TRÍPTICO DQC: JANELANDANTE, RESQUÍCIO DE
MEMÓRIAS – Ao som da Phantasy Quartet - Phantasy for Oboe, Violin, Viola and Violoncello,
Op. 2 (1932), do
compositor, maestro, pianista e violista britânico Benjamin Britten
(1913-1976), na interpretação de Gernot Schmalfuß & Mannheimer
Streichquartett - O Tico – Tiquinho pros íntimos, Sócrates de batismo - tinha
um sonho de menino: farda, quepe e desfile na defesa da pátria e nos passos do
irmão mais velho, patenteado da repressão nos idos do golpe de sessenta. Não
deu, reprovação de batoré entroncado, virou maquinista de plantão. Amargou
desilusão e, no meio do chororô, topou com Xanta – Xantipa de família -, numa estação
perdida dessa. Pegou no bico da chaleira fervendo e atrepou-se no gogó da
escorreita morenaça, mais espalhafatosa que endoidada, num namoro pras beiras
esponsais: É com essa que me ajeito, ora! Juras e papel passado, lá ia ele
montado no parque de diversão e embuchando a fogosa, de findar uma fileira de
bruguelos. Com o passar do tempo, o que era mar de rosa, foi desbotando e ele
se viu no caminho da casa da peste! Pronto, no meio desmantelo: Se essa mulher
bebesse o mundo estava frito. Pra sorte dele era uma rainha abstêmia, porém
escandalosa arrastadora de uma tuia de bichanos e guenzos, uns trinta, se
pouco, de organizar os miados e latidos – inclusive de botar nos trilhos a beca
folgada dele, também -, isso afora os buás vinte e quatro horas por dia: Isso é
o inferno ao vivo e em cores, lasquei-me! Pois foi, regulou a paciência
enquanto tudo procriava e tudo crescia na lei do matriarcado. Ele era só
mutismo e olhares dum canto a outro: os bregues gasguitos pra manter casa
arrumada, nada de mexer, tudo no lugar. De uma hora para outra acabaram com as
ferrovias e ele sem serventia alguma: Fazer o quê? Era do batente para casa e
vice-versa, agora só tinha uma horinha de folga que fosse pro interlocutor, seu
único amigo: o livro. E ouviu de John Steinbeck: E agora que você não
precisa ser perfeito, você pode ser bom. Já de Thomas Carlyle: Com estupidez
e boa digestão o homem pode enfrentar muita coisa. Tolerância é paciência
concentrada. Do poeta romano Aulo
Pérsio Flaco (32-61): Do nada, nada
vem; e ao nada, nada pode reverter. Até Rainer Maria Rilke: Amor são
duas solidões protegendo-se uma à outra. Ser amado é passado; amar é durar.
Aí, noite dessa, chegando em casa ela encarou na lata: Você não serve para
nada! Eu? Sim, seu traste! O mundo caiu e não aguentou o baque: teve um
piripaque e bateu as botas. Ainda deu pra vê-lo a voar aliviado com a maior cara
de anjo!
ITINERÁRIO DE
SONHOS – Imagem: arte da artista visual búlgara Slava Bowman, ao som de Close
to Home, do pianista
e compositor estadunidense Lyle Mays (1953-2020). – Logicalguma: pés
alados nos galhos do arvoredo perseguem aves canoras. O mundo é dos pardais e
nada mais. Sinto que estou quase vivo, quase morto, a vida pelas sobras do que
restou da precariedade, sem escapatória, de alfa para ômega, todas embaralhadas
no Aleph: o topo da montanha e o abismo, a rotina e o xeque-mate, o paradoxo...
A água pegando fogo, a Terra caindo, o céu descendo, a Natureza se esvaindo e o
miserável saiu e ficou com a botija trilionária, graças! Um pedinte a menos. O
rico ficou e saiu empobrecido pela sovinice, um pobretão a mais entre zilhões.
