VAMOS
APRUMAR A CONVERSA? REINO DOS SONHOS
- Mais que a noite, tivera a chance
de sonhar: era ela como se fora Hythloday a me levar no passeio pelos prazeres
de Amaurotum na opacidade onírica. E
fez-se festa em plena orgia sem reconhecer-lhe a face de camaleoa nua e linda
com as mãos repousando sobre meu ventre. Um
não sei quê de redemoinho me levava ao suplício de Tântalo: tanto mais eu me
aproximava dela, mais ela se afastava até a próxima esquina a me dizer no
olhar: a cada um o que é seu. Ninguém
pode fugir nem ao amor, nem à morte; ela se desfazia a cada instante, invisível
por vezes, pedras na vidraça e somam-se quereres e privações que eram de ontens
e nem são mais que amanhãs. Aí que
está o busílis: parecia-me saindo do Livro dos Sonhos de Borges, na catarse do
Agá de Hermilo: uma tábula rasa para se tornar o além-do-homem de Nietzsche. Virei
de catâmbrias, parecia reviver a Gréia: não reconhecia a sua face ao sabê-la rente
linda camaleoa nua no meu presente sonial, almejando o alvo no futuro de uma
ilusão, os conflitos entre o desejo e a realidade. Ipso facto, errei da sorte, às escapadelas a dar azo ao desiderato,
mesmo que eu saiba que talvez seja um logro jamais realizável e que se tornará
possível porque tudo que é pode não ser agora, ser depois. O mentir exige memória e eu busquei sobrepujar o insensato mesmo
que me visse entre as nuvens de um céu sem estrelas a me despencar entre os arranha-céus
no abismo do dia não amanhecido. Até
aí morreu o Neves por me acostumar às quedas livres pelas abissais do inopinado
e com o desencanto da desilusão, singro novos mares que me fazem da camaleoa
uma sereia desejada. Sem dizer a
água vai e eu vou corrente abaixo levado à toa e nu da cintura pra baixo até me
deparar atônito com o incêndio das adversidades na navalha do tempo. O fogo purifica tudo e eu renasço Fênix
pra ser Sísifo noitedia. Recolho-me
na tebaida onde o insólito me espreita para desvelar o que não consigo ver. Tintim por tintim sou mergulhado num
cabalístico movimento agitado em que não sou e sendo ao mesmo tempo tudo e inominado
e sem identidade. Emerjo de mim e
tudo sou pra nada feito diante do karma que me diz de mim e o que fui no que
serei. Indo à canossa do fundo do
poço, reduzo-me ao pó sem cobrar desmerecido. Nem todos podemos tudo e eu me falho de mim, subtraído e reiterado.
Volto à vaca-fria como se o
insensato me dissesse algo que não pude inferir no meio de toda incoerência. E deixo o boi voar, asas à imaginação
para que o desespero tome tento e eu perceba além do visível. Não sei o que diga nas minhas errâncias
a me segurar no que possa alcançar na minha inútil persistência. Trinta e seis razões eu teria para
abdicar da dor, abjurar da fé, renunciar de tudo. A talho de foice eu persevero e na resiliência sou pó ao vento, do
ar às águas. Entendo do riscado: vou
da semente à raiz, raiz ao fruto, fruto à semente. Aqui já não está quem falou: cônscio do universo, pronto pra seguir
adiante. Vender-me por prato de
lentilhas como sempre fiz e fui, não mais: não há valia para apreço, vale nada,
só a mão espalmada à ternura do afeto. Imperativo
categórico: minhas sórdidas vestes me diz quem sou, nada mais tenho e terei de
mim só o que tenho e sou. Dou de
ombros: sou o que menos sei de mim ao saber nada do que sou. Até lá muitas águas passarão debaixo da
ponte: o que fui, nada mais serei. O
rei está nu e não há nada que lhe desmascare o embuste. Ramos de oliveiras nas mãos, sigo sempre adiante. Enforquei o último desejo nas tripas da
última vontade. Invisto no amanhã:
nada sei o que será, apenas vou. Não
me dou por achado: a dúvida é a certeza que prospera ao fogo da existência. O fogo, reitere-se, purifica tudo: renasço
a cada instante que morro. De noite
todos os gatos são pardos e eu fecho os olhos para aguçar a compreensão. Orvalho não enche poço, mas de pingo em
pingo mato a sede. Sua alma, sua
palma: eu sou as minhas mãos. Sou manhã
que se faz tarde pruma noite madrugar noutro amanhecer. Ouço o galo cantar me chamando pra viver o mundo dos efeitos. Nada será como antes, já não preciso
ver além do que aprendo ao compreender que tudo gira no que sou tudo de todos. Horagá: sou o que vai na volta do que
já foi para novamente ser o que será. Ora,
direis, ouvir estrelas! Chega! A camaleoa linda e nua não está ao meu lado, está
presente na satisfação do desejo de viver. Só,
o meu navio a sorte inventa e a vida é o reino dos sonhos. (Reino dos Sonhos, Luiz Alberto Machado).
