Imagem: Acervo ArtLAM.
Ao som do álbum Territórios
(Rocinante, 2023), da violonista clássica Gabriele
Leite, musicista, que figurou na lista Under 30 da Forbes, em
2020.
PALÍNDROMO OUROBOROS & SISIFISMO GLOCAL... – Piso errâncias da solidão pelo Vazio de Boötes, prófugo sonheiro pela constelação Ofícuo, ou sei lá: talvez aqui esteja mais respirável que as
intoxicadas calçadas e ruas da minha cidade. Juro, talvez possa escapulir –
sim, alívio pra quem sempre se viu enredado nas tramas da trilogia de Samuel Beckett, diante do Lamentável Expediente da Guerra. Absurdo é não haver mais lugar seguro, o inferno por
toda parte. Confesso, meu coração Molloy, miseravelmente solitário: não é nem
nunca será nada; apenas teimoso, como se buscasse o ventre materno a todo instante.
Só sei e sinto o desperdício de todos os solilóquios: é tudo
desconfortavelmente incomunicável, inevitavelmente falhamos e muito feio. Quase
nada mais adianta, resta o inopinado. Pelas ruas as mulheres me pediam uma das
pedras dos bolsos e, em troca, ofertavam o limiar da porteira do mundo, a
origem de Courbet. Surpreso, não fazia outra coisa senão entregá-las a
todas elas, sem que precisassem gratificar. Elas insistiam e mais persistiam,
não sabiam que não tinha onde cair morto nem sequer mais sabia meu próprio nome,
assombrado com as escaramuças das valias e o tiroteio da indiferença nas ondas do
anonimato. O momento é quase uma amputação, não entendo seus gestos e falares, se
festejam ou descontentes. Não as entendo, muito menos o que dissera Astrid Lindgreen: Eu era jovem, pobre e me sentia muito sozinha. Eu vim de uma cidade
pequena e em Estocolmo não conhecia ninguém. De segunda a sexta
trabalhava em escritório, mas os finais de semana eram tristes e chatos. Passei o tempo lendo
livros... Se me chegara por penhora, não sabia. Eis-me aqui de volta, disse-lhe. Tal Malone, asseguro: a gente só sabe
que vai morrer! E me apontou pelas esquinas as ocorrências – outras delas que
desfiavam nas garras de homicidas impunes, nem quero ver e não perdoo ninguém,
pro inferno todos! Não, não quis dizer isto! Longe de mim. Reconheço: gente
envolvida em fanáticas irrelevâncias, pelo ódio aguça o risco e a fealdade dos
interesses chovem bombas torrenciais na incógnita esperança dos olhos infantis
daqui e das palestinas na Faixa de Gaza, das israelitas cativas, russas e
ucranianas, desumanidade demais sob um Sol furioso e calor de 50 graus - cada
vez mais difícil sobreviver. Quem asfixiado não escapole da clausura, quem
oprimido não abre o peito à indignação, quem à porta não dá o milésimo passo. Já
tenho muito no que pensar e fazer, buscar o asilo com as dificuldades de
locomoção, a quase mendicidade, a claustrofobia sufocante, as sobras e os
restos, tudo se esvai: apesar de tudo, muito em breve estarei morto. Preciso
ficar calado, aprender o silêncio. Ela insiste e me recrimina Selma Lagerlöf:
Ninguém
pode salvar as honras do Senhor, mas abençoado será aquele que restaurar a
coragem para suportar... Não consigo entendê-la: onde agora, quem e
quando, a impossibilidade, aporias e coisas, outros silêncios. Toda religião é
uma ofensa, como os noticiários: incapazes de perceberem todo dia a criação do universo - o círculo e a
linha ondulada se faz reta rasgando limites, os erros e a minha vida, uma
sucessão de hábitos. Quase nem há como ir adiante, a jaula é um labirinto em
que se confundem começos e fins, decessos e ressurgências, saídentradas... O
portão emperra e nem ouço direito agora Margarida Rebelo Pinto solícita: Acredita que o tempo em que
estamos com aqueles que nos querem bem é sempre um tempo ganho, como quem
acumula pontos de felicidade para o futuro... Não sobrou ninguém além da gentileza dela a me sorrir como se
fosse um fantasma renitente a me exigir uma atitude que não sei qual nem onde
estou. Sei que sou inominável no meio do silêncio e ouso o primeiro passo a cada
dia e de novo, meus pedaços não vão tão longe, penetram a menor profundidade,
como se tecessem invisiveis limites na dor do aniquilamento numa suposta cova
mais rasa. Vou continuar, preciso ir, vou adiante mesmo assim: pra onde, como,
quando... Não há razão pra desistir, nem pra desespero. O que sou e tudo
passará. Ah, até mais ver.
