O SEGREDO DA PITONISA - O endereço era aquele, sim o que me havia sido indicado. Toquei a campainha e aguardei na sacada. A portinhola abriu-se, percebi o vulto e ouvi o ruído na fechadura. A porta abriu-se e logo a ordem de uma voz feminina para que eu entrasse. Estava tudo escuro, entrei mesmo assim e a pessoa escondida atrás da porta ordenou-me ao sofá. Não dava pra ver direito, segui a intuição. Esbarrei numa poltrona e acomodei-me enquanto percebia o fechamento de postigos e uma leve centelha mostrou-me quem me recepcionara. Fez um sinal de que reconhecera a minha presença e concedeu-me a graciosa inclinação de cabeça. Vi-lhe a face e traduzia a magia velada e oculta da Lua, sua pele reluzia com o frescor do jardim do Éden. Emergiu com um sorriso breve e encantador entre a cortina sustentada por dois pilares de Salomão. Sentou-se na poltrona: uma nubívaga fitando-me profundamente. Aqueles olhos misteriosos possuíam uma graça inenarrável, um ar de nefelibata, vicariante, desiderato. A calma de sua presença envolveu-me os pés à cabeça, a ponto de não conseguir balbuciar qualquer coisa, devidamente hipnotizado pela presença sempiterna. Estava diante da serendipidade em pessoa. Ali ficamos no imprevisível, interrompido apenas pelo gesto dela à oferta da bebida no carrinho encostado ao meu braço direito. Nem havia notado: Sirva-se! Preferi estar plenamente cônscio de tão intrigado com o convite e a determinação, sem saber sequer o motivo de ter que estar ali. Parecia que ela lia meus pensamentos e nada mais disse, apenas levantou-se, foi até a porta, remexeu as chaves e trancas. Então voltou-se com seus olhos acesos, pálpebras pesadas e cerradas, a se despir do véu e da túnica transparente, colocadas no cabide ao lado; retirou a touca branca e o toucado em forma de colmeia, soltou seus ondulados cabelos a escorrerem sedutores aos ombros, desfazendo-se da pala amarela atravessada ao peito, o colo reluzente a realçar seus seios nus, fartos e firmes. Dirigiu-se a mim e nem podia adivinhar seu sussurro ao meu ouvido: era ela a Suma Sacerdotisa Sofia. Com a sua confissão, retirou da cabeça e deu-me a tiara cravejada de joias. Deu-me mais: a coroa de Hathor – e me fez Hórus, e Rá. (Era como se eu estivesse em Dendera, com a senhora dos céus e das estrelas). Ali era a monja consagrada que me ofertou os seus lábios de Sibila - a pítia que me fez Apolo, como se fosse a escolhida de Par Lagerkvists, essencialmente receptiva no Oráculo de Delfos. Tomou minha mão e levou-a ao ventre: livro sagrado aberto do seu corpo e a palavra divina recolhida ao seu umbigo como um olho aberto. O seu beijo de cortesã revelou-me introvisões e, nos seus lábios, senti Astarte a nutrir meu sexo, beijou-me mais Hécate para se tornar Perséfone e eu a raptasse Ísis com todas as remembranças: “Sou tudo que era, que é, e que sempre será. Nem mortal algum jamais pôde descobrir o que jaz debaixo do meu véu”. As suas lágrimas me banharam e passaram a governar meu pênis. Nela deitei minha semente, enquanto seus olhos chamejavam como se me dissesse que era ali a Papisa Joana com todos os mistérios cristãos e o segundo trunfo secreto: estava grávida! E a centelha divina do seu ventre – o vaso da transformação - me premiou a paternidade do primogênito de Deus. Sorriu-me por fecundá-la. E me banhou com o líquido amniótico para que eu aprendesse as profundezas dos oceanos. E me fez mago para ela cartomante do meu destino, portadora da minha sina. E me fez Noel pro pão-por-deus para que eu soubesse que ela é o instrumento da eternidade. Levou-me às suas costas, a sua magia incontrolável. E depois de vencê-la, suas mãos unidas em meu sexo como a guardiã do santuário íntimo, o paradoxo da sua essência me ensinou o poder das águas, como se me sepultasse no seu ventre. Ouvi-lhe sussurrar: Sou uma rosa, nem melhor nem pior, apenas diferente. Mais disse: Você é uma virga-áurea. E me fez deus, o seu santo venerado, o seu rei adorado, o seu senhor servido, o seu dono e feitor. E nela fui real-izado. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui e aqui.
