quinta-feira, julho 23, 2015

OSMAN LINS, LEVERTOV, JURANDIR FREIRE, ALMODOVAR, BORGHETTI, CÉDRIC, LASZLO & REINO DOS SONHOS!


VAMOS APRUMAR A CONVERSA? REINO DOS SONHOS - Mais que a noite, tivera a chance de sonhar: era ela como se fora Hythloday a me levar no passeio pelos prazeres de Amaurotum na opacidade onírica. E fez-se festa em plena orgia sem reconhecer-lhe a face de camaleoa nua e linda com as mãos repousando sobre meu ventre. Um não sei quê de redemoinho me levava ao suplício de Tântalo: tanto mais eu me aproximava dela, mais ela se afastava até a próxima esquina a me dizer no olhar: a cada um o que é seu. Ninguém pode fugir nem ao amor, nem à morte; ela se desfazia a cada instante, invisível por vezes, pedras na vidraça e somam-se quereres e privações que eram de ontens e nem são mais que amanhãs. Aí que está o busílis: parecia-me saindo do Livro dos Sonhos de Borges, na catarse do Agá de Hermilo: uma tábula rasa para se tornar o além-do-homem de Nietzsche. Virei de catâmbrias, parecia reviver a Gréia: não reconhecia a sua face ao sabê-la rente linda camaleoa nua no meu presente sonial, almejando o alvo no futuro de uma ilusão, os conflitos entre o desejo e a realidade. Ipso facto, errei da sorte, às escapadelas a dar azo ao desiderato, mesmo que eu saiba que talvez seja um logro jamais realizável e que se tornará possível porque tudo que é pode não ser agora, ser depois. O mentir exige memória e eu busquei sobrepujar o insensato mesmo que me visse entre as nuvens de um céu sem estrelas a me despencar entre os arranha-céus no abismo do dia não amanhecido. Até aí morreu o Neves por me acostumar às quedas livres pelas abissais do inopinado e com o desencanto da desilusão, singro novos mares que me fazem da camaleoa uma sereia desejada. Sem dizer a água vai e eu vou corrente abaixo levado à toa e nu da cintura pra baixo até me deparar atônito com o incêndio das adversidades na navalha do tempo. O fogo purifica tudo e eu renasço Fênix pra ser Sísifo noitedia. Recolho-me na tebaida onde o insólito me espreita para desvelar o que não consigo ver. Tintim por tintim sou mergulhado num cabalístico movimento agitado em que não sou e sendo ao mesmo tempo tudo e inominado e sem identidade. Emerjo de mim e tudo sou pra nada feito diante do karma que me diz de mim e o que fui no que serei. Indo à canossa do fundo do poço, reduzo-me ao pó sem cobrar desmerecido. Nem todos podemos tudo e eu me falho de mim, subtraído e reiterado. Volto à vaca-fria como se o insensato me dissesse algo que não pude inferir no meio de toda incoerência. E deixo o boi voar, asas à imaginação para que o desespero tome tento e eu perceba além do visível. Não sei o que diga nas minhas errâncias a me segurar no que possa alcançar na minha inútil persistência. Trinta e seis razões eu teria para abdicar da dor, abjurar da fé, renunciar de tudo. A talho de foice eu persevero e na resiliência sou pó ao vento, do ar às águas. Entendo do riscado: vou da semente à raiz, raiz ao fruto, fruto à semente. Aqui já não está quem falou: cônscio do universo, pronto pra seguir adiante. Vender-me por prato de lentilhas como sempre fiz e fui, não mais: não há valia para apreço, vale nada, só a mão espalmada à ternura do afeto. Imperativo categórico: minhas sórdidas vestes me diz quem sou, nada mais tenho e terei de mim só o que tenho e sou. Dou de ombros: sou o que menos sei de mim ao saber nada do que sou. Até lá muitas águas passarão debaixo da ponte: o que fui, nada mais serei. O rei está nu e não há nada que lhe desmascare o embuste. Ramos de oliveiras nas mãos, sigo sempre adiante. Enforquei o último desejo nas tripas da última vontade. Invisto no amanhã: nada sei o que será, apenas vou. Não me dou por achado: a dúvida é a certeza que prospera ao fogo da existência. O fogo, reitere-se, purifica tudo: renasço a cada instante que morro. De noite todos os gatos são pardos e eu fecho os olhos para aguçar a compreensão. Orvalho não enche poço, mas de pingo em pingo mato a sede. Sua alma, sua palma: eu sou as minhas mãos. Sou manhã que se faz tarde pruma noite madrugar noutro amanhecer. Ouço o galo cantar me chamando pra viver o mundo dos efeitos. Nada será como antes, já não preciso ver além do que aprendo ao compreender que tudo gira no que sou tudo de todos. Horagá: sou o que vai na volta do que já foi para novamente ser o que será. Ora, direis, ouvir estrelas! Chega! A camaleoa linda e nua não está ao meu lado, está presente na satisfação do desejo de viver. Só, o meu navio a sorte inventa e a vida é o reino dos sonhos. (Reino dos Sonhos, Luiz Alberto Machado). Veja mais aqui.