Veja mais aqui.
Imagem: Kundstdruck, do artista plástico Cédric Cazal.
Curtindo: Andanças – Live in Brussels (2011), do
músico, antropólogo, artista plástico e ensaísta brasileiro Renato Borghetti. Veja mais aqui.
A
PALAVRA NA DEMOCRACIA E NA PSICANÁLISE – No artigo Não mais, ainda não: a palavra na democracia
e na psicanálise (Revista USP, 1999), do psicanalista e professor Jurandir Freire Costa, traz a seguinte
reflexão: [...] O anonimato pelo qual tanto lutamos destituiu
a privacidade de seu estatuto privilegiado de foyer ascese. A intimidade familiar,
conjugal ou amorosa deixou de ser o lugar onde elaborávamos nossas experiências
morais pelo exercício do bem-dizer que para ser verdadeiro ou indicativo da boa
vida requeria o testemunho e a aquiescência do outro, tendo como juiz os ideais
comuns. Na contramão dessa ascese, equipamos nossas casas e vidas de modo a afastar
o próximo e tornar sua palavra absolutamente irrelevante. Continuamos,
entretanto, fetichizando a falta do que só tinha sentido num mundo que
desapareceu. Mantemos uma imagem de felicidade oca e que é puro teatro de
sombras do que já foi. Queremos conciliar um ideal de felicidade base ado na
parceria e um código moral que fez de nossos corpos, sexos e amores referentes de
mercadorias com a etiqueta “pessoal”. O problema dos lugares-comuns é que, muitas
vezes, são verdadeiros. Ninguém que se sente ou se acredita muito infeliz pode
ter tempo ou disponibilidade emocional para pensar nos outros. A degradação do
público e do privado não nos deixa outra saída exceto a de pensarmos obsessiva
e inutilmente em nosso mal-estar. Não se trata de nostalgia passadista ou de
querer reabilitar o “lar doce lar” que, aliás, nunca foi tão doce. A sugestão é
a de que pensemos em novas modalidades de interação nas quais as singularidades
subjetivas possam apoiar-se na presença dos outros. Penso que o rumo produtivo,
se quisermos recuperar o papel da palavra iniciadora na democracia, consiste em
trilhar outras sendas. Um novo caminho capaz de empolgar a todos na permanente
construção dos ideais democráticos, em especial as novas gerações, deve
reinventar de alto a baixo o quadro institucional em que aprendemos a subjetivar-nos.
Penso, concretamente, na problematização de teias interativas ou experimentos
de convivialidade que tendem a ser suprimidos ou recalcados de nossa memória
histórica. Penso que devemos levar a sério questões como vínculos de amizade,
hospitalidade, cortesia, honra, lealdade e fidelidade, assim como a questão do
reencantamento ou paixão pelo mundo. Não para reeditar essas formas de vida
moribundas, o que seria farsesco, mas para repensá-las, renová-las e, quem
sabe, voltar a reintroduzir na vida pública e pessoal o entusiasmo pela criação
de um mundo comum que deixou de existir. Imaginar uma vida pessoal sem a
guarita da família consumista ou os dilemas da intimidade burguesa; imaginar um
mundo de afetos liberado do despotismo sentimental do amor-paixão romântico;
imaginar uma sociedade em que o sexo nem seja marca do pecado nem mercadoria no
sórdido comércio de serviços para maiorias e minorias; imaginar redes de
convivência que retomem o que de melhor existiu nas experiências da philia, da
amicitia ou comunitas antigas; imaginar que o progresso e o maravilhoso das
descobertas científico-tecnológicas podem existir sem o jogo da cupidez e a
exploração das vida dos outros; imaginar, por fim, que os ideais de comunidades
anarquistas, de sociedades socialistas ou dos experimentos da contracultura dos
anos 60-70 não são imagens de mundo que a história ridicularizou ou desmascarou
como diversão de desocupados ou sonhos totalitários de burocratas corruptos,
pois bem, imaginar tudo isso pode dar trabalho. Pode mesmo exigir uma dedicação
ao outro e a nós que desaprendemos a ter, tal a dependência que criamos das
técnicas e dos artefatos do mercado como meios de solucionar até as mais delicadas
“intermitências do coração”. Mas iniciar é propor o inusitado. Pela palavra, podemos
criar o “não ainda” e antecipá-lo de diversas maneiras. Por exemplo, podemos
imaginar um mundo onde nossos filhos visitem os atuais shopping-centers, não como
centro de compras mas como museus do desperdício e da insensatez, e terminada a
visita possam dizer o que pensamos tantas vezes quando saímos de palácios aristocráticos:
como aquela gente pôde pensar que precisava de tudo aquilo para viver e ser
feliz? [...]. Veja mais aqui.
