TRÍPTICO DQC: A UTOPIA DO TEMPO - Ao som do Concerto for Piano and Orchestra nº. 21 in C major, K.467, de Wolfgang Amadeus Mozart, com a pianista
sul-coreana Yeol Eum Son with the
New York Philharmonic and Lorin Maazel (2018) – Para
quem de manhã soubesse o caminho do Sol e tivesse apenas a força das mãos e da
alma no corpo talhado por cicatrizes de golpes ininterruptos e queimaduras de
guerras perdidas, feridas do sangue que não se estanca, só me resta por alimento
o tempo decorrido com todos os sentidos e ambiguidades, como um encurralado
porque nada é o que parece nessas horas agudas de desgoverno, o que me faz
ficar pronto para ir embora a qualquer momento seja qual lugar. Para quem de
tarde o mormaço lavasse a face e escorresse pelo corpo cansado de nenhum
abrigo, porque nem todo dia é dia de mesmo até que algo aconteça e tudo mude de
figura ou fique na mesma, ninguém sabe, o inesperado e o previsível se
confundem, como se restasse apenas a vida de menino abandonado à própria sorte,
para sobreviver pelos descampados e selvas como renegado do mundo dos homens e
desse com a foca branca de Kipling a
procurar um lugar sem caçadores. Para quem de noite fugisse do senso comum como
se não aguentasse mais a mesmice e soubesse a sombra saindo do curso a ir por
ali e eu por aqui até depois ou não sei quando, Olimpo ou Hades, se no chão me
sobrasse o sonho de quem ascendesse aos céus por galáxias, depois de sepultado
na cova rasa para virar estrela e a ressurreição iluminar as portas e janelas abertas
do itinerário perdido por ventanias que vergam tudo no mundo dilacerado e eu
vagandimundo quase incapaz de imprecar com os braços alvoroçados o prenúncio de
um novo dia. É a hora de empreender o caminho de volta. E nesse retorno ouvir
de John Updike que: Os sonhos tornam-se realidade. Sem essa
possibilidade, a natureza não nos incentivaria a tê-los. Mas
que sonhos me restam além dos pesadelos de existir nessa calamidade sem
explicação e Lewis Carroll
reiterasse que: A melhor maneira de
explicar é fazer, e eu sem saber o quê no meio do passado, presente e futuro no feitiço do isolamento e a
queda inevitável.
DOIS: A QUEDA DO
LEPRECHAUM – Imagem: A queda (2017), do artista visual Di Nicácio, ao som da Sinfonia Popular (1956), de Radamés Gnatalli, com a Orquestra
Sinfônica da Universidade Estadual de Londrina diretta da Norton Morozowicz – Ali onde
o chão treme vez em quando e por que será, se a planície se encolhe e nada
acontece de visível, e o Leprechaum me diz se eu atirar a flecha na terra eu
acho outro mundo carregado de tesouros. Não levo a sério, nem poderia, mas o
Leprechaum insiste que se eu quiser achar uma botija bem grandona, é só atirar
uma flecha certeira dela entrar chão adentro e, ao puxá-la, abrirá uma fenda e
eu terei a surpresa de encontrar todas as riquezas do mundo. Depois de muito
insistir o Leprechaum, assim o fiz: peguei do badoque com flecha ajeitada,
mirei bem na ladeira do barro mole, fiz força e atirei. A barreira mexeu parece
que sentiu o golpe, abriu-se uma fenda que parecia outro mundo lá embaixo.
Guardei o segredo, mas o Leprechaun já sabia e logo começou a me atentar: Vai
aparecer um arco-íris e vá lá ao pé, tem um tesouro! E se descer pela fenda
terá toda riqueza do mundo. Quando foi embora, a Mãe Terra e o Pai Sol chegaram
e me disseram que devia casar e libertar as mulheres de um povo aprisionado na
escuridão. Ouvi tudo quieto, havia, sim, de obedecer. Tão logo findaram e foram
embora, surgiu um lindo arco-íris que emergiu da fenda aberta pela minha
flechada. Tentei me ajeitar e por ela desci. A certa altura, escorreguei e caí.
Foi quando ouvi do escritor estadunidense J.D. Salinger (1919-201): Esta queda
para a qual você está caminhando é um tipo especial de queda, um tipo horrível.
O homem que cai não consegue nem mesmo ouvir ou sentir o baque do seu corpo no
fundo. Apenas cai e cai. A coisa toda se explica aos homens que, num momento ou
outro de suas vidas procuram alguma coisa que seu próprio meio não lhes podia
proporcionar. Ou que pensavam que seu próprio meio não lhes poderia
proporcionar. Por isso, abandonam a busca. Abandonam a busca antes mesmo de
começá-la de verdade. Tá me entendendo? Sim, quase entenderia não fossem
duas coisas: o sumiço de quem dissera e as desconfianças do engodo em que me
metera, sabia lá o que havia de lá embaixo encontrar, ora.
TRÊS: A DANÇA DO ARCO-ÍRIS – Imagem: a arte da coreógrafa, dançarina e performer,
Leticia Sekito, diretora da Companhia Flutuante, ao som da
canção Somewhere Over the Rainbow (E.Y. Harburg / Harold
Arlen), witch violinist Anne Akiko Meyers and pianist Anton Nel, live in the Fraser
Performance Studio at WGBH in Boston (2013). – A queda e aquele lugar
desconhecido, meu corpo carregado de dores. Arrastei-me até um tronco e ali me
encostei para melhor tomar pé da situação. O lugar era bonito e, apesar de
ignota, me era aprazível. Depois de passar a vista por toda a extensão, deu
para perceber lá longe alguém que vinha. Sim, aquela presença incerta me animou
e, ao que parece, era uma mulher e dançava. Com dificuldade fui me levantado e
me mantive encostado até que ela se aproximasse. Qual não foi a minha surpresa:
era ela e ali estava, lindíndia, tão surpresa quanto eu. Convidou-me
usando d’As Leis ou da legislação e epinomis de Platão:
... enquanto
todos os outros animais carecem de qualquer senso de ordem ou desordem nos seus
movimentos que chamamos de ritmo e harmonia, a nós os próprios deuses, que se
prontificaram a ser nossos companheiros na dança, concederam a agradável
percepção do ritmo e da harmonia, por meio do que nos fazem nos mover e
conduzir nossos coros, de modo que nos ligamos mutuamente mediante canções e
danças; e o nome coro provém do júbilo que dele extraímos. Isso não era um convite, era
uma convocação. E mais: enquanto ela rodopiava apareceu-me repentinamente Sacher-Masoch: O amor não conhece virtude
ou mérito; ele ama, perdoa e tudo sofre, porque deve; nosso julgamento é inútil
para o amor; nem as preferências nem os defeitos que descobrimos provocam nossa
abnegação nem nos fazem recuar de medo. Tão
logo terminou de dizer, sumiu. E eu me deleitei com a dança do arco-íris
naquela mulher paradisíaca. Até mais ver.
A ARTE DE BETA
FERRALK
A arte
da artista visual Beta Ferralk. Veja mais aqui e aqui.