Imagem: Acervo ArtLAM.
LADY TITANIC - Eu tenho
a maldição do Titanic e um iceberg na garganta \ Eu afundo no gelo do inferno \
o fogo nunca esteve tão frio \ Eu te empresto meu barco em pedaços \ ou eu te
dou um pedaço do meu sorvete \ ser juiz e parte da viagem que não volta na
jornada mais triste \ do navio mais louco \ Eu sou a Senhora Titanic \ aquele
que nunca iria afundar em seus ferros majestosos \ agora eu tenho tudo acertado
\ o tédio roxo do náufrago entre minhas sobrancelhas de inseto cleptomaníaco \
Eu nunca voltarei navegar pelos mares \ Eu estarei para sempre afogado no
espelho que me cruzou \ Eu tenho a tragédia do Titanic e um iceberg nos olhos \
Eu afundo no inferno do iceberg \ O gelo nunca esteve tão quente.
MALES DE LA ENFERMEDAD (CONFESIONES) - o mal das flores envolve meu crânio \ como uma
coroa de espinhos duros \ todo mundo me tem disse o mesmo \ que não há cura por
esses males da alma \ o mal das flores rodeia meu cérebro \ como um corolário
muito espinhoso \ todo mundo me tem disse igual que não há cura por tão grande
e um mal doloroso.
Poemas da escritora e professora uruguaia Paula Einöder.
CAFÉ
EXISTENCIALISTA – [...] A ansiedade é a vertigem da
liberdade [...] É perfeitamente verdade, como dizem os filósofos, que a vida deve
ser entendida de trás para frente. Mas esquecem a outra
proposição, que deve ser vivida para frente. E se pensarmos sobre
esta proposição, torna-se cada vez mais evidente que a vida nunca pode ser
realmente compreendida no tempo, porque em nenhum momento particular posso
encontrar o local de descanso necessário para compreendê-la. [...] As ideias são
interessantes, mas as pessoas o são muito mais. [...] Você deveria fazer
suas escolhas como se estivesse escolhendo em nome de toda a humanidade [...] Penso com tristeza em todos os livros que li, em
todos os lugares que vi, em todo o conhecimento que acumulei e que não existirá
mais. Toda a música, todas as pinturas, toda a cultura, tantos lugares: e de
repente nada. Eles não fizeram mel, essas coisas, eles não podem fornecer nenhum
alimento para ninguém. No máximo, se meus livros ainda forem lidos, o leitor
pensará: Não houve muita coisa que ela não tenha visto! Mas aquela soma única
de coisas, a experiência que vivi, com toda a sua ordem e a sua aleatoriedade -
a Ópera de Pequim, a arena de Huelva, o candomblé na Bahia, as dunas de
El-Oued, a Avenida Wabansia, as madrugadas na Provença , Tirinto, Castro
conversando com quinhentos mil cubanos, um céu sulfuroso sobre um mar de
nuvens, o azevinho roxo, as noites brancas de Leningrado, os sinos da
Libertação, uma lua laranja sobre o Pireu, um sol vermelho nascendo sobre o
deserto , Torcello, Roma, todas as coisas de que falei, outras que deixei por
dizer — não há lugar onde tudo isso possa voltar a viver. […] De agora em diante,
escreveu ele, devemos sempre levar em conta o nosso conhecimento de que podemos
destruir-nos à vontade, com toda a nossa história e talvez com a própria vida
na Terra. Nada nos impede, a não ser a nossa livre escolha. Se quisermos sobreviver,
temos que decidir viver. Assim, ele ofereceu uma filosofia
projetada para uma espécie que havia acabado de se assustar, mas que finalmente
se sentia pronta para crescer e assumir responsabilidades. [...] poucas
pessoas arriscarão a vida por uma coisa tão pequena como levantar um braço –
mas é assim que os poderes de resistência de alguém são desgastados e,
eventualmente, a responsabilidade e a integridade de alguém vão com eles [...]. Trechos extraídos da obra At the Existentialist Café: Freedom, Being, and Apricot Cocktails (Random House, 2017), da premiada escritora e
professora britânica Sarah Bakewell, fornecendo um relato dos
existencialistas modernos que vieram por conta própria antes e durante a
Segunda Guerra Mundial, discutindo as ideias da fenomenologia e como influenciou
a ascensão do existencialismo.