AVALOVARA – O livro Avalovara
(1973 - Companhia das Letras, 1995), do escritor e dramaturgo Osman Lins (1924-1978), é uma obra de arquitetura narrativa,
construído a partir de um palíndromo latino (sator arepo tenet opera rotas),
dentro de uma espiral a partir dos quais vão sendo desenvolvidos todos os
capítulos do livro. A sua estrutura e o seu enredo está baseado no Quadrado
Sator, no qual as narrativas se intercalam, explorando os formatos do quadrado
e da espiral. Da obra destaco os trechos: [...] Surge onde, realmente –
vindos, como todos e tudo, do princípio das curvas -,esses dois personagens
ainda larvares e contudo já trazendo, não se sabe se na voz, seno silêncio ou
nos rostos apenas adivinhados, o sinal do que são e do que lhes incumbe? A
porta junto à qual se contemplam ou avaliam, face a face, rodeados de sons,
cheiro de pó e obscuridade, é limiar de quê? Ingressam ambos na sala e talvez,
ao mesmo tempo, no espaço mais amplo, conquanto igualmente limitado, do texto
que os desvenda e cria. [...] As cortinas ocultam duas
janelas amplas, com persianas de madeira e vidraças. Permanece fechada a janela
ante a qual ficam as descoradas poltronas de damasco, a mesinha de centro e o
sofá com forro de veludo ouro. A outra, aberta, ilumina a longa mesa posta:
sobre pequenas toalhas ovais – vermelhas, azuis e verdes -, entre a louça e os
talheres, dois castiçais, uma garrafa de vinho e o vaso com dálias amarelas. Palavra
e corpo, o rosto – fogo e seda – junto ao meu: [...] Afago seus cabelos,
fartos, fortes, duas cabeleiras confundidas. Que liga esta hora à visão da
Cidade descendo sobre o vale com um pássaro? Uma explosão longínqua faz
tilintarem os pingentes(faltam alguns) nos lustres de cristal. Também ouço o
mecanismo, lento, cor de mel e aço, do alegre vestido, alça-se um perfume
lancinante. Os motivos geométricos, os animais e as ramagens dos dois imensos
tapetes diluem-se num rosa meio encardido. Retirado o pêndulo, poderiam
esconder-se uma criança e seu cão na caixa de madeirado relógio. [...]. Veja mais aqui, aqui e aqui.
AO LEITOR, VIVER UM COMEÇO DE DIA – No livro que reúne
poemas selecionados da escritora
e tradutora estadunidense de origem britânica e ligada à Geração Beat, Denise Levertov (1923-1997), destaco
três poemas, o primeiro deles Ao leitor: Enquanto você lê, um urso
branco tranquilamente / faz xixi, tingindo de açafrão / a neve / e enquanto
você lê, os deuses / repousam entre as trepadeiras: olhos de obsidiana / observam
a reprodução das folhas, / e enquanto você lê / o mar está virando as suas
páginas negras / virando / as suas páginas negras. Também o poema Viver: O fogo na folha e na grama / tão verde parece cada verão o último verão. / O vento soprando, as folhas / vibrando sob o sol,
/ cada dia o último dia. / Uma salamandra vermelha / tão fria e tão / fácil de
pegar, em devaneio / move suas delicadas patas / e longo rabo. Deixo / minha
mão aberta para que ela se vá. / Cada minuto o último minuto. Por fim, o
poema Um começo de dia: Um esquilo degolado,
algum sangue / fluindo do desigual / pescoço esmagado / jaz na grama úmida de
chuva / perto da porta do galpão. / Lá embaixo, à beira do caminho / as primeiras
íris / se abriram com a alvorada: / etéreas, e sua cor de mal / quase um cinza
transparente, / e suas veias escuras / um azul contundido. Veja mais aqui, aqui e
aqui.
