quarta-feira, novembro 22, 2023

CONNIE PALMEN, VÂNIA VARGAS, GILVAN LEMOS & MUNDO POR VIR

 

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som dos álbuns Bach, the Fly, and the Microphone (2009), Colours of Spain (2015) e Open Sky (2020), da premiada violonista australiana Stephania Jones.

 

MAIS DE TRÊS MILÊNIOS E A METÁFORA QUÂNTICA – Um dia sonhava e o Sol sorria. Seguia ararajuba ao lado de um tamanduá-bandeira. Logo deparei a ariranha às voltas do macaco-aranha-da-cara-preta (não era o boi da infância? Não, não era!). A onça pintada seguia a trilha do mico-leão-dourado, pronde vão, não sei. Parecia mais que o cervo do pantanal guiava o lobo-guará e o cuxiú-preto. E confundiam-me como se eu fosse o boto cor-de-rosa à porta do Inferno de Dante: Abandona toda esperança! Ora, não! Parecíamos mesmo o Die Brücke encarnando o Zaratustra nietzscheano na busca da realidade. Pois sempre desejei nunca correr perigo ao lidar com o impossível, porque havia me tornado uma ponte sobre águas turvas numa viagem pelas cidades invisíveis de Calvino. Todos comigo, então. Uma semana e lá estávamos nós ouvindo Rebecca Solnit: Caminhar… é como o corpo se mede em relação à terra. Escrever é dizer a ninguém e a todos o que não é possível dizer a alguém... Sim. Mais de um mês já se passara, de qualquer modo, quando dei por mim entardecia de manhã e o dia já era outro. Queimei meu filme, arranquei todas as máscaras e não importunei ninguém, longe a sombra de um erro grave e a avareza. Nem deu pra perceber que era fim de ano quando ouvi Arundhati Roy: Hoje, parece que lutamos pela injustiça, aplaudindo-a como se fosse um sonho digno, sagrado pelo sistema de castas... Pois é, uma década e ainda insultam o decoro: o abismo do caos. Restava-me apenas um só olhar, nada mais que isso e um século para que eu entornasse o silêncio com quem vem desde A.E.C. precisando lembrar d’A cor púrpura de Alice Walker. Nunca é demais relembrar, que o diga Ai Weiwei: O mundo é uma esfera. Não há Ocidente nem Oriente. Tudo é arte. Tudo é política. O poder tem muito medo da arte e do poeta. A arte traz a possibilidade de defender os direitos mais essenciais. Os artistas não precisam se tornar mais políticos. Eles precisam se tornar mais humanos... Aí me dei conta de tantos milênios e quantos equívocos para quem segue pela E.C., entre tremores de terra em Rio Formoso e Flores, afora outros abalos sísmicos vez ou outra Nordeste afora. E já que morri anteontem não vi lá muita coisa. O tempo passou e contar três mil é como um piscar de olhos – por isso só contam 2, ou lá, ou loa – repercutindo à revelia de muitos. E só. Quisera tarde antes fosse nunca. Porque a poesia é o sacrifício de quem sonha. E quanta é a metáfora do que cada um de nós somos e não nos damos conta. Sei dos meus pecados, cônscio ou não, todos os meus castigos, tenho lá minha culpas penduradas na garganta do destino. Adivinho um pouco a cada dia. Uma supernova eu dedico como se ficasse suspenso e não me esgotasse com um ponto final, tornando-me vírgula depois de reticências e até mais ver.

 

HÁ COISAS QUE NÃO SÃO COMPARTILHADAS

Imagem: Acervo ArtLAM.