Do outro lado da ribanceira arrivistas falocratas sobre monturos de rancores,
ameaças e promessas; e a vulgaridade nauseante, a crueldade da violência, a
eloquência do noticiário, quanto absurdo! Na verdade, horrores demais. Ouvi o
escritor francês Pierre Michon: A pesada aventura de crescimento terminou, ficamos
surpresos que não era eterna... As coisas do passado são tão estonteantes como o espaço
e a sua impressão na memória é deficiente como as palavras: (apesar
disso) descobri que se lembra. Só queria esquecer e não saber mais nada. Desolado no meu canto, ela
chega Hannah Arendt: Vivemos
tempos sombrios, onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores perderam
a esperança. Vamos...
FIO DA VIDA – Imagem: a arte da performática artista visual polonesa Zofia
Kulik,
ao som Humoresque, Op .20, de Robert Schumann, na interpretação da pianista russa Daria Rabotkina. – O quarto escuro, a cena era ela, nua e linda, sob o
holofote imaginário: Sou Dulce, Dulce Maia (1937-2017): Muitos deles vinham assistir para aprender a torturar. E lá estava eu,
uma mulher franzina no meio daqueles homens alucinados, que quase babavam.
Hoje, eu ainda vejo a cara dessas pessoas, são lembranças muito fortes. Eu vejo
a cara do estuprador. Era uma cara redonda. Era um homem gordo, que me dava
choques na vagina e dizia: ‘Você vai parir eletricidade’. Depois disso, me
estuprou ali mesmo. Levei muitos murros, pontapés, passei por um corredor
polonês. Fiquei um tempão amarrada num banco, com a cabeça solta e levando
choques nos dedos dos pés e das mãos. Para aumentar a carga dos choques, eles
usavam uma televisão, mudando de canal, ‘telefone’, velas acesas, agulhas e
pingos de água no nariz, que é o único trauma que permaneceu até hoje. Em todas
as vezes em que eu era pendurada, eu ficava nua, amarrada pelos pés, de cabeça
para baixo, enquanto davam choques na minha vagina, boca, língua, olhos,
narinas. Tinha um bastão com dois pontinhos que eles punham muito nos seios. E
jogavam água para o choque ficar mais forte, além de muita porrada. O estupro
foi nos primeiros dias, o que foi terrível para mim. Eu tinha de lutar muito
para continuar resistindo. Felizmente, eu consegui. Só que eu não perco a
imagem do homem. É uma cena ainda muito presente. Depois do estupro, houve uma
pequena trégua, porque eu estava desfalecida. Eles tinham aplicado uma injeção
de pentotal, que chamavam de ‘soro da verdade’, e eu estava muito zonza. Eles
tiveram muito ódio de mim porque diziam que eu era macho de aguentar. Perguntavam
quem era meu professor de ioga, porque, como eu estava aguentando muito a
tortura, na cabeça deles eu devia fazer ioga. Me tratavam de ‘puta’,
‘ordinária’. Me tratavam como uma pessoa completamente desumana. Eu também os
enfrentei muito. Com certa tranquilidade, eu dizia que eles eram seres
anormais, que faziam parte de uma engrenagem podre. Eu me sentia fortalecida
com isso, me achava com a moral mais alta... Sou entre aquelas que
são filhas de outras filhas da dor. E quase num folego só recitou
Conformismo da poeta educadora Maria de Arruda Müller (1898-2003): Ensinar
a viver, eis minha sina! / No trabalho mostrar que “trabalho é oração”. / No
lar, na escola, na oficina... / Ai! Quantas vezes, sangrando o coração! / Qual
Cirineu, meu dever é servir! / Aliviar a cruz, que o próximo carrega, / Lenir
dores tantas, tantas súplicas ouvir, / Que de dor, o próprio peito verga! / Contra
o destino, às vezes me revolto: / Sentir que a carga pesa, em demasia!... / Sei,
porém, que a alma no pecado envolta, / Necessita aceitar, dobrar-se ao jugo; / Se
no erro, no mal, no crime comprazia / Precisa ser réu, quem foi verdugo... E chorou ao meu ombro e me disse Omar Khayyam: Seja feliz neste momento. Este momento é a
sua vida! E nos abraçamos como se ali escapássemos dos horrores do
mundo. Até mais ver.
A ARTE DE ORIANA DUARTE
A arte da artista visual Oriana Duarte, que é doutora e mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), é bacharel em Desenho Industrial pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professora do Departamento de Design da UFPE. Veja mais aqui e aqui.