-1997), Leonard
Bernstein (1918-1990), Daniel Barenboim (1942) Almeida Prado (1943-2010) e
Egberto Gimsoni, além de ter sido parceira do compositor russo Igor Stravinski (1882-1971)
d irmã da compositora Lili Boulanger (1893-1918). Fonte: Contando a história da carreira de Nadia Boulanger na regência
(Debates, 2016), de Jeanice Brooks. Veja mais aqui.
A ARTE DE KRISTEN REICHERT
[...] Eu tenho um profundo
amor pela arte e pela criação desde muito jovem. Eu pintei e desenhei ao longo dos anos, e
finalmente decidi estudar arte na faculdade. Quando
descobri a tinta a óleo, tive a sensação de que finalmente encontrara o que
deveria fazer. A pintura a óleo parecia vir tão
naturalmente para mim e eu não conseguia o suficiente. Depois que me formei em 2012, passei por um período difícil
tentando descobrir como poderia continuar fazendo arte enquanto também ganhava
a vida. Tirei alguns anos da pintura para dar
continuidade ao trabalho de design gráfico e ilustração. No entanto, senti muita falta de pintar e decidi em 2016
começar a pintar em tempo integral. Agora, estou
feliz pintando todos os dias e tenho o grande prazer de poder exibir com
galerias maravilhosas. [...].
KRISTEN
REICHERT - A arte da artista visual
estadunidense Kristen Reichert, que trabalha
em retratos e afirma ser "uma
entusiasta da moda e do estilo; seu trabalho é uma homenagem ao poder poderoso
e complexo da beleza sobre a vida". Veja mais aqui.
A OBRA DE PIERRE CORNEILLE
Aquele que quer morrer ou vencer raramente é
vencido.