TRÍPTICO DQC: SENTIDOS DO SER & OS
MISTÉRIOS DO ESPELHO - Ao som do concerto ao vivo do violonista e
compositor Yamandú Costa, em
Boulder, Colorado (2016). – De manhazinha me
achava pronto para ganhar o mundo, protagonista de um filme em cartaz tantas
vezes visto e revisto e veja só o que me aconteceu. Sabe aquele dia em que tudo
pode acontecer e dá-se assim mesmo, de levar um bocado de tempo pensando como é
que não tomei a iniciativa certa, evitando o desagradável e ficado na cama com
a sensação de ter perdido o que podia ser a chance de ouro e dali em diante
tudo seria diferente, né não? Poderia, suponho: encontrar uma cartela de prêmio
extraviada e ficar rico de uma hora para outra, ou cair num buraco de sair
pelos esgotos me relando de quase morrer no Japão, qual. Ou dar de cara com uma
sensual ET tarada que zarpasse comigo para galáxias distantes dessa loucura
toda ou ficar quieto na parada da condução, encostado num poste e dois carros
se chocarem no cruzamento e um deles me alcançar desavisado estendido lá longe
entre a vida ou a morte, foi assim mesmo. Ou aparecer ressurreto Jesus aos
brados contra os equívocos cristãos, insistindo em negar ter sido mais de três
vezes: não sou, nunca fui, nem serei; ou ser levado pela desobediência civil de
uma turba desvalida de squatters e okupas com máscara do Fawkes e palavras
de ordem da memória ceciliana do Lima Barreto e das notas de Chomsky, contra
a gentrificação e o desperdício descartável do consumo desenfreado, e a favor
do amor livre, nenhum governo e coisa tal! Ou sei lá mais o quê, afinal, ou se
mete pro que der e vier, ou deixa correr que não estou nessa de sair à toa.
Dúvida cruel, devires. Quantas: faço ou não; desfaço ou deixo ao deus dará.
Encruzilhadas, vórtices. Uma hora tem que desenganchar e tem que ir ou se
mandar sem saber qual a da vez, assim: ou se mete de cara para ver no que vai
dar, ou fica chocando à espera do que jamais advirá, ou. Opto sempre pela
iniciativa e lá vou eu. Enfim, desci a ladeira no meio da nublada quietude:
será que estão todos ainda dormindo e nem sei que horas são, ou todos fugiram e
me deixaram sozinho, sei lá. Um pé de gente para dar bom dia, não havia. Um passo
pra frente e as coisas ficando para trás e vice-versa. Mal cheguei à esquina,
era como se via satélite fosse o tráfego de tudo, tráfico de sonhos e desejos. Aos
borbotões os que vão e os que seguem pelo lado oposto, cada um se valendo do
que há no bolso, compromisso ou passeio. Seguia acenando a quem avistasse
reconhecido, que eram pouquíssimos ou ninguém, pensei que era. Nessa andança deu
para notar que além de ser uma paisagem desbotada ou invisível, sou também
indesejável ou ignorado, ô gente hostil para lá e para cá; sigo, então, acolá. O
que presencio não é lá muito diferente de uma guerra como se ao redor fosse só desmoronamento,
sofreguidão. Se de um lado há quem olhe pro chão e são muitos catando lá o que
se possa imaginar; de outro, os de cara pra cima também em demasia, acho que à
cata de algo que evidencie uma mudança repentina daqui e dacolá. Quase não
distingo nada no meio da confusão que é a vida indo quando não voltando. Se há
algo real só a escolha, ou sim ou não. Quase nem dá para ouvir no meio da
algaravia o que reclamou Fernando Sabino:
O diabo desta vida é que entre cem caminhos
temos que escolher apenas um, e viver com a nostalgia dos outros noventa e nove. Quanto
mais olvidar daquela do Neruda sobre
escolhas e consequências, avalie. Poderia ter ficado
em casa e me poupado disso. E para falar a
verdade, nem saí e fiquei aqui inventando toda essa história para você. Vamos nessa.
DOIS: VOLTA DOÍDA AO
PASSADO – Imagem: Andrei Bordeianu/Alamy Stock, ao som da Sonata
para violín y piano em Sol menor, de Claude Debussy, com a violinista espanhola Marta
Roca Alonso, no Salón de Honor, Centro Cultural Kirchner, Buenos Aires,
2017. – Voltei quase trinta anos depois
e aqui estou na pele de Ka pela Neve (Companhia das Letras, 2006), do escritor
turco e Prêmio Nobel de 2006, Orhan Pamuk. O retorno selara meu exílio. As
ruas sujas pela fuligem do canavial e monturo de dejetos serviam para as ondas
de gente num mar revolto. As calçadas estavam tomadas por mendigos, feirantes e
sulanqueiros, gritaria de ambulantes e volantes sonoras, pastores irados,
liquidações e ofertas, santinhos e flâmulas, noticiários e tragédias, vexames e
filas. Quase não era a mesma, não fosse a providencial reconstrução após a
trágica enchente de poucos anos atrás, tornando as casas com aparência de
banheiros sanitários hoteleiros ou sarcófagos suntuosos que, para os moradores,
significavam a última moda da arquitetura. Quase não reconheço mais ninguém; parente
algum e muitos do convívio sepultados, outros escaparam e pouquíssimos
resistiam naquele ar viciado de gente que nunca vi mais gordo e eu estrangeiro
em meu próprio chão. É tempo de eleições e pandemia, as pessoas tristalegres se
aglomeram no comércio, praças e eventos diuturnos, indiferentes à tragédia. Foi
decepcionante vê-los de passagem como incólumes sonâmbulos erguendo bandeiras
religiosas tão torpes e ideias políticas totalitárias, como se não vivesse o
presente e o tempo regredisse para as trevas de cinco décadas atrás: ... sentiu o mesmo tipo
de culpa e vergonha que sentia quando jovem, ao sair de reuniões políticas.
