DIÁRIO DO GENOCÍDIO NO FECAMEPA – UMA: SABE
AQUELA... DAS IDAS E VINDAS ENTRE ÉREBROS & BÁRATROS - Olhos na madrugada, cismava sem urdidura. Deu-se de
mesmo, tão esquisito: mulheres passavam e uma delas me puxou alegando que as
seguissem para me proteger do Soroche de Supai. Para onde iam? Às regiões mais
montanhosas e inacessíveis de Pachamama, onde os espíritos das huacas reinavam e que eu fosse com elas senão
me perderia pelos confins tenebrosos e infernais de Ucui Pacha, lá onde se
sofre de frio e fome e só tem pedra por alimento. Não entendia nada nem me
restou alternativa, porque não era eu uma alma penada nem fantasma, encolhi o
medo e, de mãos dadas, seguimos pelo caminho das trevas. De repente, senti sua
mão escapulir, sozinho e tudo escureceu por bom tempo, nada se via no silêncio
de tudo. Com o clarão repentino do luar, eram outras mulheres tagarelando ao
meu lado e no meio das torres de pedra de Punta de las Mujeres. Não me passou
pela cabeça serem elas as nove senhoras de Ah Puch e que preparavam a descida
da enforcada deusa Ixtab, sob os auspícios do panteão Bolontiku. A deusa levitava
e se aproximou de mim, ofertou um pedaço da casca da Ceiba pentadra que contém em seus grãos rebentos de kapok, ordenando para que eu fosse já ao
Mitnal. Não entendi, era pênalti,
sabia de antemão ao vê-la retirar a corda que envolvia seu pescoço, obrigando-me
que a pusesse em honra dos suicidas. Era preciso inventar uma saída, o sangue
fugia, quase tive um ataque tipo epiléptico para ver se me safava. Nesse
instante a sensual deusa Awilix interrompeu o que seria o meu sacrifício,
procedendo para elas de forma autoritária, e, em seguida, tomou das minhas mãos
para segui-la pela noite da Lua, a me contar do que ocorrera comigo antes, com
as incas e, agora, com as maias. Contou-me mais enquanto se disfarçava em
muitas outras sedutoras auroras e crepúsculos para me espalhar por aí, e me
deixou a par do horror ao vazio e do transporte dos tempos para o futuro por
deuses que se sucediam noites e dias presos por uma cilha frontal, porque os
dias eram seres vivos, cada um com nome e número patrocinados por uma entre as divindades.
Altas horas da viagem, ela me amparava na nudez e fartura dos seus seios, a
recitar Julio Córtazar: Andávamos sem nos procurar, mas sabendo
sempre que andávamos para nos encontrar. Vem dormir comigo: não faremos amor,
ele nos fará. Tudo ouvia até a
sonolência e eu dentro dela que se derretia com a febre do meu corpo no seu. Amparado
fui embalado por acalanto irreconhecível do seu corpo cheio de músicas.
DUAS MORTES DEPOIS (Imagem do pintor surrealista José Rooselvet)– Da primeira morte a vertigem na escada, o telhado que ruiu, o sangue na lavanderia
sumida, quase nada mais existe, apenas uma rua estreita para pedestres, com a
orla repleta de prédios como se monstros imóveis. Daquela vez tudo desapareceu
na brancura onírica de música das esferas, talvez entre Nazcar e Machu Picchu,
imagens com desenhos da pedra de Roswell noitedias pelas distâncias da
escuridão cósmica. Da segunda morte,
nem a lembrança da encruzilhada, não mais o poste na calçada de uma manhã
nublada, à espera de uma condução inexistente. Ainda ouço a frenagem e a colisão,
tudo pode acontecer do nada, só as graves vozes do coral. Ouvi um verso de Elisa Lucinda: Nesse dia, Deus deu uma saidinha e o vice era
fraco. E se morro uma vez e
desfaleço outras tantas a cada dia, sou grato à vida, responsável por minha
sina. Não lamento o que deixei de fazer, fiz o máximo que pude e renasci
menino.
TRÊS PASSOS PARA SAIR DO VULCÃO - (Imagem do pintor surrealista José Rooselvet) - Desci pela milésima vez, como se fosse Pessoa escrevendo cartas comerciais ou O’Neill concebendo frases
publicitárias, ou como Rimbaud para
tomar uma cerveja e dar uma baforadas na face do desafeto. Em todas elas exaltei
os trinta e quatro cantos de Dante
no meio dos nove círculos concêntricos do sofrimento e os nove caminhos e os
três vales e as quatro esferas, enfim, o caos impiedosamente ordenado.
Reconheci os três aspectos aristotélicos:
a malícia, a incontinência e a bestialidade. Atravessei todas as galerias como
se fossem ruas fumegantes e entre elas as mínimas e vistosas entrelinhas do
insignificante de qualquer olhar, aprendendo o que pudesse de fecundo e necessário
para o aprendizado do útil e do fútil, o momento apropriado para o que quer que
fosse. Fiz a travessia do berço ao túmulo, a reconhecer dos invertebrados e protozoários,
o que seria de mim depois de tudo. Sempre preferi cinzas, nunca uma sepultura, mesmo
sabendo que a viagem indesejável seria qualquer jeito. Lá ouvi o Diálogo dos mortos (Athena, 1996), no
qual Luciano de Samósata me contara irreverente:
A vida de cada um
será passada a limpo... tu vês os ricos, os sátrapas, os tiranos, agora tão
rebaixados e insignificantes, reconhecidos apenas pela lamentação; isto é, que
são uns poltrões e ignóbeis, enquanto ficam recordando das coisas lá de cima. Assim como
a raposa para as uvas, o beijo para a amante, a traição para o humano, cada
qual cumpre o seu destino. Quem não compungido se o acontecido é pouco e tornará
a acontecer de outra forma e mesmo até à revelia. Todos se veem enredados em
suas malbaratadas e entediadas vidas, o que me faz entender talvez alguma
possibilidade de ser aquilo que eu gostaria de ser se não fosse o que sou. Até
mais ver.
VIOLINOS NO COQUE
[...] Precisa-se. Precisa-se da voz cristalina de
uma avezinha, dessas aves sem ninho, como diria o poeta, para escutar o que
dizem. E ouvir a humanidade toda que está ali. A beleza do campo, a inocência brotante,
a suavidade dos anhos que só Botticcelli percebeu. [...] A beleza comove. E vi ali uma flor de lótus
colhida. Que se impõe e faz admirar, apesar do meio circundante.
Trecho
extraído da obra Violinos no Coque
(FacForm, 2010), do médico, escritor e memorialista Waldênio Porto, contando a história de uma comunidade do Recife e a
formação da Orquestra Cidadã Meninos do Coque, projeto desenvolvido pelo
maestro Cussy de Almeida e reunindo
130 garotos e garotas. Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.