DITOS &
DESDITOS - Uma pessoa sem memória é uma criança ou um amnésico. Um país sem memória
não é uma criança nem um amnésico, mas também não é um país. Quando você começa
a fazer perguntas, a inocência desaparece. A vida sem emoções é como um motor
sem combustível. Nossa segurança deve ser ameaçada para que possamos apreciá-la.
Não é bom fazer viagens sentimentais. Você vê as diferenças em vez da mesmice. Pensamento da atriz
estadunidense Mary Astor (Lucile Vasconcellos Laghanke - 1906-1987),
Veja mais aqui.
ALGUÉM FALOU:
Cada gesto de
retribuição acarreta o risco de escalada. Não é uma possibilidade insignificante que
o moralmente certo possa resultar no moralmente errado. Quer as decisões morais
sejam avaliadas por padrões universais ou pelas tradições locais, os conflitos
morais são sempre contextuais. Pensamento da socióloga húngara Ágnes
Heller (1929-2019). Veja mais aqui, aqui e aqui.
O FUGITIVO
– [...] A
conversa dos beijos. Sutil, envolvente, destemido,
transformador. [...] Isto é o que acontece. Você guarda isso por
um tempo e, de vez em quando, procura outra coisa no armário e se lembra e
pensa, em breve. Então se torna algo que está ali, no
armário, e outras coisas ficam amontoadas na frente e em cima dele e finalmente
você nem pensa nisso. Aquilo que era seu tesouro brilhante. Você não pensa sobre
isso. Uma perda que você não conseguia imaginar antes, e agora se torna algo que
você mal consegue lembrar. Isto é o que acontece. [...] Poucas
pessoas, muito poucas, possuem um tesouro, e se você tiver, deverá mantê-lo. Você não deve se
deixar ser emboscado e ter isso tirado de você. [...] Ela não
conseguia explicar ou entender muito bem que o que ela sentia não era
totalmente ciúme, mas raiva. E não porque ela não pudesse fazer compras assim
ou se vestir assim. Era porque era assim que as meninas deveriam ser. Era assim
que os homens – as pessoas, todo mundo – pensavam que deveriam ser. Linda,
estimada, mimada, egoísta, estúpida. Isso era o que uma garota deveria ser, por
quem se apaixonar. Então ela se tornaria mãe e seria totalmente dedicada aos
seus bebês. Não é mais egoísta, mas igualmente estúpido. Para sempre [...].
Trechos extraídos da obra Runaway: Stories (Vintage,
2005), da escritora canadense Alice Munro (Alice Ann Laidlaw –
1931-2024), Prêmio Nobel da Literatura de 2013. Veja mais aqui e aqui.
VELHA
COMPANHEIRA – Velha companheira, desculpe-me, resolvi ser moderno. Sei
que há muito tempo vives comigo e não tens me faltado, mesmo assim, a partir de
hoje, resolvi arranjar um novo amor. É certo que por toda a minha vida pintaste
meu branco, me deste letras e acompanhaste os meus erros, observaste minhas
rasuras e vista que eu não vivo sem um corretivo. Quantas vezes fiquei sozinho
contigo! A noite toda, só nós dois, falando de mim (como eu fui egoísta, só
falava de mim) de meus desencantos, de minhas desilusões... Quantas vezes te
procurei! Em todos os momentos me aceitaste. Nunca me disseste um “não”. Sempre
te procurei nas horas difíceis. Quando os professores me apertavam na
faculdade, eu me aproximava de tua mecânica inteligência... Quando eu precisava
desabafar, na inquietude de um amor que me rasgava o peito, fingindo que não
era amor, eu te procurava, até mesmo (que vergonha!) quando eu precisava de um dinheirinho
a mais, eu buscava a tua amizade. Enquanto o sono não vinha, minhas mãos
pousavam sobre o teu rosto, num afago amiúde, dentro da noite só se ouviam tuas
gargalhadas, repetidamente, como uma metralhadora rasgando a madrugada!...