DISCURSO DO
COLONIALISMO – [...] A maldição mais comum neste
assunto é ser a vítima de boa-fé de uma hipocrisia coletiva, hábil em colocar
mal os problemas para legitimar melhor as odiosas soluções que lhes são
oferecidas [...] O que estou querendo dizer? Nesta ideia: que ninguém
coloniza inocentemente, que ninguém coloniza impunemente; que uma nação que
coloniza, que uma civilização que justifica a colonização – e portanto a força
– já é uma civilização doente, uma civilização moralmente doente, que
irresistivelmente, progredindo de uma consequência a outra, de uma negação a
outra, clama pelo seu Hitler, Quero dizer, sua punição. [...] As pessoas
ficam surpresas, ficam indignadas. Eles dizem: “Que
estranho! Mas não importa – é o nazismo, vai passar!” E eles esperam e
esperam; e escondem de si mesmos a verdade de que isso é barbárie, mas a barbárie
suprema, a barbárie culminante que resume todas as barbáries cotidianas; que é o nazismo, sim,
mas que antes de serem suas vítimas, foram seus cúmplices; que toleraram aquele
nazismo antes que ele lhes fosse infligido, que o absolveram, lhe fecharam os
olhos, o legitimaram, porque, até então, só tinha sido aplicado a povos não
europeus; que cultivaram esse nazismo, que são responsáveis por ele, e que antes de
engolir toda a civilização ocidental e cristã nas suas águas avermelhadas, ela
escorre, escorre e escorre por todas as fendas. [...]. Trechos
extraídos da obra Discurso sobre el
colonialismo (Akal, 2006), do
poeta francês Aimé Césaire (1913-2008), que em sua obra Notebook of a Return to the Native
Land (Wesleyan Poetry Series
- Wesleyan University Press, 2001), expressa que: […] Cuidado, meu corpo e minha alma, cuidado sobretudo em cruzar os braços e
assumir a atitude estéril do espectador, pois a vida não é um espetáculo, um
mar de tristezas não é um proscênio, e um homem que chora não é um urso
dançarino. [...] Um homem gritando não é um urso dançante. A vida não é um
espetáculo. [...]. É dele a frase: Uma civilização que se revela incapaz de
resolver os problemas que cria é uma civilização decadente. Uma civilização que
escolhe fechar os olhos aos seus problemas mais cruciais é uma civilização
atingida. Uma civilização que usa seus princípios para trapaças e enganos é uma
civilização moribunda. Veja mais aqui.
... Em cada
verso o abismo aberto. \ O limbo como um hímen (não comestível).
Versos de Cinco
poemas (2012), extraído da obra Inconfissões (CriaArt, 2023), do
poeta Vital Corrêa de Araújo, organizado pelo poeta e professor Admmauro
Gommes, autor da também recém lançada obra O enigma vital – aspectos da
obra poética de Vital Corrêa de Araújo (CriaArt, 2023). Veja mais aqui,
aqui, aqui & aqui.