A morte por exemplo \ Ele deveria ir para o inferno apenas \ Quem foge sabe caminhar sem pressa através de cidades fantasmas \ ouça a madeira reclamar \ sinto que dá sob os pés \ Eles conhecem o som que tem expectativa nos passos a ressonância do medo/da emboscada \ Eles sabem que a qualquer momento debaixo do sapato \ você pode encontrar uma peça de roupa / a mão de um inimigo uma arma / um cigarro aceso um cuspe ou apenas poeira \ a poeira que foi feita para fazer os homens chorarem sem dor no peito \ a poeira que mais cedo ou mais tarde está destinada a morder \ Hoje eu sei que estou conhecendo o ritmo da curiosidade e da cautela \ enquanto me movo por um lugar que só me lembro \ quando em sonhos eu sonho \ eu empurro a porta \ minha sombra entra primeiro cai de cara \ ou talvez tenha estado lá olhando para o teto o tempo todo \ e do sonho dele surgiu meu começo \ Seus pés saem dos meus pés e da ponta de um deles \ o canto de uma carta aparece uma das cartas espalhadas pelo chão \ Eu me abaixo para pegá-los e quem estava deitado no chão desaparece \ Eu vou um pouco mais fundo \ Eu o encontro na frente \ seu olhar está esperando por mim \ Ele embaralha o baralho e joga em mim uma primeira carta que me atinge no peito \ A inocência ele diz / olhando nos meus olhos enquanto me força a ver mentalmente a frieza \ desde o momento em que coloquei na mesa como tudo que eu tinha \ sabendo que naquele jogo eu tinha que perder \ A segunda carta cai ao meu lado \ A calma ele diz olhando nos meus olhos enquanto eu sentia novamente o sangue circulando em meu peito \ como aquela primeira vez \ A terceira carta voou em direção ao meu rosto das pontas dos dedos \ A fé ele diz olhando nos meus olhos \ enquanto minhas mãos se lembravam da dor do qual foram feitos os altares demolidos \ A quarta carta roçou meu braço \ O coração ele diz olhando nos meus olhos \ então eu toquei meu peito e eu senti o vazio \ A quinta carta caiu aos meus pés \ E agora? \ pergunta olhando para mim com meus olhos \ O medo eu respondo e eu saio do quarto de costas para o espelho \ com a certeza de que isso é a última vez que vou perder.

Poema da escritora e jornalista guatemalteca Vânia Vargas.

 

SUA HISTÓRIA & A MINHA – [...] um poeta só pode tomar plena consciência de seu eu poético quando se apaixona por uma mulher em quem reside a deusa branca, alguém que une criação e destruição e que trará triunfo e destruição para sua vida. [...] Por que tão poucas pessoas entendem que o desdém dos outros, a condenação daqueles que você ama, na verdade fortalece o seu amor? Eu podia ler a consternação com a minha escolha nos olhos de todos ao meu redor. [...] Os amigos, assim como a família, querem que você permaneça inalterado, enquanto o amor tem a capacidade indecente de transformá-lo, de enriquecê-lo com uma nova visão de tudo o que você já conheceu. Quanto mais ela caía em desgraça com todos, mais obstinado era o meu impulso de protegê-la de um mundo hostil. [...] A memória é literária por natureza. Pega nos acontecimentos factuais e dá-lhes uma carga metafórica, emprestando ao que realmente aconteceu um peso simbólico, numa busca persistente pela segurança de uma história. [...] Eu, o grosseiro homem de Yorkshire, escolhi esta mulher exaltada acima de todas as outras, entreguei meu coração a uma criatura exuberante e excessiva, o protótipo da pretensão e da artificialidade, fanática, exagerada em todas as coisas.[...] Ela queria mais do que qualquer outra coisa amar alguém, mas quando realmente o fez, ela odiou. Ela queria mais do que tudo ser adorada, mas punia impiedosamente qualquer um que a amasse. [...] Não há paraíso sem cobra. [...] Tive que resistir à sensação de que o seu espírito mercantil estava corrompendo a pureza do meu amor pela poesia. [...] Criei coragem para fazer ao nosso mal-educado oráculo a pergunta que presumi — não, sabia — que obcecava minha noiva. Curvei-me sobre o quadro e perguntei se ficaríamos famosos. O impacto foi catastrófico e desafiou todas as minhas expectativas. Com força audaciosa, Pã nos mostrou por que o pânico recebeu seu nome: ele nos deu o maior susto de nossas vidas, como se tivéssemos nos tornado excessivamente familiares e não tivéssemos sido suficientemente respeitosos com sua divindade. Do nada, um marionetista furioso puxou abruptamente a mão de minha noiva, com os olhos cheios de lágrimas de medo, e - tendo desejado apenas agradá-la, perseguindo o sonho americano de uma existência gloriosa como um velho cão pastor obediente - eu escutei, atordoado, enquanto ela falava em línguas. Pan dispensou a lentidão do alfabeto e falou diretamente através dela em um rosnado profundo e sinistro, zombando de seu desejo por aquela exibição vazia, e perguntou se ela percebia que a fama que ela tanto desejava destruiria tudo o que ela tinha. [...] Tudo o que é negado e reprimido, todo conflito varrido para debaixo do tapete e rejeitado, numa cultura ou na existência de um indivíduo, procura uma saída e, em última análise – violento, destrutivo, diabolicamente disfarçado – volta-se contra a vida. [...]. Your Story, My Story (Amazon, 2021), da escritora holandesa Connie Palmen (pseudônimo de Aldegonda Petronella Huberta Maria Palmen). Veja mais aqui.