Minha querida, quase não chega à garganta a voz cúmplice deste momento, para
dizer-te que não te quero mais, que o mundo ficou pequeno demais para nós dois
e, a partir deste instante tu fazes parte do meu passado, que és (permita-me o
desabafo) quadrada, antiquada, fora de moda, velha demais para mim. A partir de
agora, minha velha companheira máquina de escrever Olivetti Studio 44, não te
quero mais. Comprei um computador. Crônica extraída do livro A mulher da
sombrinha e outras crônicas (Inovação, 2008), do poeta e professor Admmauro
Gommes. Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.
DOIS POEMAS
- I – Deram-me à luz para
morrer, \ Para tosquiar o verão de janeiro, \ Para procurar a caverna entre as
cavernas \ E lá seduzir as pedras no meu aniversário; \ Para conquistar o
vinagre do urubu frio \ Para guardar lagartos no peito. \ Dedico-me a morrer, \
A construir poças no cimento, \ A apagar até a última carta do meu pai grisalho
\ Para embotar sua língua e salvar minha voz com o ritmo da neve.\ Deram-me à
luz e mataram-me \ Entre o fogo dos juncos lamacentos e a inabitação da carne, \
Entre o garfo de um anjo e o litar a minha barriga como um cordeiro branco. \ Não
me deixam nada no jardim \ Só veias, \ Sangue que emana das pedras para a minha
noite, \ Sangue \ Mas sangue de mosca, \ De cacto. \ Nada tem que colorir as
bochechas de gaivotas \ Onde você acaricia há vidro \ Tudo treme, \ Tudo está
amarrado ao endireitamento escuro dos galhos. \ É hora de olhar no espelho \ E
assumir minha condição de cruz, \ A condição de espinho, \ Que essa é a última
flecha que sangrará meu leite \ Amanhã beberei do Jordão, \ E as cinzas
cruzarão minhas costas \ Só então a música foram inventados \ E toda a lama \ Vai
se dividir em dois. \ Sou um milagre iluminado por feras
elitizadas, \ sou a palavra colhida com ameixas, \ sou a presa ferida das
cobras e do rugido, \ sou a última janela desta rua, \ Sou a sede que se
extingue com orelhas de frade, \ sou lobo e sapo e escorpião, \ E me dedico a
morrer. II – Falo das cobras e não do
veneno \ Da barriga agitando o grito e não das flautas \ Da sede do outono pelo
fogo das ondas \ Das ondas que se perdem nos cabelos da morte \ Da morte que
sobe ao silêncio de quem ama \ De quem ama no segredo de um espelho \ Falo de
um dia de janeiro e não do sangue da guerra \ Dos lobos que se refugiam nas
suas línguas e não do batismo \ Da cor azul escorrendo nos ramos das oliveiras \
Das oliveiras marcando passo no beijo do água-viva \ De água-viva acordando a
linguagem das presas \ De presas no momento em que comunicam o exílio \ Falo
das mulheres atravessando a porta dos anjos e não do Éden \ Da fome cuidando
dos frutos e não da plumagem das raposas \ De cavernas dominadas por espadas
onde sou eco de dor \ Dos cantos da Bíblia onde as virgens declamam andorinhas \
De andorinhas dando à luz o céu com suas pinças de chumbo \ Falo do início do
inverno e da minha boca transformada em árvore \ Como qualquer árvore caída na
estrada \ Falo dos rostos e das pinturas \ Das máscaras, das minhas quando te
deixo no norte \ Das suas quando você abriga César em suas mãos. \ Falo da fé
na saudade da chuva, não do bosque e no terceiro dia \ falo da minha voz
ressoando no seu rastro \ De você derrubando toda a mata cerrada que te escrevi
\ falo de Deus, se ele adorei o jogo das borboletas \ Se ele se abraçasse quando
se amassem como as leoas amam as gazelas \ Se de todas as pessoas eu não
fechasse os olhos quando te beijasse.
Poemas da cantautora, escritora, grafiteira e militante feminista decolonial
aymara boliviana Julieta Paredes Carvajal.
