Ao som dos álbuns 02022020 (2020), Time 2 Stop Worrying (2019), Turnitup (2016) e Sometimes a Girl Needs Some Sugar Too (2011), da compositora e instrumentista dinamarquesa Ida Nielsen.
TRÍPTICO DQP:
- Eterno menino da beira do rio... - Voltei à infância para rever o mundo de outro jeito. Hoje posso lembrar
o acidentado e limítrofe arruado que me permitia singrar a margem de cá sem que
de lá houvesse a possibilidade de atravessar a ponte, tão longe quanto
proibitiva, devaneios com o relinchado na hora certa do Jegue de Paul. Não era assim quando estava lá pelo brejo das
sereias multicoloridas, uma mais linda que a outra. Elas saíam d’água e se
esgueiravam pelas touceiras da margem oposta, escondidas no meio da plantação. De
lá provocavam: Vamos timbungar? Não, que não sou peixe! Mesmo que eu tivesse
uma jangada na ideia, do canto não saía. E brincavam bulindo comigo passando de
um lado a outro. Uma delas transformou-se numa grande ave e entoou um canto
melodioso. Chegou perto de mim: era a sirena Partênope, uma ninfa encantadora e
serva de Perséfone a me dizer Robert Bringhurst: Por todos
os meios quebrar as regras! E insistia: Você precisa! Queria me levar
para a ilha de Antemoessa na promessa de me iniciar nas Argonáuticas de Apollonios e eu não tinha como nem onde me amarrar, sequer saberia como apelar para virtuose
da lira feito Orfeu, inútil tapar os
ouvidos: seu mavioso canto ocupava toda minha cabeça. Não distinguia direito harpias
ou erínias, sabia das sereias: as almas dos defuntos egípcios. Diante do meu
mutismo mandou-me então para as Ilhas Afortunadas, com o recado da
Jennifer Egan: Todos que perdemos, vamos encontrar. Ou eles vão nos encontrar. Aquilo
arrepiou a alma se bem que meus mortos não eram tantos. Agora muitos pra meu
desconsolo. De repente tudo se pareceu uma visagem e vi-me diante do espelho
das águas do brejo, outra face
para dirimir qualquer mal entendido, um sentimento extraviado, memória perdida,
apenas um eterno menino da beira do rio.
Multiplenredo...
– Imagem arte de Nancy Bossert - O que procuro se o tríptico fraseado de Gauguin na indagação suprema: quem sou,
de onde venho e pra onde voo, não sei. Há mais do que por trás da lindeza dos
canaviais floridos e das ribanceiras exaltadas, sob o asfalto das cidades, embaixo
das pontes, além dos ermos distantes, no matagal dos pântanos, nas várzeas dos
rios, na profundidade dos mares, nas fronteiras das galáxias ou no infinito da
imensidão cósmica. Não há como saber, apenas Roger Vailland para me dizer: Não há amor, há apenas provas de amor. O amor é também um prazer... Não é possível e o silêncio me faz olhos bem abertos. No meio das
interrogações, Letitia Elizabeth London:
Força, poder e majestade pertencem
ao homem; eles fazem a glória nativa de sua vida... Mas a doçura é o atributo
de uma mulher – por isso ela reinou e por isso reinará... Era como se tivesse
minha mãe ali do lado no acalanto de uma história que era a minha e, ao final,
me dizia Alexandre Zambra: Ninguém fala pelos outros. Que, mesmo que
queiramos contar histórias alheias, terminamos sempre contando nossa própria
história... O que procuro no fiapo da ideia,
contar uma hestória, começassim, passassado: entrou pela perna de pinto, saiu
pela perna de pato.
E era ela
outra hestória... - Imagem arte
de Nancy Bossert. - A cidade
amanheceu com a notícia: ela dali, sim, a arrebatadora daquelas arrasa
quarteirão, a inesgotável sedutora viu-se vicária na noite anterior e estava
mergulhada num tanque oval com sua dor. Aquele amor era, na verdade,
a Besta de Gévaudan. Quem? Sabe-se lá! Foi preciso a intervenção do Padre Bidião à confissão dela: Ele
iludiu-me, padre, arrastou-me para as bandas do matagal de Merçoire, lá cravou
os dentes formidáveis com o intento de me estuprar. Vi-lhe enlouquecido arrancar
as vestes e expor peitoril largo com pele avermelhada e odor insuportável. Partiu
pra cima de mim feito um tarado, mordeu-me o pescoço e apoderou-se da minha
fragilidade. Ia me decapitar! Ora, se. Juntei todas as minhas forças. Aqui, ó! Lutei
inutilmente, mas consegui agarrar-lhe a cauda imensa e arrastar uma estaca afiada
que apanhei no chão, pronto, desferi golpe certeiro nas suas costas. Ele fugiu
urrando, ainda estou convalescendo. Mas, minha filha, não pode ser: este bicho
foi extinto há muitos séculos! Estou doente, padre, sinto necessidade de comer
carne crua, foi um bife cru pela primeira vez, agora quero mais: Tem que ser viva,
não gosto de cadáveres! Não aguentando tentei cortar os pulsos. Aqui estou
desamparada. E lá escorada, mostrando o lado B da sua vida, o sangue jorrava em
profusão, dizia-se endemoninhada e precisava ser exorcizada. Ele então a recolheu
afetuosamente e mandou todos saíssem do recinto – enxotados foram todos os pregadores,
enrolões e enredeiros que faziam plantão pra moribunda: Xô! E lá se demorou aos
cuidados com a sua paciente, horas na empreitada. A Besta Fubana surgiu em seu auxilio e acomodou-se no oitão da casa
espantando curiosos e línguas soltas. Tempo enorme de expectativas. Tarde quase
anoitecendo o padre saiu às carreiras, amontou na besta e partiu. Não demorou
muito, devidamente curada às gargalhadas ela saudou a todos como se fosse Elvira Navarro: Você só precisa de um pouco de ansiedade
para que o normal pareça ameaçador. E saiu toda reboladeira rua acima até confundir-se
ao lusco-fusco. Eu, hem? Até mais ver.
[...] Democratizando mais seus critérios de avaliação do saber
a escola deveria preocupar-se com preencher certas lacunas de experiência das
crianças, ajudando-as a superar obstáculos em seu processo de conhecer. É obvio,
por exemplo, que crianças a quem falta a convivência com palavras escritas ou
que com elas têm pequena relação, nas ruas e em casa, crianças cujos pais não leem
livros nem jornais, tenham mais dificuldades em passar da linguagem oral à
escrita. Isto não significa, porém, que a carência de tantas coisas com que
vivem crie nelas uma “natureza” diferente, que determine sua incompetência
absoluta. [...].
Trecho extraído da obra A educação na cidade
(Cortez, 2006), do educador e filósofo Paulo Freire (1921-1997). Veja mais Educação & Livroterapia aqui
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