NA CALÇADA DA TARDE - Por mais
de seis anos Cordécio aguentou de tudo no seu primeiro emprego. Das ressacas e
caga-raio do seu Marquito, às pilhérias de toda corriola de empregados, ele o
caçula dos empregados, servia de pau-mandato para o bel prazer de todos. Os
maus bofes da chefa queijuda, fazia dele peão daqueles de fazer, refazer e
tornar a ir e voltar até que ela achasse que estava bem feito, isso depois de
muita remoeta e olhe lá. O problema era adivinhar o que pra ela era de verdade
o bem feito. Evidente que ele tinha o mau costume de se esquecer das coisas,
envolver-se em fuxico, sair da rota da obrigação jogando porrinha ou contando
pinóias, dele se esquecer das obrigações e, quando dava fé, sabia que estava
perdido: iam tirar-lhe o couro de todo jeito. Ô menino alesado esse, reclamavam.
Às topadas e puxavanques, aos poucos, ele se endireitava, não antes uma farta
sacada de corretivos, mesmo assim, não se emendando de tudo deixar mal feito. Era.
Ia e vinha incansável além do expediente e altas horas da noite. Deu recado?
Sim, senhor. Qual foi? Era a hora da prova dos nove e, ao dizer o que tinha
feito, atrapalhava-se todo e, se era pra resolver, embroncava mais ainda. Não
foi isso que eu mandei você fazer! Vá lá e conserte. Era pior. Pra não perderem
a paciência, todos deixavam, por fim, de mão. Esse não tem jeito! Quando não
confundia as coisas, trocava o feito. E assim foi por mais de seis anos, semana
toda, domingos e feriados, sem folga nem férias. Aí, um dia, o pai morreu e
deixou por herança certas posses que, se nada valiam, dava pra ele se arranjar,
sabe-se lá como. Aí acertou com seu Marquito, pediu demissão, recebeu os
direitos e foi sacar o FGTS no banco. Ao ver o volume da dinheirama – pra ele
qualquer dez tões era fortuna avultada, pra quem vivia de salário mínimo,
receber uma bolada daquelas era de ficar rico de uma hora pra outra, coitado.
Foi pra fila com os olhos brilhando e contando as horas: é capaz de chegar
amanhã e nunca mais a hora de receber, ora. Um misto entre impaciente e feliz
abundava no seu semblante de não parar quieto em canto nenhum, até ser chamado
atenção pelo vigilante para se comportar nos conformes. Matuto das brenhas,
sentou-se de ficar imóvel, todo duro, de nem piscar o olho. Todos iam e vinham
e a vez dele nada de chegar. Já passava do meio dia quando foi pro caixa,
entregou os documentos, respondeu ao interrogatório, assinou meio mundo de
papel, recebeu os documentos de volta e... cadê a grana? O funcionário foi lá
pra dentro dele pensar que havia fugido com sua riqueza. Tempos depois pra mais
de uns dez minutos ou perto disso, ele voltou, sentou-se, limpou as mãos e o
guichê, abriu a gaveta e começou a contar as cédulas: uma, duas, três, seis,
sete, pegou umas moedas e repassou pro Cordécio com os olhos aboticados a ponto
de quase pular fora. É meu? Todo seu! U-hu! Avexou-se todo desajeitado, embolsou
o dinheiro e saiu assobiando. Quase esquecia os comprovantes de recepção, não
fosse levado de volta pra recepção. Tudo acertado, posso ir? Pode. E foi com
seu vexame como se andasse entre as nuvens, mergulhado nos mais díspares e
ousados pensamentos. Será que dá pra comprar um carro, mandú que seja? Sei não.
Será? Ah, melhor comprar logo um sapato chique, uma roupa nova das de grife pra
ficar nos trinques, depois comer do bom e do melhor nesses restaurantes que
nunca me deixaram entrar, e tomar umas cervejas para lavar a goela e a alma, só
de raiva e desforra. Ah, dá preu arrumar umas quengas pra cair na gandaia no
maior xambregado dos bons e depois de peidar e arrotar contra o vento, ir pra
casa ver como as coisas estão por lá. Destá! Assim foi caminhando na maior
viagem dos devaneios. De repente viu-se acossado: passa a carteira! Qualé, meu?
Vai, revira os bolsos, vai! Passa, passa! Ele reagiu guardando o que era seu,
pronto pra sair na maior carreira. Um estampido nas costas e o seu mundo
desabou, dele não ver mais nada. Maior correria. Quem passava via a cena: um
corpo na calçada da tarde. © Luiz Alberto Machado. Veja mais aqui.
Veja mais sobre:
Fecamepa, César
Vallejo, Augusto Boal, Haydn & Teresa Berganza, Rosa Bonheur, William-Adolphe Bouguereau, Keira
Knightley, Método Perigoso & Sabina Spielrein aqui.