NIETZSCHE, FILOSOFIA E PSICOLOGIA – Evidente que a motivação
para a realização do presente trabalho partiu da leitura do romance do Irving
D. Yalom, Quando Nietzsche chorou,
traduzido pelo Ivo Korytowski e que virou filme dirigido por Pinchas Perry,
como também da obra Nietzsche e Freud, de Reinhard Gasser. Merece também
registro a menção de Mosé (2005) ao fato da multiplicidade e proliferação de
estudos cada vez mais diversificados acerca da obra do filósofo alemão, bem
como o entendimento de Giacóia Junior (2001) de que o filósofo exerceu
importante influência que o caracteriza como psicólogo. Com isso, por meio de
uma revisão da literatura, caracteriza-se esta abordagem como uma pesquisa
bibliográfica embasada nas fontes disponibilizadas. A FILOSOFIA E A PSICOLOGIA
DE NIETZSCHE - A filosofia de Nietzsche, no dizer de Mosé (2005) é
extremamente erudita e com um posicionamento crítico com relação à própria
filosofia, adotando a ideia do devir por meio de três linhas de raciocínio: a
arte, o pensamento e o saber. No dizer de Cotrim (2006), o filósofo teceu uma
abordagem da genealogia da moral produto do histórico-cultural, tendo por
consequência, no dizer de Chauí (2002 ), Giacoia Junior (2001) e Souza (2014),
o desenvolvimento do Existencialismo inaugurado por Kierkegaard. Esse filósofo
começará a lecionar filosofia clássica na Universidade da Basileia, em 1869,
publicando seu primeiro livro O nascimento da tragédia no espírito da música,
em 1872. Entretanto, é com o lançamento da sua obra Humano, demasiado humano,
em 1878, que Nietzsche passará se autodenominar de psicólogo. A filosofia de
Nietzsche, em conformidade com Noffat Neto (1991), Giacóia Junior (2001) e Marques (2003), é uma filosofia dos
afetos, das paixões e desejos, que contempla o individualismo, a força, a
abundância e os instintos de vida. Para ele filosofar não era uma atitude
teórica e contemplativa, mas uma atitude prática que se enraíza na vida, um ato
de libertação de toda subjugação, de toda moral, de toda deformação e de tudo
aquilo que nos prende a religiões, grupos e ideologias. Em um determinado
período da sua vida, a filosofia nietzschiana se voltou para a psicologia.
Inclusive, Nascimento (2006) registra que esse filósofo se autodenominava
psicólogo e em muitas de suas obras encontra-se a denominação de psicologia na
sua proposta filosófica. É o que também identificam Oliveira (2014), Barbosa
(2014) e Williams (2014), ao
mencionarem que nos chamados escritos intermediários do filósofo, ocorrido no
período entre 1876 e 1882, ele adota o procedimento de análise nomeado por ele
mesmo de psicologia, se autoproclamando o primeiro psicólogo da história e
efetuando uma relação interdisciplinar entre psicologia e morfologia,
fisiologia, cultura, história, literatura, linguística, medicina e muitas
outras áreas do conhecimento. Nietzsche (1978, p. 37) entende que a psicologia
é a “[...] ciência que indaga a origem e a história dos chamados sentimentos
morais e que, ao progredir, tem de expor e resolver os emaranhados problemas
sociológicos”. Nessa ótica, ele faz adoção do procedimento que conjuga as
vertentes históricas, fisiológicas e psicológicas unidas à sua filosofia, sob a
proposta de tentativa da compreensão a partir do sentimento e das valorações
humanas. Assim, para esse autor, a fisiopsicologia é entendida como instrumento
de dissecação psicológica dos fenômenos morais. A respeito disso, assinala
Vianna (1995) e Giacoia Junior (2001), que a psicologia nietzscheana compreende
a visão além dos ângulos da realidade existencial, identificada na dimensão
pulsional dos instintos. Noutra ocasião Nietzsche (2002, p. 23) assevera que
“Toda psicologia, até o momento, tem estado presa a preconceitos e temores
morais: não ousou descer às profundezas. Compreendê-la como morfologia e teoria da evolução da vontade de poder,
tal como faço – isto é algo que ninguém tocou sequer em pensamento”. Nesse
sentido, ele faz uso da noção procedimental fisiopsicológica para asseverar que
a cultura é um sintoma fisiopsicológico das construções humanas, ao
reinterpretar o corpo no contexto da corporalidade com o significado de
instrumento complexo das múltiplas pulsões vitais e para romper com a
