segunda-feira, janeiro 25, 2021

ORHAN PAMUK, PEPETELA, ROBERT BURNS, SÉRGIO FERRAZ, MARTA ROCA & EVGENIYA ABRAMOVA

 

 

TRÍPTICO DQC: SENTIDOS DO SER & OS MISTÉRIOS DO ESPELHO - Ao som do concerto ao vivo do violonista e compositor Yamandú Costa, em Boulder, Colorado (2016). – De manhazinha me achava pronto para ganhar o mundo, protagonista de um filme em cartaz tantas vezes visto e revisto e veja só o que me aconteceu. Sabe aquele dia em que tudo pode acontecer e dá-se assim mesmo, de levar um bocado de tempo pensando como é que não tomei a iniciativa certa, evitando o desagradável e ficado na cama com a sensação de ter perdido o que podia ser a chance de ouro e dali em diante tudo seria diferente, né não? Poderia, suponho: encontrar uma cartela de prêmio extraviada e ficar rico de uma hora para outra, ou cair num buraco de sair pelos esgotos me relando de quase morrer no Japão, qual. Ou dar de cara com uma sensual ET tarada que zarpasse comigo para galáxias distantes dessa loucura toda ou ficar quieto na parada da condução, encostado num poste e dois carros se chocarem no cruzamento e um deles me alcançar desavisado estendido lá longe entre a vida ou a morte, foi assim mesmo. Ou aparecer ressurreto Jesus aos brados contra os equívocos cristãos, insistindo em negar ter sido mais de três vezes: não sou, nunca fui, nem serei; ou ser levado pela desobediência civil de uma turba desvalida de squatters e okupas com máscara do Fawkes e palavras de ordem da memória ceciliana do Lima Barreto e das notas de Chomsky, contra a gentrificação e o desperdício descartável do consumo desenfreado, e a favor do amor livre, nenhum governo e coisa tal! Ou sei lá mais o quê, afinal, ou se mete pro que der e vier, ou deixa correr que não estou nessa de sair à toa. Dúvida cruel, devires. Quantas: faço ou não; desfaço ou deixo ao deus dará. Encruzilhadas, vórtices. Uma hora tem que desenganchar e tem que ir ou se mandar sem saber qual a da vez, assim: ou se mete de cara para ver no que vai dar, ou fica chocando à espera do que jamais advirá, ou. Opto sempre pela iniciativa e lá vou eu. Enfim, desci a ladeira no meio da nublada quietude: será que estão todos ainda dormindo e nem sei que horas são, ou todos fugiram e me deixaram sozinho, sei lá. Um pé de gente para dar bom dia, não havia. Um passo pra frente e as coisas ficando para trás e vice-versa. Mal cheguei à esquina, era como se via satélite fosse o tráfego de tudo, tráfico de sonhos e desejos. Aos borbotões os que vão e os que seguem pelo lado oposto, cada um se valendo do que há no bolso, compromisso ou passeio. Seguia acenando a quem avistasse reconhecido, que eram pouquíssimos ou ninguém, pensei que era. Nessa andança deu para notar que além de ser uma paisagem desbotada ou invisível, sou também indesejável ou ignorado, ô gente hostil para lá e para cá; sigo, então, acolá. O que presencio não é lá muito diferente de uma guerra como se ao redor fosse só desmoronamento, sofreguidão. Se de um lado há quem olhe pro chão e são muitos catando lá o que se possa imaginar; de outro, os de cara pra cima também em demasia, acho que à cata de algo que evidencie uma mudança repentina daqui e dacolá. Quase não distingo nada no meio da confusão que é a vida indo quando não voltando. Se há algo real só a escolha, ou sim ou não. Quase nem dá para ouvir no meio da algaravia o que reclamou Fernando Sabino: O diabo desta vida é que entre cem caminhos temos que escolher apenas um, e viver com a nostalgia dos outros noventa e nove. Quanto mais olvidar daquela do Neruda sobre escolhas e consequências, avalie. Poderia ter ficado em casa e me poupado disso. E para falar a verdade, nem saí e fiquei aqui inventando toda essa história para você. Vamos nessa.

 

 

