O MISTÉRIO DA ENCICLOPÉDIA GRIZ - O
doutor Zé Gulu andava sumido, há meses não dava as caras por aquelas bandas. Os
bisbilhoteiros davam por conta duma pulada de cerca dele, à alcova duma senhora
distinta, a qual o marido andava fungando pelos quatro cantos do mundo, de sair
bafo de raiva pelas ventas. Quem? Ninguém sabia quem era ela, nem o enfezado da
vítima das duas de quinhentos. Só podia ser, falavam, e de outra cidade, por
certo. Outros enredadores asseguravam dele estar amancebado com alguma vitalina
reboculosa no fim do mundo, ou que pegara o corujão devido algum delito de
pouca monta, escapulindo para lugar incerto e não sabido. Outras bisbilhotices
davam noutras situações mais curiosas, como a de ter ele viajado com Pai Lula
num foguete rumo outras galáxias perdidas no universo, ou de estar acoloiado
com o Padre Bidião nalgum planeta distante, ou de ter se envultado depois de
rezar a oração da Cabra Preta, ou de ter sido apagado da vida pelo ateísmo numa
furiosa intervenção divina, e por aí vai, entre as mais disparatadas situações.
Não, na verdade não era nada disso. Quando ele deu sinal de vida, adentrando no
recinto com o peculiar aceno, riso de beiços fechados e sem mencionar uma só
palavra, recolheu-se ao canto de costume, empunhou um calhamaço de capa dura,
fazendo sinal pro garçom da bebida de sempre e folheando as páginas amareladas
do alfarrábio. Todo mundo ligou a curiosidade de plantão. O Doro logo se
aproximou: Doutor Zé Gulu andava sumido, que bíblia é essa, hômi? Não é bíblia,
é um volume de uma enorme coleção desaparecida. Ah, tá. Os olhos aboticados queriam
saber mais e ele concentrado, correndo o dedo pelas páginas, revirando-as como
se estivesse à procura de alguma informação. Desaparecida, doutor? Sim, sim,
infelizmente. Como tá desaparecida se o senhor tá com ela na mão? Ah, esse é o
primeiro volume, tem outros mais. Cuma assim, doutor? Ah, eu era ainda um
galalau duns treze anos mais ou menos, havia sido levado para uma cidade
distante do Vale do Una, e meu pai me deixou esperando por umas providências
dele, numa sala de bilhar, e lá vi chegar um senhor que havia andado sete dias
a cavalo à procura dum charadista que escrevera uma coleção enciclopédica de
mais de 32 volumes, cada um com mais de mil páginas. Fiquei intrigado com a
informação e só anos mais tarde tomei conhecimento de que o distinto que dera
essa informação, era o escritor Hermilo não sei o quê. Com o tempo esqueci
disso, mas o destino prega das suas e dez anos depois eu, sem mais nem menos,
presenciara uma palestra sobre memórias políticas de uma luta clandestina, de
um certo senhor chamado por Paulo de não das quantas, que falou da mesma exótica
e piramidal enciclopédia, misturada de dicionário e analecto, significados
pouco comuns e expressões idiomáticas do tempo do ronca. De novo? Lá estava eu
intrigado com isso. Foi a partir de então que pedi uma licença da universidade,
aluguei uma jangada e saí pelo solo caeté do Una, procurando embaixo d’água, em
grutas, montes, buracos, relheiras, valas, da nascente até a foz, conseguindo
encontrar embaixo do maior monturo, este primeiro volume que, à primeira vista,
parecia mais o Livro de Areia do Borges. De quem? Ah, deixa pra lá, vocês não
entenderam mesmo. Pois bem, de posse desse volume, caí em campo por todo canto
do planeta, atrás dos outros trinta e um volumes. Procurei o autor que já
morrera, dele só encontrando uma antologia de cantos, contos e crônicas,
organizada por uma editora local e mais nada. Indaguei por familiares, todos
sumidos, um ou outro que dava alguma notícia de parentes que sequer sabiam
dessa coleção. Fiz pacto com todo tipo de gente e assombração, até fiz um
acerto com São Lunguinho pra ver se encontrava e construiria uma igreja pra
ele, tudo para ver se conseguia o paradeiro do acervo. Aí visitei bibliotecas,
lixões e terrenos baldios que serviam de alfurjas, nada de encontrar uma mínima
pista ou rastro. Há pouco mais de seis meses, soube que o desaparecimento se
dera por força de um catimbó ineivado e muito bem feito por um desafeto do
dicionarista, que redundou numa enchente em 1975 que levou da cidade todos os
volumes da edição. O catimbozeiro descobrira depois ainda alguns exemplares,