dualística convenção do corpo/alma. Dessa forma, o filósofo entende que o ser
humano é o resultado da luta das forças biológicas e psicológicas. Noutro
momento, Nietzsche (2012, p. 354) assinala que: “Poderíamos, com efeito,
pensar, sentir, querer, recordar-nos, poderíamos igualmente agir em todo
sentido da palavra: e a despeito disso, não seria preciso que tudo isso nos
entrasse na consciência (como se diz, em imagem)”. Com esse pensamento o
filósofo defende que a consciência é independente das funções fisiológicas e
psíquicas. Observa-se, portanto, que o autor coloca a psicologia no centro das
ciências para alcance do ser humano de forma integral, reconhecendo-se a
valorização do psíquico e fisiológico independentemente da consciência. Com
esse entendimento, Oliveira (2014, p. 1) assevera que: A psicologia de
Nietzsche está na base, portanto, de seu projeto de uma ética da amizade porque,
ao destituir a moral de seus fundamentos metafísicos, ela abre a possibilidade
de pensar as relações humanas e o próprio humano para além do princípio
gregário do ethos. Observa-se que a concepção nietzschiana, segundo
Vianna (1995, p. 32), é na direção de uma singular psicologia ‘[...] ao operar
com as pulsões artísticas da natureza manifesta um inconsciente primordial o
qual escapa às possibilidades de representação da consciência. A dimensão do
inconsciente emerge como função de um princípio ativo”. Por esse entendimento,
essa psicologia está situada no domínio da reflexão filosófica com
características definidas na valoração positiva da experiência sensível como
fonte principal do conhecimento. A primeira identificação da psicologia
nietzschiana, segundo Nascimento (2006, p. 49) está identificada como uma
psicologia da tragédia, quando: O psicólogo Nietzsche, num primeiro momento,
analisará a tragédia grega e verá um elemento comum entre ela e a psicologia do
povo helênico, que é a luta entre as forças apolíneas e dionisíacas. A relação
entre elas vai definir uma teoria da civilização e da cultura, bem como uma
teoria da arte. A morte da tragédia aparece como a metáfora viva da morte do
mundo antigo e aponta desdobramentos na cultura, como, por exemplo, a primazia
da razão sobre os instintos, nascida a partir da metafísica socrática que acaba
se impondo na cultura do Ocidente, sobretudo em sua face platônica. A segunda
identificação da psicologia nietzschiana, para Nascimento (2006, p. 51), é
quando o filósofo: [...] vai propor uma psicologia que desmascara as bases de
onde a metafísica se apoia e partirá da desmontagem da moralidade, posto que a
metafísica é vista como produtora de filósofos da moral. Ao questionar a origem
das representações e sentimentos morais afirmará que por detrás das ações
morais, o que há, são motivações humanas, demasiado humanas, denunciando a
servidão do homem aos conceitos e normas “superiores” que são tomados como
vida. Nesse sentido, a autora mencionada identifica que essa psicologia surge
no contexto de uma ciência capaz de indagar a história do mundo como
representação, ultrapassando a metafísica. Uma terceira identificação da
psicologia nietzschiana registrada por Nascimento (2006, p. 55), considera que
o filósofo: [...] vai problematizar o que vem a ser a consciência. A
psicologia, para se desprender dos preconceitos e temores morais, precisaria
interpretar e avaliar a vida enquanto potência. [...] O novo psicólogo vai
percorrer o sentido e o valor que vão se manifestar nas relações de forças e
nas formas como a vontade de potência se apresenta. Em vista disso, entende a
autora que Nietzsche será levado pelas motivações do inconsciente
problematizando a natureza do conhecer, entendendo ele que os impulsos serão os
agentes que se encontram por trás do conhecimento e que funcionam com a relação
existente com outros impulsos, agindo e resistindo uns aos outros. Tem-se,
portanto, conforme Nascimento (2006, p. 221) que o filósofo em estudo: [...]
busca como psicólogo investigar e diagnosticar a saúde de uma cultura a partir
da base, pautado na arte de interpretação dos sintomas manifestos na vida. A
proposta de uma nova psicologia, pautada em outros valores, mais próximos da
vida, em sua forma plena, ou seja, entendida como vontade de potência.
