Ao som dos álbuns Bach, the Fly, and the
Microphone (2009), Colours of Spain (2015) e Open Sky
(2020), da premiada violonista australiana Stephania Jones.
MAIS DE TRÊS
MILÊNIOS E A METÁFORA QUÂNTICA – Um dia sonhava
e o Sol sorria. Seguia ararajuba ao lado de um tamanduá-bandeira. Logo deparei a
ariranha às voltas do macaco-aranha-da-cara-preta (não era o boi da infância?
Não, não era!). A onça pintada seguia a trilha do mico-leão-dourado, pronde
vão, não sei. Parecia mais que o cervo do pantanal guiava o lobo-guará e o
cuxiú-preto. E confundiam-me como se eu fosse o boto cor-de-rosa à porta do
Inferno de Dante: Abandona toda esperança! Ora, não! Parecíamos mesmo
o Die Brücke encarnando o Zaratustra nietzscheano na busca da realidade. Pois sempre desejei nunca
correr perigo ao lidar com o impossível, porque havia me tornado uma ponte sobre águas turvas numa viagem pelas cidades invisíveis de Calvino. Todos comigo, então. Uma
semana e lá estávamos nós ouvindo Rebecca Solnit: Caminhar… é como o corpo
se mede em relação à terra. Escrever é dizer a ninguém e a todos o que não é possível dizer a
alguém... Sim. Mais de um mês já se passara, de qualquer modo, quando dei por mim entardecia de
manhã e o dia já era outro. Queimei meu filme, arranquei todas as máscaras e não
importunei ninguém, longe a sombra de um erro grave e a avareza. Nem deu pra
perceber que era fim de ano quando ouvi Arundhati Roy: Hoje, parece que lutamos
pela injustiça, aplaudindo-a como se fosse um sonho digno, sagrado pelo sistema
de castas... Pois é, uma década e ainda insultam o decoro: o abismo
do caos. Restava-me apenas um só olhar, nada mais que isso e um século para que
eu entornasse o silêncio com quem vem desde A.E.C. precisando lembrar d’A
cor púrpura de Alice Walker. Nunca é demais relembrar, que o diga Ai Weiwei: O mundo é uma esfera. Não há Ocidente nem Oriente. Tudo é arte.
Tudo é política. O poder tem muito medo da arte e do poeta. A arte traz a
possibilidade de defender os direitos mais essenciais. Os artistas não precisam
se tornar mais políticos. Eles precisam se tornar mais humanos... Aí me dei
conta de tantos milênios e quantos equívocos para quem segue pela E.C., entre
tremores de terra em Rio Formoso e Flores, afora outros abalos sísmicos vez ou
outra Nordeste afora. E já que morri anteontem não vi lá muita coisa. O tempo
passou e contar três mil é como um piscar de olhos – por isso só contam 2, ou
lá, ou loa – repercutindo à revelia de muitos. E só. Quisera tarde antes fosse
nunca. Porque a poesia é o sacrifício de quem sonha. E quanta é a metáfora do
que cada um de nós somos e não nos damos conta. Sei dos meus pecados, cônscio ou não, todos os meus castigos, tenho lá minha culpas penduradas na garganta do
destino. Adivinho um pouco a cada
dia. Uma supernova eu dedico como se ficasse suspenso e não me esgotasse com um
ponto final, tornando-me vírgula depois de reticências e até mais ver.
HÁ COISAS QUE NÃO SÃO COMPARTILHADAS
Imagem: Acervo ArtLAM.