Aquelas reuniões políticas o perturbavam não apenas porque ele era um rapaz de
alta classe média, mas também porque as discussões eram cheias de atitudes
infantis e exageros. Pessoas
como eu só encontram a paz quando estão lutando por uma causa. Os jovens agora contaminados pela sofrência
brega e o rebolado da funkada, pareciam suicidas como portadores da boa nova tão
antiga e da mudança retrógrada, quando, na verdade, refaziam os horrores do
passado para o pior. Diante de tudo isso havia em mim nesse reencontro aquele
sentimento de Pepetela: A
dor muito prolongada faz-nos cruéis e indiferentes à crueldade, o que é ainda
pior. Num Universo de sim ou não, branco ou negro, eu represento o talvez.
Talvez é não, para quem quer ouvir sim e significa sim para quem espera ouvir
não. O que importa é mudar a ovalidade do mundo sem dele fugir. Esta cidade não mais reconhecida, não poderia
ser aquela que tanto amei e em que vivi superando adversidades e correndo atrás
do tempo perdido. Era outra, tão estranha quanto cosmopolita e desenganada.
TRÊS: QUINTESSÊNCIA – Imagem: da artista russa Evgeniya Abramova, ao som
da Cello Sonata in C major, Op. 119,
de Prokofiev, na interpretação do pianista Victor Asuncion
e do violoncelista Brannon Cho, no Queen
Elisabeth International Cello Competition (2017) – A cena é ela, à meia
luz, não sei qual seria o seu papel naquela hora. Sempre dela e as outras
tantas que povoam nela em meu ser asfixiado pela solidão. A minha salvação é
ela Ïpek, aquela da minha
paixão perdida e que será aquela que me alimenta de venturas e prazeres, de
loucura inusitada, de transcendências e voragens. Ela chega silenciosa na
cadência dos seus passos e me abraça como se o amanhã não mais existisse e só
nos restava uma última hora e nada mais. Beijou-me com a urgência dos
desencontrados e rolamos todos os pisos e tetos, e nos desnudamos de todas as
vésperas e impedimentos, e nos fizemos inteiros maiores que a imensidão. Assim ela
em mim e eu nela, tudo o que quisermos na inexistência dos limites. E só há o
que de mim pra ela e dela pra mim, o acasalamento perfeito e divino. Depois do
amor, abraçados no meio do silêncio. E inescrupulosamente desejei seu semblante fresco e toquei seus lábios no Jogo
da Amarelinha de Cortázar, aproveitando cada detalhe de sua majestosa
candura. Ouvi-la sussurrar Balzac: Ah, o amor é um mistério, que só tem vida no
fundo dos corações... e abri bem os olhos e ela era Ana de Robert Burns: Ai, vinho que ontem bebi / Escondido numa choupana,/ quando em meu peito
senti / os negros cabelos de Ana! / O judeu já no deserto / que bebia o que
Deus mana / não sabia o mel oferto / nos lábios ardentes de Ana! / Reis, tomai
o Leste e o Oeste, / desde o Indo até o Savana, / mas dai ao corpo que as veste
/ as formas trementes de Ana! / Encantos desdenharei / de imperatriz ou sultana
/ pelo prazer que darei / e tomarei só com Ana. / Vai-te, faustoso deus diurno!
/ Vai-te, pálida Diana! / Suma-se o claror noturno, / quando eu me encontro com
Ana! / Venha a noite em negro manto! / Sol, Lua, Estrelas, deixai-nos! / Só com,
penas de anjo o encanto / direi dos gozos com Ana. Quem
dera a vida fosse somente nela. Até mais ver.
A MÚSICA DE SÉRGIO FERRAZ
Há um vasto caminho pela frente. A criação
musical é como um oceano sem fim. Quanto mais mergulho nele, sinto que ainda
posso ir mais fundo. Quero também estreitar relações com músicos do sul do
Brasil, fazer novas parcerias, novos grupos. Estou a toda hora tendo ideias,
espero ter tempo para por isso tudo em prática.
A arte
do violinista, violonista, guitarrista e compositor Sérgio Ferraz, que é bacharel em música pela Universidade Federal
de Pernambuco (UFPE) e iniciou seus estudos desde cedo Conservatório
Pernambucano de Música, por volta dos anos 1980. Integrou os grupos Alma em
Água, Sonoris Fábrica e Quarteto Romançal. Lançou os álbuns: Segundo romançário (2010), em parceria
com Antonio Madureira; Sonoris Fábrica (2011), Dançando aos pés de Shiva (2012), A sublime ciência e o soberano segredo
(2013), Concerto armorial (2014) e Flutuando sobre as ondas (2015). Veja
mais aqui, aqui e aqui.