[...] O anonimato pelo qual tanto lutamos destituiu a privacidade de seu estatuto privilegiado de foyer ascese. A intimidade familiar, conjugal ou amorosa deixou de ser o lugar onde elaborávamos nossas experiências morais pelo exercício do bem-dizer que para ser verdadeiro ou indicativo da boa vida requeria o testemunho e a aquiescência do outro, tendo como juiz os ideais comuns. Na contramão dessa ascese, equipamos nossas casas e vidas de modo a afastar o próximo e tornar sua palavra absolutamente irrelevante. Continuamos, entretanto, fetichizando a falta do que só tinha sentido num mundo que desapareceu. Mantemos uma imagem de felicidade oca e que é puro teatro de sombras do que já foi. Queremos conciliar um ideal de felicidade base ado na parceria e um código moral que fez de nossos corpos, sexos e amores referentes de mercadorias com a etiqueta “pessoal”. O problema dos lugares-comuns é que, muitas vezes, são verdadeiros. Ninguém que se sente ou se acredita muito infeliz pode ter tempo ou disponibilidade emocional para pensar nos outros. A degradação do público e do privado não nos deixa outra saída exceto a de pensarmos obsessiva e inutilmente em nosso mal-estar. Não se trata de nostalgia passadista ou de querer reabilitar o “lar doce lar” que, aliás, nunca foi tão doce. A sugestão é a de que pensemos em novas modalidades de interação nas quais as singularidades subjetivas possam apoiar-se na presença dos outros. Penso que o rumo produtivo, se quisermos recuperar o papel da palavra iniciadora na democracia, consiste em trilhar outras sendas. Um novo caminho capaz de empolgar a todos na permanente construção dos ideais democráticos, em especial as novas gerações, deve reinventar de alto a baixo o quadro institucional em que aprendemos a subjetivar-nos. Penso, concretamente, na problematização de teias interativas ou experimentos de convivialidade que tendem a ser suprimidos ou recalcados de nossa memória histórica. Penso que devemos levar a sério questões como vínculos de amizade, hospitalidade, cortesia, honra, lealdade e fidelidade, assim como a questão do reencantamento ou paixão pelo mundo. Não para reeditar essas formas de vida moribundas, o que seria farsesco, mas para repensá-las, renová-las e, quem sabe, voltar a reintroduzir na vida pública e pessoal o entusiasmo pela criação de um mundo comum que deixou de existir. Imaginar uma vida pessoal sem a guarita da família consumista ou os dilemas da intimidade burguesa; imaginar um mundo de afetos liberado do despotismo sentimental do amor-paixão romântico; imaginar uma sociedade em que o sexo nem seja marca do pecado nem mercadoria no sórdido comércio de serviços para maiorias e minorias; imaginar redes de convivência que retomem o que de melhor existiu nas experiências da philia, da amicitia ou comunitas antigas; imaginar que o progresso e o maravilhoso das descobertas científico-tecnológicas podem existir sem o jogo da cupidez e a exploração das vida dos outros; imaginar, por fim, que os ideais de comunidades anarquistas, de sociedades socialistas ou dos experimentos da contracultura dos anos 60-70 não são imagens de mundo que a história ridicularizou ou desmascarou como diversão de desocupados ou sonhos totalitários de burocratas corruptos, pois bem, imaginar tudo isso pode dar trabalho. Pode mesmo exigir uma dedicação ao outro e a nós que desaprendemos a ter, tal a dependência que criamos das técnicas e dos artefatos do mercado como meios de solucionar até as mais delicadas “intermitências do coração”. Mas iniciar é propor o inusitado. Pela palavra, podemos criar o “não ainda” e antecipá-lo de diversas maneiras. Por exemplo, podemos imaginar um mundo onde nossos filhos visitem os atuais shopping-centers, não como centro de compras mas como museus do desperdício e da insensatez, e terminada a visita possam dizer o que pensamos tantas vezes quando saímos de palácios aristocráticos: como aquela gente pôde pensar que precisava de tudo aquilo para viver e ser feliz? [...]. Veja mais aqui.