A morte por exemplo \ Ele deveria ir para o inferno
apenas \ Quem foge sabe caminhar sem pressa através de cidades fantasmas \ ouça
a madeira reclamar \ sinto que dá sob os pés \ Eles conhecem o som que tem
expectativa nos passos a ressonância do medo/da emboscada \ Eles sabem que a
qualquer momento debaixo do sapato \ você pode encontrar uma peça de roupa / a
mão de um inimigo uma arma / um cigarro aceso um cuspe ou apenas poeira \ a
poeira que foi feita para fazer os homens chorarem sem dor no peito \ a poeira
que mais cedo ou mais tarde está destinada a morder \ Hoje eu sei que estou
conhecendo o ritmo da curiosidade e da cautela \ enquanto me movo por um lugar
que só me lembro \ quando em sonhos eu sonho \ eu empurro a porta \ minha
sombra entra primeiro cai de cara \ ou talvez tenha estado lá olhando para o
teto o tempo todo \ e do sonho dele surgiu meu começo \ Seus pés saem dos meus
pés e da ponta de um deles \ o canto de uma carta aparece uma das cartas
espalhadas pelo chão \ Eu me abaixo para pegá-los e quem estava deitado no chão
desaparece \ Eu vou um pouco mais fundo \ Eu o encontro na frente \ seu olhar
está esperando por mim \ Ele embaralha o baralho e joga em mim uma primeira
carta que me atinge no peito \ A inocência ele diz / olhando nos meus olhos
enquanto me força a ver mentalmente a frieza \ desde o momento em que coloquei
na mesa como tudo que eu tinha \ sabendo que naquele jogo eu tinha que perder \
A segunda carta cai ao meu lado \ A calma ele diz olhando nos meus olhos
enquanto eu sentia novamente o sangue circulando em meu peito \ como aquela primeira
vez \ A terceira carta voou em direção ao meu rosto das pontas dos dedos \ A fé
ele diz olhando nos meus olhos \ enquanto minhas mãos se lembravam da dor do
qual foram feitos os altares demolidos \ A quarta carta roçou meu braço \ O
coração ele diz olhando nos meus olhos \ então eu toquei meu peito e eu senti o
vazio \ A quinta carta caiu aos meus pés \ E agora? \ pergunta olhando para
mim com meus olhos \ O medo eu respondo e eu saio do quarto de costas para o
espelho \ com a certeza de que isso é a última vez que vou perder.
Poema da escritora e jornalista guatemalteca Vânia
Vargas.
SUA HISTÓRIA & A MINHA – [...] um poeta só pode tomar plena consciência de seu eu
poético quando se apaixona por uma mulher em quem reside a deusa branca, alguém
que une criação e destruição e que trará triunfo e destruição para sua vida. [...] Por que tão
poucas pessoas entendem que o desdém dos outros, a condenação daqueles que você
ama, na verdade fortalece o seu amor? Eu podia ler a
consternação com a minha escolha nos olhos de todos ao meu redor. [...] Os amigos,
assim como a família, querem que você permaneça inalterado, enquanto o amor tem
a capacidade indecente de transformá-lo, de enriquecê-lo com uma nova visão de
tudo o que você já conheceu. Quanto mais ela caía em
desgraça com todos, mais obstinado era o meu impulso de protegê-la de um mundo
hostil. [...] A memória é literária por natureza. Pega nos acontecimentos
factuais e dá-lhes uma carga metafórica, emprestando ao que realmente aconteceu
um peso simbólico, numa busca persistente pela segurança de uma história. [...] Eu, o
grosseiro homem de Yorkshire, escolhi esta mulher exaltada acima de todas as
outras, entreguei meu coração a uma criatura exuberante e excessiva, o
protótipo da pretensão e da artificialidade, fanática, exagerada em todas as
coisas.[...] Ela queria mais do que qualquer outra coisa amar alguém,
mas quando realmente o fez, ela odiou. Ela queria mais do que
tudo ser adorada, mas punia impiedosamente qualquer um que a amasse. [...] Não há
paraíso sem cobra. [...] Tive que resistir à sensação de que o seu
espírito mercantil estava corrompendo a pureza do meu amor pela poesia. [...]
Criei coragem para fazer
ao nosso mal-educado oráculo a pergunta que presumi — não, sabia — que obcecava
minha noiva. Curvei-me sobre o quadro e perguntei se ficaríamos famosos. O
impacto foi catastrófico e desafiou todas as minhas expectativas. Com força
audaciosa, Pã nos mostrou por que o pânico recebeu seu nome: ele nos deu o
maior susto de nossas vidas, como se tivéssemos nos tornado excessivamente
familiares e não tivéssemos sido suficientemente respeitosos com sua divindade.
