O AÇUDE DE
ALAGOINHANDUBA - Um olho d’água escorria
pelo rego que virou arroio e no tempo não mais córrego, açude imenso onde antes
terreno baldio e charco que o casario arrodeava. Quem vinha pelas ruas ou passava
à beira da linha férrea, via a alegria às vistas do povo no peitoril da janela,
as crianças chafurdando no lamaçal, uma canoa em pescaria, os avelós, a
bananeira, os calangos deslizando no lodo, passarinho, mosquitos e passos. Zé Gogo
chamava atenção de todos os habitantes: Ouçam o xexeu, ele avisa que um peixe gigante
e manso com cinco mil olhos e barbatanas de ouro, é quem sustenta o açude,
guarda o fundo e seus mistérios, o verdugo das almas. O povo se ria da leseira
dele. E o enorme e estranho dali era o Acari Rei com sua coroa na testa. No seu
ventre uma tríplice semente: a vida, a morte e a ressurreição. E dos seus olhos
faiscantes e ariscos a manhã surgia enquanto contava da origem do universo, descendente
que era do dia e da noite. Só pisava a terra quando eclipsado canto das mortes
soava sobre as águas, vinha feito gente e nu, do esconderijo a escorrer pela
lama até a cana onde se refazia e recriava o santuário, validando a terra dali.
Mais se ria e pilheriava de Zé Gogo ao insistir veemente: Quem mergulhar é saudado,
mas é devorado ao sair. Ignoravam todos da desmesurada grandeza do Acari Rei. Só
desconfiavam quando à meia noite, o açude dormia, uma lasca de pau imóvel agourava
que não se podia beber nem mexer na água. A Máe D’Água acalentava o Acari Rei
que dormia sonhos intermináveis. Os peixes deitados no fundo, as cobras estiradas
sonambulavam perdendo seus venenos, os sapos não coaxavam e o vento nem ousava
ventar, nada se mexia: tudo parado no ar. E quando ela vinha carregada de
fantasias oníricas, penteando seus longos cabelos, o dia amanhecia e os que
morreram afogados definitivamente iam pro céu, todos os dias. Ninguém temia,
nem havia motivo para tal. Foi então que Juanana, uma Branca Dias local, se
jogou nas águas cristalinas para nunca mais ser vista. Contam que ela viu-se
ameaçada por uma investigação policial para tomar-lhe a riqueza. Não se fez de
rogada, foi até à beira do açude, invocou do Caboclo D’Água que emergiu nu, ela
mergulhou e ele entrou no seu corpo, avisando o futuro. Era o presságio: uma
bela tarde, o filho mais velho de abastado comerciante morreu afogado. Dizem que
com saudade de Juanana, febre de amor. O açude ficou mal quisto: culpa dele de
dizimar filho querido, revoltas no ar. Nunca mais o desafeto. A título de
curiosidade, passaram-se luas abomináveis, algumas diabruras sinistras,
provocando atrozes sonhos malévolos naquele povinho. Os sabidos aproveitaram-se
disso. E o dia amanheceu com uma nuvem negra extraordinária ocultando o dia e a
tarde, e os déspotas aterraram para ganhar dinheiro com a especulação
imobiliária: pedaços de chão a três por quatro, baratos que só bolo de goma. Zé
Gogo endoideceu de vez: Não pode! Não pode! Pintou o sete, nada adiantou. E ninguém
dali se deu conta do vento sufocante anunciando que as plantas morriam ao seu
redor, nem do suspiro no ar contra aquele que envenenava as águas, matava
pássaros e apodrecia frutos: o passado é a fealdade do horror, precisava ser ignorado
- na memoria da posteridade subsistia o esquecimento. Como também foram
esquecidas as vidas soterradas com o desabamento onde antes as águas do açude
animavam as conversas no terreiro de fim de tarde, na boquinha da noite. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.
DITOS & DESDITOS
O barro entendia que estão abusando da sua
docilidade para a feitura de cerâmicas vulgares. A água queixou-se de recolher
todas as imundícies da Terra, ela que sempre foi sinônimo de limpeza. O boi nem
precisou falar: era a imagem da revolta contra o sacrifício da espécie - de
todas as espécies imoladas. "E a mim?", gemeu a árvore, "a mim,
que desempenho função vital no sistema da Terra, tacam-me foto ou retalham-me a
serra e machado." Os quatro concordaram que não está direito. Reclamaram
do homem, e este lhes declarou que não podia fazer nada. Vive onerado de
impostos, afligido de doenças, e mal tem tempo de se coçar. "Em vez de me
coçar", acrescentou, "assisto a seriados americanos de televisão,
enquanto não se inventa outra coisa. E me entedio. Voltem para seus lugares e
guardem o que lhes digo. "Vocês pensam que ser homem é fácil?"
Conto
extraído da obra Contos plausíveis (Record, 2006),
A PINTURA DE GUITA CHARIFKER
A arte da pintora, desenhista, gravadora e escultora Guita
Charifker (1936 - 2017), que
colaborou com a fundação do Atelier da Ribeira em Olinda e criou a Galeria do
Teatro Popular do Nordeste. Veja mais aqui.
A MÚSICA DE ARMANDO LOBO
O premiado
cantor, compositor, arranjador, instrumentista, poeta e professor Armando Lôbo desenvolve estilos e
gêneros musicais com uma diversidade ímpar, utilizando experimentalismo com
simbiose com a filosofia, a literatura e a história. Ele já lançou quatro
álbuns, entre eles Alegria dos homens (2003), Vulgar & sublime (2008),
Técnicas modernas do êxtase (2011) e tem se dedicado à música erudita
contemporânea. Para conhecer sua música clique aqui. E veja mais aqui.
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Os lugares obrigam os homens a intercâmbios
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