Acrescenta Barbosa (2014, p. 2) que “[...] o argumento da gênese social da consciência fornecido por Nietzsche, vem
corroborar com as explicações não dicotômicas sobre os sujeitos e sua interação
com o mundo fruto da nova visão da Psicologia Social”. E conforme Fonseca (2014, p. 1):
[...] Nietzsche re-lança na cultura moderna da civilização ocidental os
fundamentos da perspectiva ética de afirmação do vivido, de constituição dele
como fundamento do verdadeiro e dos valores, perspectiva ética de afirmação do
corpo e dos sentidos, que vai constituir um fundamento das psicologias
humanistas e da ACP [...]. Com isso, o autor mencionado observa que se encontra
em franco desenvolvimento iniciativas de recuperação dos fundamentos da
fenomenologia e do existencialismo, em particular da filosofia da vida de
Nietzsche, filosofia essa que foi capaz de fornecer o substrato básico para o
desenvolvimento da psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial
organísmica (FONSECA, 2014). Identifica-se que o filósofo em estudo influenciou
o desenvolvimento da psicanálise de Freud, mesmo sendo irredutível o
posicionamento de recusa do psicanalista quanto a este fato, muito embora
tenha, ao final de sua vida, reconhecido que Nietzsche é o maior psicólogo de todos
os tempos. Também fica identificada com base em Fonseca (2014, p. 1), a
influencia do filósofo alemão na psicologia do norte-americano Carl Ransom
Rogers, com a observância de que “[...] Bem ao gosto de Nietzsche, Rogers
entendia que o existencial não se conforma ao empistemológico, e
epistemofílico, pressuposto científico da busca de verdades. Não se conforma às
esferas do conhecer, e do conhecimento, e de suas vontades”. É nesse sentido
que anota Speranza (2014, p. 1) que “[...] Tanto Nietzsche como a psicoterapia
de base fenomenológica têm em comum a existência afirmativa da vida”. Por
consequência, entende a autora em comento que a psicologia diante da
espiritualidade humana, numa perspectiva fenomenológico-existencial, utiliza-se
como referencial a filosofia de Nietzsche e a filosofia do diálogo do filósofo,
escritor e pedagogo austríaco Martin Buber que influenciará tanto a Gestalt
como a psicologia fenomenológico-existencial. Acrescenta Fonseca (2014b, p. 1)
que: Um aspecto que parece um dos mais interessantes para a psicologia e
psicoterapia fenomenológico-existencial é que, ao mesmo tempo, o próprio
empirismo aporético de Brentano aplicado à consciência como método
fenomenológico existencial especificamente experimental, parece intimamente aparentado
ao método experimental perspectivativo de Nietzsche. De modo que estas duas
vertentes fundamentais da concepção do experimental num sentido fenomenológico
existencial compartilhariam raízes bastante próximas. [...]. Com essa
associação, verifica-se o quanto o filósofo alemão influenciou as mais diversas
correntes psicológicas, sendo, portanto, meritório de registro e destaque de
sua importância para a psicologia contemporânea. CONTRIBUIÇÕES NIETZSCHEANA
PARA A PSICOLOGIA – Torna-se evidente, em primeiro lugar, a contribuição de
Nietzsche para a Psicanálise freudeana, conforme Gasser (1987), mesmo tendo
Freud relutado a vida inteira para, só perto da morte, admitir a importância de
Nietzsche para a Psicologia. Ter sido o filósofo aquele a assumir em suas obras
a condição de psicólogo, tratando sobre paixões, desejos, afetos, pulsões da
forma interdisciplinar a psicologia, morfologia, fisiologia, cultura, história,
literatura, linguística e medicina, entre outras áreas do conhecimento,
definindo-se por uma Fisiopsicologia que compreende uma visão além da realidade
existencial dentro de uma dimensão pulsional. Constata-se, ainda, que Nietzsche
coloca a Psicologia no centro da ciência. Além do mais, identifica-se a nítida
influência exercida pelo filósofo alemão no pensamento de Carl Rogers, Martin
Buber, na Gestalt e na Psicologia Fenomelógico-Existencial. Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.