E mais:
Quadrinhos, Angelo Agostini, Marcio Baraldi, Aventureiros do Una, Carlos Zéfiro, Velta
& Emir Ribeiro aqui.
Teatro, Berthold Brecht, Gerd Bornheim, Constatin
Stanislavski, Raymond Williams, Margot Berthold, Richard Courtney, Olga
Reverbel, Décio de Almeida Prado, Renata Pallottini, Viola Spolin, Sábato
Magaldi & Coisas de Teatro aqui.
A teoria interpessoal de Sullivan, Irina Costa, Danny Calixto, Bernadethe
Ribeiro, Daniella Alcarpe, Débora Ildêncio & Rose Garcia aqui.
A felicidade era dela & ela pegou e me deu, O homem elefante, David Lynch & Anne Bancroft, Elba
Ramalho & Luciah Lopez aqui.
Apesar de tudo que já foi feito, somos todos mínimos, Aníbal Machado,
Ryan McGinley, Gustavo Rosa & Loalwa Braz aqui.
Palhássaro voo nos caminhudos de fogáguas & terrares, Brivaldo Leão, Paulo Diniz, Spencer
Tunick, Vanice Zimerman & Gustavo
Rosa aqui.
Mesmo apelando pra sorte, a gente se atrapalha com a
obviedade, John Rawls, Isabel
Furini, Vanessa Moreno & Fi Maróstica aqui.
&
As mulheres sem face, série da artista
plástica Maria Lynch.
DESTAQUE: AS CANÇÕES DE ANTÓNIO BOTTO
[...]
Pelos que andaram no amor
Amarrados ao desejo
De conquistar a verdade
Nos movimentos de um beijo;
Pelos que arderam na chama
Da ilusão de vencer
E ficaram nas ruínas
Do seu falhado heroísmo
Tentando ainda viver!,
Pela ambição que perturba
E arrasta os homens à Guerra
De resultados fatais!,
Pelas lágrimas serenas
Dos que não podem sorrir
E resignados, suicidam
Seus humaníssimos ais!
Pelo mistério sutil,
Impoderável, divino,
De um silêncio, de uma flor!,
Pela beleza que eu amo
E o meu olhar adivinha,
Por tudo que a vida encerra
E a morte sabe guardar,
- Bendito seja o destino
Que Deus tem para nos dar!
[...]
Fragmento das Canções (1921-1932), do poeta, humorista, contistas e dramaturgo
português António Botto (1897-1959).
CRÔNICA DE AMOR POR ELA
A arte da pintora e escultora frances Rosa Bonheu (1822-1899).
DEDICATÓRIA: PATRÍCIA PORTO
Nesses
dias avulsos da tempestade / ouvi dizer que homens invadiram Creta / armados
até os dentes homens mataram pequenas espécies da ilha / Nem Jacó ou Maomé
puderam salvar os seres humildes, / apenas o frio congelava a água nascente / os
cemitérios estavam cobertos de gelo humano / nuvens carregavam vários sinistros
/ jornais anunciavam um carnaval fora de toda época / mulheres choravam sobre
as cruzes / eram muitas da minha família de muitos mortos, / de mortes matadas
e não assistidas, / assassinos comiam sorvete americano pensando ser do
exército alemão, / o golpe era sem derramamento de sangue / a poesia não fazia
mais política / a poesia também era mercadoria / só o sexo dos anjos importava
/ mas Safo estava livre em outra órbita / descansando de tanta desgraça / nesses
dias insanos da tempestade / que varreu os últimos dias, / a acidez do estômago
era mesmo tumor / flagelos de pessoas andavam insones costurando notas falsas /
enquanto um bolo subia por dentro da boca ferida / e o tempo se escasseando
vingativo / era filho pródigo daquela senhora: a violenta / a lei confirmava
tolice e engano / o corpo, o único lugar de paragem, / sem religião na mente
fazia templo o viajante, / a cabeça uma dona de cais / inquietação exigia
outras ferramentas de oficina / mas o espírito, essa coisa do diabo, / era pura
imaginação.
(Para os homens de bem dos últimos dias)
A edição de hoje é dedicada à escritora e professora Doutora
em Educação com ênfase em Estudos Literários, Patricia de Cassia Porto, editora dos blogs Leitura Lúdica:Literatura, Cultura da Infância e Educação & Poesia e Prosa.
CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Paz na
Terra: Na mitologia grega hoje era o primeiro dia do Festival de Dioniso (o
Bacanal de Baco, para os romanos). Imagem: O jovem Baco e seus seguidores (1884),
do pintor e professor francês William-Adolphe
Bouguereau (1825-1905).
Recital
Musical Tataritaritatá - Fanpage.