AVALOVARA – O livro Avalovara (1973 - Companhia das Letras, 1995), do escritor e dramaturgo Osman Lins (1924-1978), é uma obra de arquitetura narrativa, construído a partir de um palíndromo latino (sator arepo tenet opera rotas), dentro de uma espiral a partir dos quais vão sendo desenvolvidos todos os capítulos do livro. A sua estrutura e o seu enredo está baseado no Quadrado Sator, no qual as narrativas se intercalam, explorando os formatos do quadrado e da espiral. Da obra destaco os trechos: [...] Surge onde, realmente – vindos, como todos e tudo, do princípio das curvas -,esses dois personagens ainda larvares e contudo já trazendo, não se sabe se na voz, seno silêncio ou nos rostos apenas adivinhados, o sinal do que são e do que lhes incumbe? A porta junto à qual se contemplam ou avaliam, face a face, rodeados de sons, cheiro de pó e obscuridade, é limiar de quê? Ingressam ambos na sala e talvez, ao mesmo tempo, no espaço mais amplo, conquanto igualmente limitado, do texto que os desvenda e cria. [...] As cortinas ocultam duas janelas amplas, com persianas de madeira e vidraças. Permanece fechada a janela ante a qual ficam as descoradas poltronas de damasco, a mesinha de centro e o sofá com forro de veludo ouro. A outra, aberta, ilumina a longa mesa posta: sobre pequenas toalhas ovais – vermelhas, azuis e verdes -, entre a louça e os talheres, dois castiçais, uma garrafa de vinho e o vaso com dálias amarelas. Palavra e corpo, o rosto – fogo e seda – junto ao meu: [...] Afago seus cabelos, fartos, fortes, duas cabeleiras confundidas. Que liga esta hora à visão da Cidade descendo sobre o vale com um pássaro? Uma explosão longínqua faz tilintarem os pingentes(faltam alguns) nos lustres de cristal. Também ouço o mecanismo, lento, cor de mel e aço, do alegre vestido, alça-se um perfume lancinante. Os motivos geométricos, os animais e as ramagens dos dois imensos tapetes diluem-se num rosa meio encardido. Retirado o pêndulo, poderiam esconder-se uma criança e seu cão na caixa de madeirado relógio. [...]. Veja mais aqui, aqui e aqui.

escritora e tradutora estadunidense de origem britânica e ligada à Geração Beat, Denise Levertov (1923-1997), destaco três poemas, o primeiro deles Ao leitor: Enquanto você lê, um urso branco tranquilamente / faz xixi, tingindo de açafrão / a neve / e enquanto você lê, os deuses / repousam entre as trepadeiras: olhos de obsidiana / observam a reprodução das folhas, / e enquanto você lê / o mar está virando as suas páginas negras / virando / as suas páginas negras. Também o poema Viver: O fogo na folha e na grama / tão verde parece cada verão o último verão. / O vento soprando, as folhas / vibrando sob o sol, / cada dia o último dia. / Uma salamandra vermelha / tão fria e tão / fácil de pegar, em devaneio / move suas delicadas patas / e longo rabo. Deixo / minha mão aberta para que ela se vá. / Cada minuto o último minuto. Por fim, o poema Um começo de dia:

Osman Lins (1924-1978), conta a história de uma jovem filha do delegado do município que se apaixona por um artista de circo que percorre o interior nordestino, aplicando golpes nos habitantes das cidades, e se envolvendo com uma infinidade de mulheres, inclusive casadas. Procurado por um famoso matador da região, que jurou acabar com aquele que se aproveitou de sua mulher, a filha do delegado passa a ajuda-lo a escapar da cadeia, induzindo o seu pai a permitir regalias ao preso, mesmo ela sendo noiva de um advogado. O relacionamento entre ela o noivo agrada ao pai por representar segurança e estabelecimento para a jovem filha. Contudo, ela se apaixona pelo artista de circo preso, assumindo riscos e subvertendo valores vigentes em seu meio. A história vai se desenrolando com imprevistos acontecimentos, debulhando problemas dos valores da sociedade patriarcal. O texto foi transformado em especial na Rede Globo e, depois, adaptada para o cinema em 2003, como uma comedia romântica dirigida por Guel Arraes. Veja mais aqui e aqui.


IMAGEM DO DIA
Foto: Seated nude (1931), do pintor, fotógrafo e escultor húngaro Laszlo Moholy-Nagy (1895-1946)

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