Do nada, um marionetista furioso puxou abruptamente a mão de minha noiva, com
os olhos cheios de lágrimas de medo, e - tendo desejado apenas agradá-la,
perseguindo o sonho americano de uma existência gloriosa como um velho cão
pastor obediente - eu escutei, atordoado, enquanto ela falava em línguas. Pan
dispensou a lentidão do alfabeto e falou diretamente através dela em um rosnado
profundo e sinistro, zombando de seu desejo por aquela exibição vazia, e
perguntou se ela percebia que a fama que ela tanto desejava destruiria tudo o
que ela tinha. [...] Tudo o que é negado e reprimido, todo conflito varrido para debaixo do
tapete e rejeitado, numa cultura ou na existência de um indivíduo, procura uma
saída e, em última análise – violento, destrutivo, diabolicamente disfarçado –
volta-se contra a vida. [...]. Your Story, My Story (Amazon, 2021), da escritora holandesa Connie Palmen (pseudônimo de Aldegonda Petronella Huberta
Maria Palmen). Veja mais aqui.
HÁ UM
MUNDO POR VIR? - [...] O fim do mundo é um tema aparentemente
interminável — pelo menos, é claro, até que ele aconteça. [...] Conforme
vai se tornando cada vez mais evidente a gravidade da presente crise ambiental
e civilizacional, proliferam novas e atualizam-se velhas variações em torno de
uma antiquíssima ideia que chamaremos, em uma simplificação que este ensaio pretende
complicar um pouco, “o fim do mundo”. São blockbusters do gênero fantástico,
“docuficções” do History Channel, livros de vulgarização científica em vários
níveis de complexidade, videogames, obras musicais e artísticas, blogs sintonizados
em todas as faixas do espectro ideológico, reuniões científicas, revistas acadêmicas
e redes de informação especializadas, relatórios e pronunciamentos de organizações
mundiais as mais diversas, as invariavelmente frustrantes conferências de cúpula
sobre o clima, simpósios de teologia, ensaios de filosofia, cerimônias da Nova Era
e de outros movimentos neo-pagãos, um número exponencialmente crescente de manifestos
políticos — toda sorte, enfim, de textos, contextos, veículos, enunciadores, públicos.
A presença do tema na cultura contemporânea só tem feito aumentar, e cada vez
mais rapidamente, justo como aquilo a que ele se refere, a saber, a
intensificação das mudanças do macro-ambiente terrestre. Toda esta floração
disfórica se dispõe na contracorrente do otimismo “humanista” predominante nos
três ou quatro últimos séculos da história do Ocidente. [...] As coisas
têm mudado tão rápido que se tornou difícil acompanhá-las [...] Falar no
fim do mundo é falar na necessidade de imaginar, antes que um novo mundo em
lugar deste nosso mundo presente, um novo povo; o povo que falta. Um povo que
creia no mundo que ele deverá criar com o que de mundo nós deixamos a ele.
[...]. Trechos extraídos da obra Há mundo
por vir? Ensaio sobre os medos e os fins (Desterro, Cultura e Barbárie\Instituto Socioambiental,
2014), da filósofa Débora Danowski e do antropólogo Eduardo Viveiros de
Castro.
O DEFUNTO AVENTUREIRO
[...] Lembrou que deixara de consertar as goteiras do quarto, botar
água fervendo no formigueiro que aparecera bem debaixo da cama, endireitar a
tranca da porta. À noite passada, não pudera dormir, cercado de pingos
impertinentes. Graças a Deus, a noite hoje estava bonita. Sem lua, mas sem
chuva. A verdade era que estava perdendo o gosto da habitação [...].
Trecho extraído da obra O defunto aventureiro (Bagaço, 2008), do
escritor Gilvan Lemos. Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.