TRÍPTICO DQC: UMA VEZ E SEMPRE, PAISAGENS DO
SILÊNCIO – Ao som de Te Deum, do compositor João de Deus de Castro Lobo (1794-1832), com a Orquestra de Câmara e Coral
Pró-Música de Juiz de Fora sob a regência de Nelson Nilo Hack – Meu
coração é Fátima desde menino e ela caçula nas presepadas da gente – Eu&Maikim&Marcelo os danados do
último quarto que só paravam de trelar com os bregues de Sônia&Deínha,
porque Carma ria & Pai Lula mangava. Quando não era Beco contando histórias
do outro mundo e ela corria menina para nossa risadagem e crescia moça feita
pra brincar com Genésio-a-mulher-do-vizinho e foi um tempo tão bom de nunca
mais voltar. Ela aprendeu o Tempo de amar pelos Madrigais e outras
das vozes de Marquinhos, até o Porto Solidão que a gente quase chorou Sob o céu de Palmares. Hoje esse dia
nublado do ano da graça de já nem sei quanto, revejo a entrevista e arte porque
Heitor & Pablo cresceram tanto de se agigantarem e não sobrou quase nada do
que éramos para conversar com Paulo e ficarmos só da lembrança de retratos e
risos, enquanto releio os originais de Relicário das lembranças, com as poéticas
de amor da alma de poeta com a gente da minha terra nas noites ensolaradas. Quase
ouço Antonio Callado: Quando Deus nos encaminha àquilo que temos
capacidade de amar com maior verdade, está nos encaminhando a ele próprio. Sem
dúvida Ovídio: Não é a arte que faz vogar os barcos rápidos com o auxílio da
vela e do remo? Que guia na carreira os carros ligeiros? A arte também deve
governar o amor… Não abandona em meio caminho tua amante, desfraldando sozinho
tuas velas. É lado a lado que se arriba ao porto, quando soa a hora da volúpia
plena e, vencidos a um só tempo, jazem a mulher e o homem lado a lado. Foge ao
medo que apressa, à obra furtiva. E de lá distante Sêneca: Nisto erramos: em ver
a morte à nossa frente, como um acontecimento futuro, enquanto grande parte
dela já ficou para trás. Cada hora do nosso passado pertence à morte. De resto,
Kant: Se vale a pena viver e se a morte faz parte da vida, então, morrer
também vale a pena... Hoje sou Fátima no
coração mais do que nunca e é dela o que fomos para o que seremos no amanhã de
nem saber.
DOIS: CEGO SEM
GUIA & A DOIDA DA HORA – Imagem: Nude Bathing Venus Statue, do escultor francês Christophe-Gabriel
Allegrain (1710-1795), ao som do Cello Concerto, de Dvořák, com a
violoncelista britânica Jacqueline du Pré & a London Symphony
Orchestra, regência de Daniel Barenboim. – Quem vem lá? Era Zé cego às voltas
com Sadoida da beira do rio que corria aos ventos, saia solta na cabeça,
segurando uma enfieira de caranguejos. Essa doida é minha sina! E lá ia ela
pisando na palha da cana e por cima dos pés da macaxeira, Ô doida aluada boa! Ah,
se eu visse! E remexia nos flandres de lata a deitar no chão para sentir as
pisadas dos pés das moças cheirosas, virada de copo do vinho de jurubeba do
mundo rodar e ele: Vem cá, minha nega. E mais se ajeitava para ela, chega
enchia a tripa gaiteira e tome póin, póin, a cair na punheta resmungando: Vem
cá, minha linda, vem cá! Tome uma garapa, mô fio, pressas coisas passar! Ah,
destá, tu me paga, desgraçada, vou botar no teu toba de tu chega gritar, ah, se
vou, sou bagaço de gente, mas sei fazer direitinho, visse? Bastava ela passar
da feira com perdas e ganhos de cada tolda a pedir quero disso e daquilo e
ninguém dava trela, só Zé Cego que dizia: Vem cá, Sadoida, vem cá que te dou
tudo, mulher! E ela respirava fundo, prendia o fôlego e falava fanhosa: Tu vai
me dar o que, hem? Vem cá que te dou de tudo no frevo, levo pro maracatu, a
gente cai no xaxado, casa, comida e roupa lavada! Eu, hem, vai só me enrolar!
Vou não, sua catraia, vem cá, segura o baião que eu quero foder você todinha, quenga!
E ela se ria e chegava pra perto ralando coco para fazer beiju: Eu quero beiju
e beijar tu, mulher! E mais ria com um caldo de cana: Toma! Ô coisa boa! E ele
puxava enquanto ela espremia nas coxas desnudas o milho para as pamonhas e
canjicas do seu paladar, com os guardados tudo de fora: Deixa eu ver? Mas você
é cego, ora! Vejo só em pegar. E pegava mãos buliçosas, enquanto ela oferecia
um refresco de limão: Beba aqui! E ele deitava entre as pernas dela e sorvia o
caldo que escorria do rego dos peitos pelo umbigo até o encontro dos lábios
dele no sexo dela feito uma bica estrepitosa de ais e uis a fazer cosquinha no
pinguelo dela de chega quase ter um piripaque de se tremer toda com o bico dos
peitos empinados e toda arrepiada na pele fresca: Chega pra cá, minha doçura! E ele
largava a viola e se esfregava nela que revirava os olhos, pegando no bico da
chaleira e cheia de choques de quase clarear tudo, arriada na vara dele a bulir
feito quem vai trotando pra cima e pra baixo, Ai, meu Jesus! E ele a usá-la na
faca cega, gemedeira boa: Chupa o melaço do meu pau, vai! E ela chilepte com
cada beiçada dele quase sumir de vez, era uma pisa de linguada dele gritar
alto, era cada bocada dele chega se esvair inteirinho: É disso que eu gosto! E
ela: Eu também, eita chambrego bom! E era cada peiada dela apitar mais que
usina na safra, cada tacada como quem passa ferro e manda ver nas dentadas, era
cada empurrada dela ficar doidinha demais da conta e a pedir mais e tome lapada
de cabo a rabo, u-hu! Vira cá esse pé de rabo que eu quero fazer uma feira boa,
vai! E ali os dois se engalfinhavam e findavam estirados no terreiro a passar
pelos dias sem nem saber que dia era e o fim do mundo a cada instante: Não
peida, homem, que isso é feio, piada de mau gosto! E ele se ouriçava de
deixá-la pingando nas partes de baixo e mais que elevada à vigésima potência:
Sou lá arraia-miúda, vou lhe estrompar, cachorra da moléstia! Ai como é bom!
