Imagem: desenho de J. Lanzelotti
Era uma vez um homem que morava sozinho,
sem mulher, parentes ou amigos. Certo dia foi caçar e matou muita caça, entre a
qual uma fêmea guariba. Chegando à casa, cuidou logo dos animais e moqueou a
macaca, deixando-a no moquém para o dia seguinte. Depois foi dormir.
De madrugada levantou-se para ir caçar de
novo. Mas, antes de partir, quis comer a guariba. Viu-a no moquém, toda pelada,
de mãos retorcidas e dentes à mostra. O seu aspecto tirou-lhe o apetite, a tal
ponto que o caçador falou consigo mesmo:
- Não sei porque, mas estou com fome e
não me sinto capaz de comer esta fêmea macaco.
Deixou-a sobre o moquém e lá foi.
A tarde trouxe caça morte, tratou dela e
comeu. Depois disse:
- Amanhã, de manhã, esta guariba não me
escapa...
E foi dormir.
Mas, de manhã, pronto para ir à caça,
olhou a fêmea pelada no moquém e perdeu o apetite. Depois disse:
- Essa macaca tem mocó! Toda vez que olho
para ela, perco a fome. E é tão gorda e bonita!
E com um último olhar ao bicho que
parecia gente, ajuntou:
- Tomara que ela vire mulher para mim!
Deixou-a sobre o moquém e partiu.
Quando, já muito tarde, voltou do mato,
encontrou a comida pronta: carne cozida, caldo, beiju. Ficou muito admirado
mas, cansado como estava, comeu logo e foi dormir para, no dia seguinte, muito
cedo, ir pescar.
Logo que amanheceu, levantou-se e tocou
para a pescaria. Ao regressar, encontrou a comida toda pronta, de novo. Ele
ficou pasmo e perguntou a si mesmo:
- Quem será que todo o dia prepara a
minha boia?
Ressabiado, tratou de averiguar. Procurou
por toda a casa e quando foi ver a rede, encontrou nela uma mulher deitada.
- Oh lá! Quem és tu? -, perguntou ele
assombrado.
- Então, não me conhece mais? Eu sou
aquela guariba que deixaste sobre o moquém... não me querias para tua mulher?
O homem olhou para o moquém: estava
vazio. Era mesmo a macaca que se tinha transformado em mulher. E achou-a
bonita. Foi dormir com ela.
Alguns dias depois, convidou-a a fazer
uma visita aos seus parentes. Ali, apresentou a mulher e voltaram para seu
rancho.
Não demorou e a mulher convidou o maridoa
fazer uma visa à casa dos parentes dela. O homem aceitou. Foram andando pelo
mato até encontrar a maloca dos guaribas, na copa de altíssimo angelim.
- Vamos subir? -, disse ela. – Já está
escurecendo.
Mas o homem não sabia trepar tão depressa
como a mulher ela teve de ajuda-lo até que, por fim, chegaram no alto da
árvore. Ambos foram muito bem recebidos e logo depois trataram de dormir.
Quando amanheceu, os guaribas começaram a
cantar e a gritar. Saíram da casa deles e a mulher acompanhou-os, mas não
regressaram. Ficou o homem sozinho na casa dos guaribas, sem poder descer. E
assim passou muitos dias trepados no angelim.
Até que certa manhã passou por lá curumu,
o urubu-rei, e perguntou:
- Que está fazendo sozinho aí? Até parece
que estás preso!
Ele queixou-se:
- Os guaribas me trouxeram até aqui e
depois me deixaram preso...
- Por que não desces? -, perguntou o
curumu.
- Quero descer mas não posso; veja como é
enorme esta árvore!
- Então espera um pouco que já vais
descer.
Curumu fez um esforço e espirrou. Do seu
bico saiu uma gosma que desceu até o chão e virou cipó.
- Agora podes descer... -, disse o
urubu-rei.
Mas o homem teve medo, porque o catarro
do urubu-rei não passava de um cipó muito fino. O homem queixou-se e o curumu
respondeu:
- Tens razão. Espera um pouco que eu vou
chamar outro que poderá ajudar melhor...
Dizendo isso, curumu voou para longe, foi
chamar piano, o gavião real. Quando este chegou quis saber de tudo. O homem
repetiu as palavras que tinha dito ao curumu.
- Então, queres descer daí? -, perguntou
piano.
- Quero! -, confirmou o homem. – Mas
tenho medo, porque não sei descer desta árvore tão alta.
- Então espera um pouco. Vou fazer um
cipó grosso para te agarrares.
Piano tomou um fôlego e deu um grande
espirro. A gosma de seu nariz espichou-se até o chão e virou cipó grosso. O
homem, então, agarrou-se a ele e foi descendo devagar até chegar ao chão.
Antes de ir-se embora, o gavião real
perguntou:
- Como é, homem? Não te queres vingar?
- Está claro que desejo vingar-me.
- Então, vou ensinar-te como se mata
guariba. Vai procurar o cipó que chamam de flecha de piano. Arranca a raiz e
raspa-a. Depois junta um pouco de água e passa tudo na peneira. Em seguida, põe
essa água sobre o fogo e ferve-a até ficar grossa. Ao mesmo tempo, tira talas,
aponta-as bem apontadas e passa nelas o veneno. Feito isso, põe as talas ao sol
para secar e no dia seguinte podes ir à caça. Mas, antes de partires para o
mato, tu invocas e dizes:
- Piano! Vamos embora! Vamos matar
guariba!
O homem voltou para casa e fez tudo
quanto o gavião real lhe havia ensinado. Uma tarde, ouviu os guaribas roncarem.
Colocou urari na flecha e, chegando à beira do roçado, gritou:
- Piano! Vamos embora! Vamos matar
guariba!
Não demorou e o gavião real veio. Voou na
frente dele, espantando os guaribas, fazendo-os gritar para o homem os
descobrisse com maior facilidade. Foi o que se deu. Chegando mais perto, o caçador
matou o bando inteiro. Apenas escapou um guaribinha, um filho que depois
cresceu e aumentou, para queles bichos não se acabarem de todo.
Foi assim que piano, o gavião real,
ensinou os nossos antigos a fabricarem camani, que mais tarde os brancos chamaram
de curare.
REFERÊNCIA
GALDUS, Herbet. Estórias e lendas dos
índios. São Paulo: Edigraf, s/d.
FRIKEI, G. P. Jamáni. Revista do Museu
Paulista, vol. VII, 267-269, São Paulo, 1953. Veja mais aqui.
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