refez a mandinga redobrada que quase acaba com a cidade todinha com uma
verdadeiro tsunami. Por conta disso, peguei a jangada e saí catando por todo
canto possível e inimaginável, logrei insucesso, só este livrão aqui, talvez o
único exemplar existente de toda a coleção de trinta e dois volumes. Hômi, seu
minino, isso é que é um livro amaldiçoado do estopô calango! Não, não é não, é
uma obra rara que merece ser estudada. Oxe, tá doido, doutor? Isso é obra do
cabrunco febrento! Cruz-credo! Xô! Isso é lá coisa que guarde? Só enjeitado por
Deus que se arrancha com uma praga dessa! Quem vê, morre! Ora, ora. E aos
poucos, um a um dos presentes foram caindo fora, às benzeduras, sai-te pra lá,
coisa ruim! Depois de completamente esvaziado, até o próprio doutor Zé Gulu fora
convidado a sair do estabelecimento, vez que do jeito que ia, findaria falindo
até o negócio. Claro que ele saiu indignado dali, jurando nunca mais voltar. E
não voltou mais, mesmo. Ainda está à cata dos livrões. © Luiz Alberto
Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a música do músico multi-instrumentista,
compositor e guitarrista Kiko Loureiro: Sound of innocence, Universo inverso & Ojos verdes;
da cantora, atriz, compositora, roteirista e humorista Clarice Falcão: Monomania, Problema meu & Oitavo andar; & muito
mais nos mais de 2 milhões de acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã.
PENSAMENTO DO DIA – [...] A
arte de hoje indica que caminhamos em direção a um mundo de relações novas,
onde o Homem deixa de ser o modelo e o centro de todas as coisas. Não é mais a
Natureza que é feita à imagem do homem, agora o Homem é que é feito à imagem da
Natureza, o Homem enriquecido por uma experiência mais profunda daquilo que o
cerca e de si próprio, que começa a formar figuras e um espaço medidos pela
extensão de suas experiências técnicas e psíquicas e orientados para um novo
ilusionismo. [...].Pensamento extraído da obra Pintura e sociedade (Martins Fontes, 1990), do historiador de arte
francês Pierre Francastel
(1900-1970).
A IMAGINAÇÃO E A REALIDADE – [...] Deve-se
definir um homem pelo conjunto das tendências que o impelem a superar a condição
humana. [...] A adesão ao invisível,
eis a poesia primeira, eis a poesia que nos permite tomar gosto por nosso
destino íntimo. Ela nos dá uma impressão de juventude ou de adolescência,
restituindo-nos incessantemente a faculdade de maravilhar-nos. A verdadeira
poesia é uma função de despertar. [...]. Trechos extraídos da obra A águia
e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria (Martins Fontes, 1997), do
filósofo, crítico literário e epistemólogo francês Gaston Bachelard
(1884-1962). Veja mais aqui.
A MULHER - [...] A
mulher está no seu direito e cumpre mesmo uma espécie de dever em dedicar-se a
parecer mágica e sobrenatural; é preciso que ela surpreenda, encante; ídolo,
deve dourar-se para ser adorada. Deve, portanto, emprestar de todas as artes os
meios de elevar-se acima da natureza, para melhor subjugar os corações e
impressionar os espíritos [...] Eu me
contentaria com pedir por ela aos verdadeiros artistas, assim como às mulheres
que receberam ao nascer uma centelha desse fogo sagrado com o qual gostariam de
se iluminar por inteiro. [...]. Trecho extraído da obra Curiosidades estéticas (Júcar, 1988), do escritor, tradutor, crítico de arte e poeta francês,
Charles Baudelaire (1821 - 1867). Veja mais aqui e aqui.
O FIM DO MUNDO – De repente,
como Vasserot, / o ambidestro sem braços, acendia / um fósforo entre o chupelão
e o segundo artelho / e Ralph, o leão, se ocupava em morder / o pescoço da
madame Sossman, enquanto o tambor / apontava, e Teeny estava para tossir / em
ritmo da valsa balançando Jocko pelo polegar, / de repente a tampa pulou: / E
ali, ali em cima, ali, ali, debruçaram-se / aquelas mil faces brancas, aqueles
olhos ofuscados / ali no escuro sem estrela, a pausa, a indecisão: / ali com as
grandes asas através os céus cancelados / ali na abrupta negrura do negro pálio
/ do nada, nada, nada, absolutamente nada. Poema do poeta e bibliotecário
estadunidense Archibald MacLeish
(1892-1982).
A ARTE DE LITA CABELLUT
A arte da pintora cigana espanhola Lita Cabellut.
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