Não vá emprenhar, sua besta! E depois ficavam por ali como quem não quer nada,
um à cata um do outro, até o dia que ele desconfiou: ela deixava os guenzos lamber suas intimidades afogueadas chega gemia sem
conta e ele ouvi-la dengosa: O que é isso? O cão rosnou e quase mordeu sua mão:
Isso é traição. Que é que é isso, velho? Sou mais tua não! Pouco importa! E ela
se foi. Ele ficou triste feito no poema de Alexander Pushkin: Amar? Para quê? Por um tempo, não vale a
pena. E, para sempre, é impossível. Abatumado,
saiu de perto e foi para longe, tudo ficou tão quase, ela tornou-se de pedra no
seu coração: Salve a vida que ao pó voltaremos.
TRÊS: LÍRICAS DA BELLE EPOQUE – Imagem: cena da atriz espanhola Ariadna Gil na
comédia dramática Belle Epoque (1993), do
cineasta Fernando Trueba, ao som de
Johnny Smith Plays (1955), do compositor estadunidense Jimmy Van Heusen (1913-1990) – Vinte palavras trocadas e uma
noite, digo uma vez e sempre, ela de farda, bigode desenhado sobre os lábios,
quepe de ordens a me fazer vestes de mulher ao seu mando. Lá estava eu saia
longa, blusa de rendas, salto alto e um bote à deriva do seu querer. Puxa-me
pela mão e me leva pra dança: um tango e todos os olhos inquiridores no salão. Ela
abusava mandona e pisava meus pés, sou-lhe mais que servil, tímido e contido,
faço suas vontades. Leva-me pra rua e me quer só seu, indignada com o beijo de
uma das quatro filhas charmosas do fazendeiro, e ela a quem me tem por anarquista
desertor espanhol na terra solitária, o desafio era ali dela porque amo a viúva
Clara, a sonhadora Rocio, a ingênua caçula Luz e ela, a lésbica Violeta... Não
pode, Fernando! Pode. Art nouveau e
saias, o êxodo rural e o divertimento dos cabarés, o telefone e o telégrafo sem
fio, a bicicleta e o cinema, o avião e o automóvel, os cafés-concertos e as
óperas, e aos sonhos daquela noite ela me leva pra fora, ganhamos às ruas e ela
me oprime com um beijo ao pé da escada: Suba! E lá vamos para o sótão repleto
de feno, ela me empurra, caio deitado no feno e desabotoa o blusão expondo a
blusa negra por baixo, arreia as calças e monta sobre meu sexo catado entre
suas mãos e cavalga, corpo a corpo e a outra metade que sou todo dela, e se
serve de mim, apossada, imperiosa, me obriga deitado a servi-lhe de refém e vou
mãos aos seios, blusa levantada, seminua e goza feliz para recitar Tempo de vida do poeta espanhol Dámaso
Alonso (1898-1990): Peguei
em minhas mãos / um punhado de terra. / O vento da terra estava soprando. / A
terra voltou à terra. / Você me segura em suas mãos, eu / sou a terra. / O
vento sopra / seus dedos, há séculos. / E o pequeno punhado de areia / - grão
por grão, grão por grão - / o grande vento o leva embora. E lhe
respondo com Cais do poeta
cabo-verdiano Manuel Lopes
(1907-2005): Nunca parti deste cais / e
tenho o mundo na mão! / Para mim nunca é demais / responder sim / cinquenta
vezes a cada não. / Por cada barco que me negou / cinquenta partem por mim / e
o mar é plano e o céu azul sempre que vou! / Mundo pequeno para quem ficou...
E mais me beijou e mais se satisfez, digo uma vez e sempre: é ela na noite que
sou o dia que é dela. Até mais vez.
OLARIA OCRE & MESTRE BAIXINHA
O livro Olaria Ocre (Independente, 2008), de Joelson
Gomes, Manoel Dantas Suassuna e Roberta Guimarães, artistas que ocuparam a
Olaria do Baixinha, de Tracunhaem, e fundiram suas obras em um único objeto
gráfico encadernado, condensando imagens e informações produzidas durante a estadia.
A obra foi elaborada por uma equipe editorial, conduzida pelo designer Carlós
Amorim, com a apresentação do material produzido pelos artistas e pela
fotógrafa, em formato de livro, e texto de Luzilá Gonçalves, além das análises
dos críticos de arte estrangeiros Mónica Carballas e Kevin Power. Veja mais
aqui e aqui.