A arte do artista e designer italiano Bruno Munari (1907-1998), que trabalhou sobre o tema do jogo, a infância e a
criatividade em diversos campos das artes visuais e outros tipos de artes, como
poesia, didática e literatura.
DOR DE MÃE
– Ao coração sofrido de mãe e viúva pedagoga Darcy Andozia. – Ela era pedagoga e o marido jornalista, militavam entre
os padres dominicanos até aquela terça-feira, 15 de janeiro de 1974. É que ela saiu
para trabalhar com a dor do marido que já estava preso desde o dia anterior. No
finalzinho da tarde o local de trabalho foi invadido, o terror: era a vez dela.
Ela viu abrir a porta e entrar cinco homens armados com metralhadoras. Foi
levada por eles e rodou por horas até ser levada para o Dops. Já passava da meia
noite e o filho, Carlos Alexandre, com apenas um ano e sete meses, e a moça
cuidadora, estavam lá. A criança estava com os lábios cortados pela violência
dos policiais. E só depois soube que seu filho sofrera agressões policiais:
tapas, choques elétricos e outras sevícias. Na madrugada daquela que seria uma
terça interminável, ela foi levada para a sala de tortura. O algoz irritou-se
com a presença do seu filho ali: levaram para casa dos pais dela em São
Bernardo. Depois, ao retornar, foi colocada numa solitária com chacotas e
latidos de cães. Ficou 43 dias presa e, ao ser liberta, foi cuidar do filho que
se encontrava com seus pais. O marido passou 4 meses de tortura, saiu deprimido
e a família desestruturada foi para Currais Novos. A discriminação: o menino
cresceu e aos 5 anos era chamado de terrorista pelos colegas. Aí passou a se
fechar em si, sequelas incuráveis, a ponto de ter fobia social. Ela resolveu trabalhar
de professora sofrendo todo tipo de preconceito. O casal nunca conseguiu se
superar dos abusos sofridos durante e depois da prisão. O filho cresceu e nunca
conseguiu trabalhar, apesar de se tornar técnico em informática, porém retraído
e muito agressivo. Foi criado com antipsicóticos e antidepressivos, afora
carregar o peso de anistiado político e os efeitos dos anos de chumbo. Resultado:
suicidou-se aos 40 anos de idade, ingerindo uma grande quantidade de remédios. Veja
mais aqui, aqui e aqui.
DITOS &
DESDITOS – A
morte é, antes de tudo, a mais antiga e fundamental função biológica e seus
mecanismos foram desenvolvidos com a mesma atenção para os detalhes, a mesma
preocupação com o máximo de vantagens para o organismo, a mesma abundância de
informações genéticas para guiar os diferentes estágios, tudo enfim que estamos
há muito acostumados a encontrar em todas as funções cruciais da vida. Pensamento
do médico, educador, escritor e administrador estadunidense Lewis Thomas (1913-1993).
ALGUÉM FALOU: A vida é uma
peça de teatro que não permite ensaios. Por isso cante, chore, dance, ria e
viva intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos. Pensamento do ator, diretor, escritor, comediante,
músico, roteirista e compositor britânico Charlie
Chaplin (1889-1977). Veja mais aqui e aqui.
GRAÇA LINS: DE
AMORES E DE LIVROS - Ao
prof. Brivaldo Leão, exemplo de militância política. - Tinha olhos muito verdes, brilhantes, cor de palha de cana ao sol.
Os cabelos eram rentes ao ombro e presos por duas fivelas de tartaruga. O nome?