LISBELA E O PRISIONEIRO – A peça teatral Lisbela e o prisioneiro (1964), do
escritor e dramaturgo Osman Lins (1924-1978), conta a história de uma
jovem filha do delegado do município que se apaixona por um artista de circo
que percorre o interior nordestino, aplicando golpes nos habitantes das
cidades, e se envolvendo com uma infinidade de mulheres, inclusive casadas. Procurado
por um famoso matador da região, que jurou acabar com aquele que se aproveitou
de sua mulher, a filha do delegado passa a ajuda-lo a escapar da cadeia,
induzindo o seu pai a permitir regalias ao preso, mesmo ela sendo noiva de um advogado.
O relacionamento entre ela o noivo agrada ao pai por representar segurança e
estabelecimento para a jovem filha. Contudo, ela se apaixona pelo artista de
circo preso, assumindo riscos e subvertendo valores vigentes em seu meio. A
história vai se desenrolando com imprevistos acontecimentos, debulhando
problemas dos valores da sociedade patriarcal. O texto foi transformado em
especial na Rede Globo e, depois, adaptada para o cinema em 2003, como uma
comedia romântica dirigida por Guel Arraes. Veja mais aqui e aqui.
LA MALA EDUCACIÓN – O drama La mala educación (Má educação, 2004),
do cineasta espanhol Pedro Almodóvar,
é um filme que transita entre o melodrama e o filme noir, contando a história
de abuso sexual de um jovem por um padre católico, com elementos
autobiográficos e que se passa entre os anos 1960/80, quando dois meninos
conhecem o amor, o cinema e o medo num colégio religioso, os quais se envolvem
com um padre que é professor de literatura, surgindo um triangulo envolvente.
Anos depois eles se reencontram numa historia labiríntica perpassada por várias
histórias com vários personagens que mudam de nome e interpretam outros
personagens dentro do mesmo filme, mostrando diversos momentos das suas vidas. Este é mais um dos filmes do extraordinário cineasta espanhol que nos leva a uma série de questionamentos pela forma inovadora com que aborda temas os mais importantes para nossa reflexão. Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.
IMAGEM DO DIA
Foto: Seated
nude (1931), do pintor, fotógrafo e escultor húngaro Laszlo Moholy-Nagy (1895-1946)
Veja mais sobre:
Do raiar do dia aos naufrágios
crepusculares,
Sempre poesia de Helena Kolody, História dos hebreus
de Flavio Josefo, Metafísica do real & virtual de Michael R. Heim, Yanomâmi de Milton Nascimento &
Fernando Brant, a fotografia de André Brito, a pintura de George Grosz & Fernando Rosa, a arte de Rollandry Silvério & a poesia
de Carla
Torrini aqui.
E mais:
Alter ego, Arquétipo
de criança de Carl Jung, Eminência parda de Aldous Huxley, A flauta
roubada de Cassiano Ricardo, a literatura de George Bernand Shaw, Laranja
Mecânica, o cinema de Stanley Kubrik, a música
de Gilson Peranzzetta & Mauro Senise, a pintura de Jean Baptiste
Camille Corot & Demócrito Borges, Brincarte do Nitolino & Rachel Lucena
Colégio Fator aqui.
Terceira idade &
envelhecimento, Aldous Huxley, a música de Armando José Fernandes, a
pintura de Camille Corot, a poesia de Ivaldo Gomes & o blog de
Mônica e Monique Justino aqui.
Por onde é que anda o Doro, hem?, Teatro
& ciência de Bertolt Brecht, Ziraldo, Revolução
de Florestan Fernandes, Canto primeiro de Basílio da Gama, a música infantil de Adriana Calcanhoto, Olga
Benário Prestes, Rainha Margot & Isabelle Adjani, Clube Literário de
Andrelândia, a pintura de Cristoforo
Munari, a arte de Rollandry Silvério & Brincarte
do Nitolino aqui.
&
CRÔNICA DE AMOR POR ELA
Imagem: Eiry
Reading (2011), do
artista plástico Mike Todd.
CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Paz na
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Recital
Musical Tataritaritatá - Fanpage.