sexta-feira, setembro 18, 2020

CÓRTAZAR, LUCIANO DE SAMÓSATA, ELISA LUCINDA, JOSÉ ROOSELVET & VIOLINOS NO COQUE

 

DIÁRIO DO GENOCÍDIO NO FECAMEPA – UMA: SABE AQUELA... DAS IDAS E VINDAS ENTRE ÉREBROS & BÁRATROS - Olhos na madrugada, cismava sem urdidura. Deu-se de mesmo, tão esquisito: mulheres passavam e uma delas me puxou alegando que as seguissem para me proteger do Soroche de Supai. Para onde iam? Às regiões mais montanhosas e inacessíveis de Pachamama, onde os espíritos das huacas reinavam e que eu fosse com elas senão me perderia pelos confins tenebrosos e infernais de Ucui Pacha, lá onde se sofre de frio e fome e só tem pedra por alimento. Não entendia nada nem me restou alternativa, porque não era eu uma alma penada nem fantasma, encolhi o medo e, de mãos dadas, seguimos pelo caminho das trevas. De repente, senti sua mão escapulir, sozinho e tudo escureceu por bom tempo, nada se via no silêncio de tudo. Com o clarão repentino do luar, eram outras mulheres tagarelando ao meu lado e no meio das torres de pedra de Punta de las Mujeres. Não me passou pela cabeça serem elas as nove senhoras de Ah Puch e que preparavam a descida da enforcada deusa Ixtab, sob os auspícios do panteão Bolontiku. A deusa levitava e se aproximou de mim, ofertou um pedaço da casca da Ceiba pentadra que contém em seus grãos rebentos de kapok, ordenando para que eu fosse já ao Mitnal. Não entendi, era pênalti, sabia de antemão ao vê-la retirar a corda que envolvia seu pescoço, obrigando-me que a pusesse em honra dos suicidas. Era preciso inventar uma saída, o sangue fugia, quase tive um ataque tipo epiléptico para ver se me safava. Nesse instante a sensual deusa Awilix interrompeu o que seria o meu sacrifício, procedendo para elas de forma autoritária, e, em seguida, tomou das minhas mãos para segui-la pela noite da Lua, a me contar do que ocorrera comigo antes, com as incas e, agora, com as maias. Contou-me mais enquanto se disfarçava em muitas outras sedutoras auroras e crepúsculos para me espalhar por aí, e me deixou a par do horror ao vazio e do transporte dos tempos para o futuro por deuses que se sucediam noites e dias presos por uma cilha frontal, porque os dias eram seres vivos, cada um com nome e número patrocinados por uma entre as divindades. Altas horas da viagem, ela me amparava na nudez e fartura dos seus seios, a recitar Julio Córtazar: Andávamos sem nos procurar, mas sabendo sempre que andávamos para nos encontrar. Vem dormir comigo: não faremos amor, ele nos fará. Tudo ouvia até a sonolência e eu dentro dela que se derretia com a febre do meu corpo no seu. Amparado fui embalado por acalanto irreconhecível do seu corpo cheio de músicas.

 


DUAS MORTES DEPOIS (Imagem do pintor surrealista José Rooselvet)– Da primeira morte a vertigem na escada, o telhado que ruiu, o sangue na lavanderia sumida, quase nada mais existe, apenas uma rua estreita para pedestres, com a orla repleta de prédios como se monstros imóveis. Daquela vez tudo desapareceu na brancura onírica de música das esferas, talvez entre Nazcar e Machu Picchu, imagens com desenhos da pedra de Roswell noitedias pelas distâncias da escuridão cósmica. Da segunda morte, nem a lembrança da encruzilhada, não mais o poste na calçada de uma manhã nublada, à espera de uma condução inexistente. Ainda ouço a frenagem e a colisão, tudo pode acontecer do nada, só as graves vozes do coral. Ouvi um verso de Elisa Lucinda: Nesse dia, Deus deu uma saidinha e o vice era fraco. E se morro uma vez e desfaleço outras tantas a cada dia, sou grato à vida, responsável por minha sina. Não lamento o que deixei de fazer, fiz o máximo que pude e renasci menino.

 


TRÊS PASSOS PARA SAIR DO VULCÃO - (Imagem do pintor surrealista José Rooselvet) - Desci pela milésima vez, como se fosse Pessoa escrevendo cartas comerciais ou O’Neill concebendo frases publicitárias, ou como Rimbaud para tomar uma cerveja e dar uma baforadas na face do desafeto. Em todas elas exaltei os trinta e quatro cantos de Dante no meio dos nove círculos concêntricos do sofrimento e os nove caminhos e os três vales e as quatro esferas, enfim, o caos impiedosamente ordenado. Reconheci os três aspectos aristotélicos: a malícia, a incontinência e a bestialidade. Atravessei todas as galerias como se fossem ruas fumegantes e entre elas as mínimas e vistosas entrelinhas do insignificante de qualquer olhar, aprendendo o que pudesse de fecundo e necessário para o aprendizado do útil e do fútil, o momento apropriado para o que quer que fosse. Fiz a travessia do berço ao túmulo, a reconhecer dos invertebrados e protozoários, o que seria de mim depois de tudo. Sempre preferi cinzas, nunca uma sepultura, mesmo sabendo que a viagem indesejável seria qualquer jeito. Lá ouvi o Diálogo dos mortos (Athena, 1996), no qual Luciano de Samósata me contara irreverente: A vida de cada um será passada a limpo... tu vês os ricos, os sátrapas, os tiranos, agora tão rebaixados e insignificantes, reconhecidos apenas pela lamentação; isto é, que são uns poltrões e ignóbeis, enquanto ficam recordando das coisas lá de cima. Assim como a raposa para as uvas, o beijo para a amante, a traição para o humano, cada qual cumpre o seu destino. Quem não compungido se o acontecido é pouco e tornará a acontecer de outra forma e mesmo até à revelia. Todos se veem enredados em suas malbaratadas e entediadas vidas, o que me faz entender talvez alguma possibilidade de ser aquilo que eu gostaria de ser se não fosse o que sou. Até mais ver.

 

VIOLINOS NO COQUE

[...] Precisa-se. Precisa-se da voz cristalina de uma avezinha, dessas aves sem ninho, como diria o poeta, para escutar o que dizem. E ouvir a humanidade toda que está ali. A beleza do campo, a inocência brotante, a suavidade dos anhos que só Botticcelli percebeu. [...] A beleza comove. E vi ali uma flor de lótus colhida. Que se impõe e faz admirar, apesar do meio circundante.

Trecho extraído da obra Violinos no Coque (FacForm, 2010), do médico, escritor e memorialista Waldênio Porto, contando a história de uma comunidade do Recife e a formação da Orquestra Cidadã Meninos do Coque, projeto desenvolvido pelo maestro Cussy de Almeida e reunindo 130 garotos e garotas. Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.



 


PATRICIA CHURCHLAND, VÉRONIQUE OVALDÉ, WIDAD BENMOUSSA & PERIFERIAS INDÍGENAS DE GIVA SILVA

  Imagem: Foto AcervoLAM . Ao som do show Transmutando pássaros (2020), da flautista Tayhná Oliveira .   Lua de Maceió ... - Não era ...