Dionísia. Bem merecido. Gostava de um bom vinho, sobretudo, quando recolhido
das garrafas em fins de festa da casa. Havia perdido o marido aos 17 anos e
passou a viver de favor em casa de parentes com o filho pequeno – sua única
herança. Descobri a palavra proibição quando entrei no quarto de Dionísia pela
primeira vez e remexi alguns papéis antigos e amarelados à procura de folhetos
de cordel. Irritada, puxava-me pra fora aos gritos. É que num birô, ela
armazenava segredos desarrumados em cada gaveta. Percebia que sobravam brechas
para guardar vidros com bicarbonato, caixas miúdas feitas com papel e cheias de
pomada de algaroba para curar as impingens dos netos. Passava tardes lendo
almanaques que apanhava na Farmácia do Povo. Abastecia a cabeça com adivinhas,
receitas e curiosidades. Ao fechar o livrete, esquecia todas as informações de
uma só vez. Talvez um jeito mágico de ler... Às vezes, um pensamento teimava em
me dizer que Dionísia sabia apenas decodificar letras e frases. Compreender o
que lia era um exercício muito difícil para ela. Assim, lia tudo, muito e
sempre, mas pouco entendia. Um dia, tentando usar o sinal de interrogação que a
professora ensinou em aula, fiz uma pergunta para mim mesma: “Por que uma
leitora tão interessada como Dionísia podia desentender tanto?” Parece que a
sua relação com os números era menos sofrida. Por isso, era exímia na arte de
comercializar bugigangas. Inventou de vender a prazo –prática que exercia com
perfeição. Comprava metros e metros de tecidos em tons sombrios com estampas
sem graça e vendia. Em cadernetas feitas à mão, com folhas de cadernos gastos
pelos netos, anotava desordenadamente débitos e créditos. Esquecia nomes,
inventava sobrenomes e só memorizava mesmo os nomes em rima: Manoel do
Carretel, Lina da Usina e Maria da ferida. Alguém sempre pagava duas vezes!
Outros nada, quando o tecido era para fazer a mortalha de pagar promessa na
procissão da padroeira. Dionísia era cheia de idéias. Guardava dinheiro em
locais inusitados: a caixa do contador de energia elétrica e os buracos das
fechaduras eram os seus cofres misteriosos e seguros. Sentia até, um
indescritível prazer em encontrar cédulas novinhas, depois de longas procuras
pelos lugares da casa. Ler, para Dionísia, era, também, um jeito de ocupar os
espaços ociosos do dia. Engolia páginas e páginas de romances de amores que
nunca teve e de histórias de um povo oprimido que eu sempre quis conhecer. Numa
tarde cheia de mesmice, apresentou-me um folheto, amassado e gasto, com a
figura do Jeca Tatu de Lobato. Pensei gulosa, ”quantos livros aquele birô era
capaz de esconder ?” Ela apontava fascinada para as ilustrações da galinha e
dos porcos usando botas para evitar doenças. Tudo aguçava a minha curiosidade
em descobrir os tesouros mergulhados nas profundezas daquele birô. Passei a
valorizar as ausências de Dionísia. Ela ia à feira, à padaria, conversava com
vizinhos, mas voltava e conferia, pacientemente, as gavetas sempre fechadas
daquele birô. Também tinha um hábito antigo de sentar-se à calçada, após o
jantar com a família e repetia, dia após dia, a mesma frase, em tom solene :
“Vou tomar um deforete !” ( para se deliciar com o ar fresco da noite). Em
cadeira rangente, impregnada pelas canções de ninar que cantava para os netos,
Dionísia ouvia os hinos evangélicos da igreja em frente a casa, e contava, ao
final da noite, quantos homens o Beco do Engole-Homem engolia, fazendo críticas
aos casados que subiam pra zona do baixo meretrício por aquele beco. Dentro de
casa, o quarto fechado, escondia um mundo de histórias, romances imaginários.
Eu pensava e sofria. “Que personagens habitavam aquele lugar sombrio ,
cheirando a azinhavre?” Passei a vigiar os passos de Dionísia, enquanto o birô
adquiria a dimensão de uma biblioteca que vi, uma única vez, em filme de matinê
do Cinema Apolo. Descobrindo as minhas incursões pelo quarto, economizou
explicações, dizendo que, ali, só havia objetos sem valor e postais antigos da
amiga Guiomar. Vieram os anos de chumbo. Dionísia acordou com a revolução
verbal dos vizinhos, contando sobre camburões e blindados que tentavam desligar
as “Ligas Camponesas”. Via tudo
pelas frestas da janela, até um carro esquisito, com soldados iguaizinhos na
roupa e nas ideias, que passou arrastando pedaços de uma escultura do “Palácio
do Bambu” - alcunha da Prefeitura da cidade. O medo ficou vertical quando ouviu
falar de fuzis guardados nos sacos de feijão e farinha dos sindicatos rurais,
mesmo assim, cantarolava pelos corredores da casa o “quem sabe faz a hora”. A
vizinha, Lica Preta, contou de um estudante metralhado na pracinha do Diário,
em Recife, e que tombou abraçado à
bandeira de Cuba. “Ó céus! era o filho
de seu Severino”, pensei amargurada. Contou também, de um professor, que morava
na rua de trás e foi levado pelos soldados em carro esquisito. Acho que era
porque sabia demais. Tinha uma biblioteca de livros “proibidos”. Contam que
quando foi preso, um milico apanhou um livro sobre o Cubismo e comentou com um
subalterno que aquele deveria ser destruído imediatamente, pois era um livro
sobre o Comunismo. Transtornada com as notícias, Dionísia passava mais tempo
trancada no quarto, escondendo livros embaixo do colchão, rasgando panfletos
que recebeu de Francisco Julião, que diziam ser o tal irmão de D. Júlia, a
vizinha da casa alta. Remexeu papéis, cadernetas e até guardou um cinzeiro
antigo, de um azul mais profundo que o medo de ver o birô escancarado. Naquela
noite, em que a angústia havia se alastrado pela casa, ouvi vozes de alguém,
tentando convencê-la a jogar fora os livros “vermelhos” da última gaveta.
