segunda-feira, fevereiro 25, 2019

DRUMMOND, MILTON SANTOS, GUITA CHARIFKER, ARMANDO LÔBO & O AÇUDE DE ALAGOINHANDUBA


O AÇUDE DE ALAGOINHANDUBA - Um olho d’água escorria pelo rego que virou arroio e no tempo não mais córrego, açude imenso onde antes terreno baldio e charco que o casario arrodeava. Quem vinha pelas ruas ou passava à beira da linha férrea, via a alegria às vistas do povo no peitoril da janela, as crianças chafurdando no lamaçal, uma canoa em pescaria, os avelós, a bananeira, os calangos deslizando no lodo, passarinho, mosquitos e passos. Zé Gogo chamava atenção de todos os habitantes: Ouçam o xexeu, ele avisa que um peixe gigante e manso com cinco mil olhos e barbatanas de ouro, é quem sustenta o açude, guarda o fundo e seus mistérios, o verdugo das almas. O povo se ria da leseira dele. E o enorme e estranho dali era o Acari Rei com sua coroa na testa. No seu ventre uma tríplice semente: a vida, a morte e a ressurreição. E dos seus olhos faiscantes e ariscos a manhã surgia enquanto contava da origem do universo, descendente que era do dia e da noite. Só pisava a terra quando eclipsado canto das mortes soava sobre as águas, vinha feito gente e nu, do esconderijo a escorrer pela lama até a cana onde se refazia e recriava o santuário, validando a terra dali. Mais se ria e pilheriava de Zé Gogo ao insistir veemente: Quem mergulhar é saudado, mas é devorado ao sair. Ignoravam todos da desmesurada grandeza do Acari Rei. Só desconfiavam quando à meia noite, o açude dormia, uma lasca de pau imóvel agourava que não se podia beber nem mexer na água. A Máe D’Água acalentava o Acari Rei que dormia sonhos intermináveis. Os peixes deitados no fundo, as cobras estiradas sonambulavam perdendo seus venenos, os sapos não coaxavam e o vento nem ousava ventar, nada se mexia: tudo parado no ar. E quando ela vinha carregada de fantasias oníricas, penteando seus longos cabelos, o dia amanhecia e os que morreram afogados definitivamente iam pro céu, todos os dias. Ninguém temia, nem havia motivo para tal. Foi então que Juanana, uma Branca Dias local, se jogou nas águas cristalinas para nunca mais ser vista. Contam que ela viu-se ameaçada por uma investigação policial para tomar-lhe a riqueza. Não se fez de rogada, foi até à beira do açude, invocou do Caboclo D’Água que emergiu nu, ela mergulhou e ele entrou no seu corpo, avisando o futuro. Era o presságio: uma bela tarde, o filho mais velho de abastado comerciante morreu afogado. Dizem que com saudade de Juanana, febre de amor. O açude ficou mal quisto: culpa dele de dizimar filho querido, revoltas no ar. Nunca mais o desafeto. A título de curiosidade, passaram-se luas abomináveis, algumas diabruras sinistras, provocando atrozes sonhos malévolos naquele povinho. Os sabidos aproveitaram-se disso. E o dia amanheceu com uma nuvem negra extraordinária ocultando o dia e a tarde, e os déspotas aterraram para ganhar dinheiro com a especulação imobiliária: pedaços de chão a três por quatro, baratos que só bolo de goma. Zé Gogo endoideceu de vez: Não pode! Não pode! Pintou o sete, nada adiantou. E ninguém dali se deu conta do vento sufocante anunciando que as plantas morriam ao seu redor, nem do suspiro no ar contra aquele que envenenava as águas, matava pássaros e apodrecia frutos: o passado é a fealdade do horror, precisava ser ignorado - na memoria da posteridade subsistia o esquecimento. Como também foram esquecidas as vidas soterradas com o desabamento onde antes as águas do açude animavam as conversas no terreiro de fim de tarde, na boquinha da noite. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.

DITOS & DESDITOS
O barro entendia que estão abusando da sua docilidade para a feitura de cerâmicas vulgares. A água queixou-se de recolher todas as imundícies da Terra, ela que sempre foi sinônimo de limpeza. O boi nem precisou falar: era a imagem da revolta contra o sacrifício da espécie - de todas as espécies imoladas. "E a mim?", gemeu a árvore, "a mim, que desempenho função vital no sistema da Terra, tacam-me foto ou retalham-me a serra e machado." Os quatro concordaram que não está direito. Reclamaram do homem, e este lhes declarou que não podia fazer nada. Vive onerado de impostos, afligido de doenças, e mal tem tempo de se coçar. "Em vez de me coçar", acrescentou, "assisto a seriados americanos de televisão, enquanto não se inventa outra coisa. E me entedio. Voltem para seus lugares e guardem o que lhes digo. "Vocês pensam que ser homem é fácil?"
Conto extraído da obra Contos plausíveis (Record, 2006),
do poeta, contista e cronista Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Veja mais aqui, aqui e aqui.

A PINTURA DE GUITA CHARIFKER
A arte da pintora, desenhista, gravadora e escultora Guita Charifker (1936 - 2017), que colaborou com a fundação do Atelier da Ribeira em Olinda e criou a Galeria do Teatro Popular do Nordeste. Veja mais aqui.

A MÚSICA DE ARMANDO LOBO
O premiado cantor, compositor, arranjador, instrumentista, poeta e professor Armando Lôbo desenvolve estilos e gêneros musicais com uma diversidade ímpar, utilizando experimentalismo com simbiose com a filosofia, a literatura e a história. Ele já lançou quatro álbuns, entre eles Alegria dos homens (2003), Vulgar & sublime (2008), Técnicas modernas do êxtase (2011) e tem se dedicado à música erudita contemporânea. Para conhecer sua música clique aqui. E veja mais aqui.
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Os lugares obrigam os homens a intercâmbios
A obra do geógrafo e professor Milton Santos (1926-2001) aqui e aqui.
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