 

HÁ UM MUNDO POR VIR? - [...] O fim do mundo é um tema aparentemente interminável — pelo menos, é claro, até que ele aconteça. [...] Conforme vai se tornando cada vez mais evidente a gravidade da presente crise ambiental e civilizacional, proliferam novas e atualizam-se velhas variações em torno de uma antiquíssima ideia que chamaremos, em uma simplificação que este ensaio pretende complicar um pouco, “o fim do mundo”. São blockbusters do gênero fantástico, “docuficções” do History Channel, livros de vulgarização científica em vários níveis de complexidade, videogames, obras musicais e artísticas, blogs sintonizados em todas as faixas do espectro ideológico, reuniões científicas, revistas acadêmicas e redes de informação especializadas, relatórios e pronunciamentos de organizações mundiais as mais diversas, as invariavelmente frustrantes conferências de cúpula sobre o clima, simpósios de teologia, ensaios de filosofia, cerimônias da Nova Era e de outros movimentos neo-pagãos, um número exponencialmente crescente de manifestos políticos — toda sorte, enfim, de textos, contextos, veículos, enunciadores, públicos. A presença do tema na cultura contemporânea só tem feito aumentar, e cada vez mais rapidamente, justo como aquilo a que ele se refere, a saber, a intensificação das mudanças do macro-ambiente terrestre. Toda esta floração disfórica se dispõe na contracorrente do otimismo “humanista” predominante nos três ou quatro últimos séculos da história do Ocidente. [...] As coisas têm mudado tão rápido que se tornou difícil acompanhá-las [...] Falar no fim do mundo é falar na necessidade de imaginar, antes que um novo mundo em lugar deste nosso mundo presente, um novo povo; o povo que falta. Um povo que creia no mundo que ele deverá criar com o que de mundo nós deixamos a ele. [...]. Trechos extraídos da obra Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins (Desterro, Cultura e Barbárie\Instituto Socioambiental, 2014), da filósofa Débora Danowski e do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro.

 

O DEFUNTO AVENTUREIRO

[...] Lembrou que deixara de consertar as goteiras do quarto, botar água fervendo no formigueiro que aparecera bem debaixo da cama, endireitar a tranca da porta. À noite passada, não pudera dormir, cercado de pingos impertinentes. Graças a Deus, a noite hoje estava bonita. Sem lua, mas sem chuva. A verdade era que estava perdendo o gosto da habitação [...].

Trecho extraído da obra O defunto aventureiro (Bagaço, 2008), do escritor Gilvan Lemos. Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.