A BARRAGEM AMEAÇA
O POVO NA PRAÇA - O povo de Serro
Azul estava na Praça e era dia de feira, a barragem ameaçando esborrar cheia de
vazamentos por todos os lados, coisas de tragédia que o Brasil tem demais de
anunciada, só de fechar a porta depois que não tem mais jeito e tudo está feito
pela desgraça e o que é que se pode fazer diante de uma situação dessas, porque
é problema dos outros e cada um que se defenda como puder, ah, que a coisa está
feia e vai piorar na torcida da calamidade, bate boca e tralalá. O povo de
Serro Azul estava na Praça e era dia de feira, Sol de verão depois duns dias de
chuvada torrencial, alagando tudo de ficar quase intransitável, mas não é nada
demais, uma cheia a mais ou a menos, tanto faz, tanto fez, quantas não e já
quase acabaram com tudo e ninguém morreu, até agora, todos salvos pela graça de
Deus, oxalá. Agora quem alagava a Praça era o povo de Serro Azul, cartazes e
indignação, o medo da inundação e de morrer escorregando o aguaceiro para se
enterrar no mar. O povo de Serro Azul estava na Praça e era dia de feira (Ninguém
ria com Toínho DuRego porque não eram as umbigadas de Genival Lacerda nem as trelas
e loas do Forró Povão, era sério, na vera, olho no olho) e nas lojas e
supermercados e farmácias e ambulantes, o formigueiro de gente nem aí, era só o
povo de Serro Azul com medo da morte e ninguém tomava pé da situação, coisa
deles lá, não daqui, porque pros daqui importava comprar o queima de preços do
comércio, a urgência dos negócios, o expediente bancário, os compromissos
inadiáveis e emergenciais do dinheiro no bolso, o suor pingando do trampo e a
vida é difícil para viver e tem que correr atrás porque a barragem só ameaça
Serro Azul e quando romper e a inundação chegar invadindo tudo, aí se resolve
na horagá porque é cada um por si, ninguém é de ninguém e salve-se quem puder. O
povo de Serro Azul estava na praça, desamparado e deprimido, quem quer saber
disso, ora, era só gente daquele povoado à beira do abismo na praça central e que
só é daqui porque é distrito de um fogo morto que só se quer saber da bica ou
do nome da estrada quando se vai pra Catuama dar adeus a quem foi dos daqui apagado
pela morte, sepultado pelo esquecimento depois do chororô e das lembranças no
dia de finados, oh, xô pra lá. O povo de Serro Azul estava na praça e voltou para
casa do mesmo jeito que chegou: como se os daqui estivessem dormindo noite
alta, rompesse a barragem e a água afogasse todos os dorminhocos para que sequer
vissem o povo de Serro Azul temendo o pior, uma cidade alvoroçada de fantasmas
que zanzavam como se nada tivesse acontecido, quiçá. O povo de Serro Azul estava
na praça e voltou para casa do mesmo jeito que chegou: com a dor de estarem todos
ali, esquecidos sem nenhuma solidariedade, voltaram à beira da barragem que
ameaça romper, Deus dará. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados.
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DITOS & DESDITOS
[...] A
análise da cultura se reduz aqui, portanto, não a um ataque heróico e
"sagrado" às "configurações básicas da cultura", a uma
"ordem das ordens" exageradamente dolorosa, a partir da qual se pode
ver configurações mais limitadas como meras deduções, mas a uma pesquisa dos
símbolos significantes, feixes de símbolos significantes e feixes de feixes de
símbolos significantes — os veículos materiais da percepção, da emoção e da
compreensão — e a afirmação das regularidades subjacentes da experiência humana
implícitas em sua formação. Uma teoria da cultura plausível só pode ser
alcançada, se um dia o for, construindo a partir dos modos de pensamento
diretamente observáveis, primeiro para determinar as famílias desses modos de pensamento,
prosseguindo depois para sistemas "polvóides" desses modos de
pensamento, mas variáveis, menos estreitamente coerentes, porém ordenados, não
obstante, confluências de integrações parciais, de incongruências parciais e de
independências parciais.A cultura também se movimenta como um polvo — não ao
mesmo tempo, como uma sinergia de partes perfeitamente coordenadas, como uma
compulsão maciça de todo, mas através de movimentos desarticulados desta parte,
depois daquela, e depois ainda da outra, que de alguma forma se acumulam para
uma mudança direcional. Deixando de lado os cefalópodes — onde surgirão os
primeiros impulsos para uma progressão numa determinada cultura, de que forma e
em que grau eles se espalharão através do sistema, tudo isso ainda é altamente
imprevisível, se não totalmente, no atual estágio do nosso entendimento.
Entretanto, não parece ser uma suposição irracional dizer que, quando tais
impulsos surgirem em alguma parte do sistema intimamente interligada e
socialmente consequente, sua força impulsionadora será certamente bastante
elevada. [...] Da mesma forma que nos exercícios familiares
de leitura atenta, pode-se começar em qualquer lugar, num repertório de formas
de uma cultura, e terminar em qualquer outro lugar. Pode-se permanecer, como
eu, numa única forma, mais ou menos limitada, e circular em torno dela de
maneira estável. Pode-se movimentar por entre as formas em busca de unidades
maiores ou contrastes informativos. Pode-se até comparar formas de diferentes
culturas a fim de definir-lhes o caráter para um auxílio mútuo. Entretanto,
qualquer que seja o nível em que se atua, e por mais intrincado que seja, o
princípio orientador é o mesmo: as sociedades, como as vidas, contêm suas
próprias interpretações. É preciso apenas descobrir o acesso a elas.
Trechos extraídos da obra A
interpretação das culturas (LTC, 2008), do antropólogo e professor
estadunidense Clifford Geertz. Veja mais aqui.
CANTARES DE HILDA HILST
I - Que este amor não me cegue nem me siga. / E de mim mesma nunca se
aperceba. / Que me exclua do estar sendo perseguida / E do tormento / De só por
ele me saber estar sendo. / Que o olhar não se perca nas tulipas / Pois formas
tão perfeitas de beleza / Vêm do fulgor das trevas. / E o meu Senhor habita o
rutilante escuro / De um suposto de heras em alto muro. / Que este amor só me
faça descontente / E farta de fadigas. E de fragilidades tantas / Eu me faça
pequena. E diminuta e tenra / Como só soem ser aranhas e formigas. / Que este
amor só me veja de partida.
II - E só me veja / No não merecimento das conquistas. / De pé. Nas
plataformas, nas escadas / Ou através de umas janelas baças: / Uma mulher no
trem: perfil desabitado de carícias. / E só me veja no não merecimento e
interdita: / Papéis, valises, tomos, sobretudos / Eu-alguém travestida de luto.
(E um olhar / de púrpura e desgosto, vendo através de mim / navios e dorsos). /
Dorsos de luz de águas mais profundas. Peixes. / Mas sobre mim, intensas,
ilhargas juvenis / Machucadas de gozo. / E que jamais perceba o rocio da chama:
/ Este molhado fulgor sobre o meu rosto.
Poemas dos Cantares do
sem nome e de partidas, extraído da obra Cantares (Globo, 2004), da poeta, dramaturga e
ficcionista Hilda Hilst (1930-2004). Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.
A ARTE DE CAMILA DO ROSÁRIO
A arte
da artista e ilustradora Camila do
Rosário que explora temáticas regionais, folclóricas e fantásticas como
forma de representação de questões e reflexões do feminino e do corpo como
discurso poético. Veja mais aqui.
&
muito
mais na Agenda aqui.