domingo, outubro 16, 2022

PAULO FREIRE, JENNIFER EGAN, ELVIRA NAVARRO, ZAMBRA, BRINGHURST, LETITIA LONDON & VAILLAND

 

Ao som dos álbuns 02022020 (2020), Time 2 Stop Worrying (2019), Turnitup (2016) e Sometimes a Girl Needs Some Sugar Too (2011), da compositora e instrumentista dinamarquesa Ida Nielsen.

 

TRÍPTICO DQP: - Eterno menino da beira do rio... - Voltei à infância para rever o mundo de outro jeito. Hoje posso lembrar o acidentado e limítrofe arruado que me permitia singrar a margem de cá sem que de lá houvesse a possibilidade de atravessar a ponte, tão longe quanto proibitiva, devaneios com o relinchado na hora certa do Jegue de Paul. Não era assim quando estava lá pelo brejo das sereias multicoloridas, uma mais linda que a outra. Elas saíam d’água e se esgueiravam pelas touceiras da margem oposta, escondidas no meio da plantação. De lá provocavam: Vamos timbungar? Não, que não sou peixe! Mesmo que eu tivesse uma jangada na ideia, do canto não saía. E brincavam bulindo comigo passando de um lado a outro. Uma delas transformou-se numa grande ave e entoou um canto melodioso. Chegou perto de mim: era a sirena Partênope, uma ninfa encantadora e serva de Perséfone a me dizer Robert Bringhurst: Por todos os meios quebrar as regras! E insistia: Você precisa! Queria me levar para a ilha de Antemoessa na promessa de me iniciar nas Argonáuticas de Apollonios e eu não tinha como nem onde me amarrar, sequer saberia como apelar para virtuose da lira feito Orfeu, inútil tapar os ouvidos: seu mavioso canto ocupava toda minha cabeça. Não distinguia direito harpias ou erínias, sabia das sereias: as almas dos defuntos egípcios. Diante do meu mutismo mandou-me então para as Ilhas Afortunadas, com o recado da Jennifer Egan: Todos que perdemos, vamos encontrar. Ou eles vão nos encontrar. Aquilo arrepiou a alma se bem que meus mortos não eram tantos. Agora muitos pra meu desconsolo. De repente tudo se pareceu uma visagem e vi-me diante do espelho das águas do brejo, outra face para dirimir qualquer mal entendido, um sentimento extraviado, memória perdida, apenas um eterno menino da beira do rio.

 


Multiplenredo... – Imagem arte de Nancy Bossert - O que procuro se o tríptico fraseado de Gauguin na indagação suprema: quem sou, de onde venho e pra onde voo, não sei. Há mais do que por trás da lindeza dos canaviais floridos e das ribanceiras exaltadas, sob o asfalto das cidades, embaixo das pontes, além dos ermos distantes, no matagal dos pântanos, nas várzeas dos rios, na profundidade dos mares, nas fronteiras das galáxias ou no infinito da imensidão cósmica. Não há como saber, apenas Roger Vailland para me dizer: Não há amor, há apenas provas de amor. O amor é também um prazer... Não é possível e o silêncio me faz olhos bem abertos. No meio das interrogações, Letitia Elizabeth London: Força, poder e majestade pertencem ao homem; eles fazem a glória nativa de sua vida... Mas a doçura é o atributo de uma mulher – por isso ela reinou e por isso reinará... Era como se tivesse minha mãe ali do lado no acalanto de uma história que era a minha e, ao final, me dizia Alexandre Zambra: Ninguém fala pelos outros. Que, mesmo que queiramos contar histórias alheias, terminamos sempre contando nossa própria história... O que procuro no fiapo da ideia, contar uma hestória, começassim, passassado: entrou pela perna de pinto, saiu pela perna de pato.

 


E era ela outra hestória... - Imagem arte de Nancy Bossert. - A cidade amanheceu com a notícia: ela dali, sim, a arrebatadora daquelas arrasa quarteirão, a inesgotável sedutora viu-se vicária na noite anterior e estava mergulhada num tanque oval com sua dor. Aquele amor era, na verdade, a Besta de Gévaudan. Quem? Sabe-se lá! Foi preciso a intervenção do Padre Bidião à confissão dela: Ele iludiu-me, padre, arrastou-me para as bandas do matagal de Merçoire, lá cravou os dentes formidáveis com o intento de me estuprar. Vi-lhe enlouquecido arrancar as vestes e expor peitoril largo com pele avermelhada e odor insuportável. Partiu pra cima de mim feito um tarado, mordeu-me o pescoço e apoderou-se da minha fragilidade. Ia me decapitar! Ora, se. Juntei todas as minhas forças. Aqui, ó! Lutei inutilmente, mas consegui agarrar-lhe a cauda imensa e arrastar uma estaca afiada que apanhei no chão, pronto, desferi golpe certeiro nas suas costas. Ele fugiu urrando, ainda estou convalescendo. Mas, minha filha, não pode ser: este bicho foi extinto há muitos séculos! Estou doente, padre, sinto necessidade de comer carne crua, foi um bife cru pela primeira vez, agora quero mais: Tem que ser viva, não gosto de cadáveres! Não aguentando tentei cortar os pulsos. Aqui estou desamparada. E lá escorada, mostrando o lado B da sua vida, o sangue jorrava em profusão, dizia-se endemoninhada e precisava ser exorcizada. Ele então a recolheu afetuosamente e mandou todos saíssem do recinto – enxotados foram todos os pregadores, enrolões e enredeiros que faziam plantão pra moribunda: Xô! E lá se demorou aos cuidados com a sua paciente, horas na empreitada. A Besta Fubana surgiu em seu auxilio e acomodou-se no oitão da casa espantando curiosos e línguas soltas. Tempo enorme de expectativas. Tarde quase anoitecendo o padre saiu às carreiras, amontou na besta e partiu. Não demorou muito, devidamente curada às gargalhadas ela saudou a todos como se fosse Elvira Navarro: Você só precisa de um pouco de ansiedade para que o normal pareça ameaçador. E saiu toda reboladeira rua acima até confundir-se ao lusco-fusco. Eu, hem? Até mais ver.


 

[...] Democratizando mais seus critérios de avaliação do saber a escola deveria preocupar-se com preencher certas lacunas de experiência das crianças, ajudando-as a superar obstáculos em seu processo de conhecer. É obvio, por exemplo, que crianças a quem falta a convivência com palavras escritas ou que com elas têm pequena relação, nas ruas e em casa, crianças cujos pais não leem livros nem jornais, tenham mais dificuldades em passar da linguagem oral à escrita. Isto não significa, porém, que a carência de tantas coisas com que vivem crie nelas uma “natureza” diferente, que determine sua incompetência absoluta. [...].

Trecho extraído da obra A educação na cidade (Cortez, 2006), do educador e filósofo Paulo Freire (1921-1997). Veja mais Educação & Livroterapia aqui e aqui.