Escondida, fiquei ouvindo a lengalenga dos argumentos e das negativas. Ninguém
falou em Jeca Tatu, talvez porque ele não era vermelho, ele até sofria de
palidez ! Pela manhã , o caminhão de lixo da prefeitura levou Trotsky, Lênin,
Marx e Zé da Luz – o tal que Lobato criou para apresentar Prestes aos seus
leitores. Todos, todos, cobertos com palha de milho, cascas de abacaxi e folhas
da Realidade – revista que ela colecionava. Lembro que, daquela revista,
recortou apenas a imagem de um homem com uma foice, ao sol, num canavial,
enegrecido pela tisna de palha de cana queimada e abaixo uma legenda mais negra
ainda: “Nós somos a vida da nossa gente
e morte de nossas vidas”. E aí, pensei fartamente: “Dionísia virou
comunista !” Sem livros, nem panfletos, cantarolava o Hino da Internacional
misturado a cânticos evangélicos que, somados, resultavam na ideia de um mundo
paradisíaco, prometido na Bíblia e nos manifestos comunistas que lera. O meu
olhar de menina começou a compreender que ela, realmente, lia e entendia,
partilhava o que lia e se definia. Essa foi a leitura que escorreu do juízo de
Dionísia e inundou a minha vida. Publicado originalmente em Contos Alados,
Nº 05/ 1998, da escritora Graça Lins.
Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.
AVARÍCIA &
PEDANTISMO - A
insegurança e o medo – esses os principais geradores da desesperada vontade de
poder que se abre como um amplo leque diante do homem [...] Avarícia e pedantismo – pavões sem mistério
passeando suas pompas e glórias num jardim mais artificial do que um cenário de
teatro. Eu tenho – diz o primeiro. Eu sei – alardeia o segundo, ambos
arrogantes como todos os fanáticos que se escravizam a uma disciplina cega,
amordaçada por fórmulas e dogmas. [...] é
preciso ser vidente no ofício de escrever. Toda criação é liberdade. [...] só
através do amor é possível penetrar na complicada estrutura deste mundo, num
ato de amor acaba por nos dar uma admirável lição de vida. Trechos
extraídos do Prefácio escrito pela escritora Lygia Fagundes Telles (1918-2022), para a obra A arte de
desaprender (Antares, 1981), de Luiz Carlos Lisboa. Veja mais aqui e aqui.
TERMOS
DE COMPARAÇÃO - Enquanto meu pai / engarrafa molho de
tomate / para o ano inteiro e prepara para salgar / sardinhas sicilianas de La
Guaira, / duas para Sara , / duas para Enzo, / uma para a araba do outro lado
da rua, / outra que / sempre vem alguém pedir, / escrevo um livro / sobre
mulheres / que não salgam sardinhas / e escrevem outros livros / sobre os
livros / que serão refutados e justificados / na fumaça sem sentido / das
academias. /Com reverência de vez em quando para / não me deixar / mordiscar
suas anchovas / louras e ácidas / com a obscena intenção / de alimentar novas
teorias. / E livro após livro, entre sardinhas / e tomates, / a cena original
escurece: / mestres solícitos, / seu fervor desaparece, / embora resistam um
pouco / na atitude inclinada / de cum
gran salis / e não é mais certo que medem / com seus dedos frágeis / o
equilíbrio de cada sabor e coisas. A poeira efêmera e tenaz dessa / experiência
/ alada perdida / dificilmente é um resíduo / como meus livros. Poema da escritora italiana Márgara Russotto. Veja mais aqui.