DOIS: VOLTA DOÍDA AO PASSADO – Imagem: Andrei Bordeianu/Alamy Stock, ao som da Sonata para violín y piano em Sol menor, de Claude Debussy, com a violinista espanhola Marta Roca Alonso, no Salón de Honor, Centro Cultural Kirchner, Buenos Aires, 2017. – Voltei quase trinta anos depois e aqui estou na pele de Ka pela Neve (Companhia das Letras, 2006), do escritor turco e Prêmio Nobel de 2006, Orhan Pamuk. O retorno selara meu exílio. As ruas sujas pela fuligem do canavial e monturo de dejetos serviam para as ondas de gente num mar revolto. As calçadas estavam tomadas por mendigos, feirantes e sulanqueiros, gritaria de ambulantes e volantes sonoras, pastores irados, liquidações e ofertas, santinhos e flâmulas, noticiários e tragédias, vexames e filas. Quase não era a mesma, não fosse a providencial reconstrução após a trágica enchente de poucos anos atrás, tornando as casas com aparência de banheiros sanitários hoteleiros ou sarcófagos suntuosos que, para os moradores, significavam a última moda da arquitetura. Quase não reconheço mais ninguém; parente algum e muitos do convívio sepultados, outros escaparam e pouquíssimos resistiam naquele ar viciado de gente que nunca vi mais gordo e eu estrangeiro em meu próprio chão. É tempo de eleições e pandemia, as pessoas tristalegres se aglomeram no comércio, praças e eventos diuturnos, indiferentes à tragédia. Foi decepcionante vê-los de passagem como incólumes sonâmbulos erguendo bandeiras religiosas tão torpes e ideias políticas totalitárias, como se não vivesse o presente e o tempo regredisse para as trevas de cinco décadas atrás: ... sentiu o mesmo tipo de culpa e vergonha que sentia quando jovem, ao sair de reuniões políticas. Aquelas reuniões políticas o perturbavam não apenas porque ele era um rapaz de alta classe média, mas também porque as discussões eram cheias de atitudes infantis e exageros. Pessoas como eu só encontram a paz quando estão lutando por uma causa. Os jovens agora contaminados pela sofrência brega e o rebolado da funkada, pareciam suicidas como portadores da boa nova tão antiga e da mudança retrógrada, quando, na verdade, refaziam os horrores do passado para o pior. Diante de tudo isso havia em mim nesse reencontro aquele sentimento de Pepetela: A dor muito prolongada faz-nos cruéis e indiferentes à crueldade, o que é ainda pior. Num Universo de sim ou não, branco ou negro, eu represento o talvez. Talvez é não, para quem quer ouvir sim e significa sim para quem espera ouvir não. O que importa é mudar a ovalidade do mundo sem dele fugir. Esta cidade não mais reconhecida, não poderia ser aquela que tanto amei e em que vivi superando adversidades e correndo atrás do tempo perdido. Era outra, tão estranha quanto cosmopolita e desenganada.

 


TRÊS: QUINTESSÊNCIA – Imagem: da artista russa Evgeniya Abramova, ao som da Cello Sonata in C major, Op. 119, de Prokofiev, na interpretação do pianista Victor Asuncion e do violoncelista Brannon Cho, no Queen Elisabeth International Cello Competition (2017) – A cena é ela, à meia luz, não sei qual seria o seu papel naquela hora. Sempre dela e as outras tantas que povoam nela em meu ser asfixiado pela solidão. A minha salvação é ela Ïpek, aquela da minha paixão perdida e que será aquela que me alimenta de venturas e prazeres, de loucura inusitada, de transcendências e voragens. Ela chega silenciosa na cadência dos seus passos e me abraça como se o amanhã não mais existisse e só nos restava uma última hora e nada mais. Beijou-me com a urgência dos desencontrados e rolamos todos os pisos e tetos, e nos desnudamos de todas as vésperas e impedimentos, e nos fizemos inteiros maiores que a imensidão. Assim ela em mim e eu nela, tudo o que quisermos na inexistência dos limites. E só há o que de mim pra ela e dela pra mim, o acasalamento perfeito e divino. Depois do amor, abraçados no meio do silêncio. E inescrupulosamente desejei seu semblante fresco e toquei seus lábios no Jogo da Amarelinha de Cortázar, aproveitando cada detalhe de sua majestosa candura. Ouvi-la sussurrar Balzac: Ah, o amor é um mistério, que só tem vida no fundo dos corações... e abri bem os olhos e ela era Ana de Robert Burns: Ai, vinho que ontem bebi / Escondido numa choupana,/ quando em meu peito senti / os negros cabelos de Ana! / O judeu já no deserto / que bebia o que Deus mana / não sabia o mel oferto / nos lábios ardentes de Ana! / Reis, tomai o Leste e o Oeste, / desde o Indo até o Savana, / mas dai ao corpo que as veste / as formas trementes de Ana! / Encantos desdenharei / de imperatriz ou sultana / pelo prazer que darei / e tomarei só com Ana. / Vai-te, faustoso deus diurno! / Vai-te, pálida Diana! / Suma-se o claror noturno, / quando eu me encontro com Ana! / Venha a noite em negro manto! / Sol, Lua, Estrelas, deixai-nos! / Só com, penas de anjo o encanto / direi dos gozos com Ana. Quem dera a vida fosse somente nela. Até mais ver.

 

A MÚSICA DE SÉRGIO FERRAZ



Há um vasto caminho pela frente. A criação musical é como um oceano sem fim. Quanto mais mergulho nele, sinto que ainda posso ir mais fundo. Quero também estreitar relações com músicos do sul do Brasil, fazer novas parcerias, novos grupos. Estou a toda hora tendo ideias, espero ter tempo para por isso tudo em prática.

A arte do violinista, violonista, guitarrista e compositor Sérgio Ferraz, que é bacharel em música pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e iniciou seus estudos desde cedo Conservatório Pernambucano de Música, por volta dos anos 1980. Integrou os grupos Alma em Água, Sonoris Fábrica e Quarteto Romançal. Lançou os álbuns: Segundo romançário (2010), em parceria com Antonio Madureira; Sonoris Fábrica (2011), Dançando aos pés de Shiva (2012), A sublime ciência e o soberano segredo (2013), Concerto armorial (2014) e Flutuando sobre as ondas (2015). Veja mais aqui, aqui e aqui.