TRÍPTICO DQC: MEMORIMAGINAÇÃO
- Ao som de Beira rio, do percussionista e
compositor Caito Marcondes, integrante da Orquestra Popular de Cordas. –
Coisuma o que penso e imagino, indistinguíveis. São quase uma coisa só de tão
desordenadas. Lá fora tudo na mesma, difícil respirar e nenhuma opção: nem
adianta esperar o tempo passar e mudar. Fazer pouco caso não é a minha, não
consigo ficar indiferente à decadência flagrante, apesar do café frio, o vento
na janela: preciso muita ideia para entender direito. Do que penso e lembro, às
vezes reais e inexprimíveis: o que vivi e invento. De súbito, o escritor e
dramaturgo estadunidense William Saroyan (1908-1981): As
prisões e os cemitérios estão cheios de boas pessoas que não tiveram quem lhes
estendesse a mão em tempos de crise. Somos uma gente feliz, é verdade, mas
somos resistentes também. Não me importo de ficar triste. Importo-me a respeito
de gente que não é resistente e que fica triste e magoada, e me parece que o
mundo está cheio de gente assim. Ele olha
o relógio e me aponta distante o que não consigo ver. Reprova minha cegueira. Ao
sair cumprimenta do outro lado a escritora estadunidense Djuna Barnes (1892-1982) que me chegou: Um homem só é completo quando leva em conta
sua sombra e também a si mesmo - e o que é a sombra de um homem senão seu
espanto ereto? Eu gosto da minha experiência humana servida com um pouco de
silêncio e moderação. O silêncio faz a experiência ir mais longe e, quando
morre, confere-lhe aquela dignidade comum a algo que se tocou e não arrebatou. Dela nenhum
sorriso, mãos nas minhas e sigo seus passos, sei que a noite será longa.
HERLAND – Ao som de Lusco
fusco (Borandá, 2017), de Alessandro
Kramer Quarteto. - Despertei num lugar estranho e ela me olha com certa
estranheza e alguma hostilidade. Onde estou? Herland. Hum? Pelo tom da sua voz
este era um lugar que eu não deveria jamais estar. E me disse: Os únicos forasteiros que aqui estiveram juraram
manter segredo... Eu juro! E mandou-me segui-la. Lá fora durante o trajeto
olhares desconfiados de mulheres fortes e atléticas seguiam-me por onde fosse. Pude
ver que todas ali possuíam cabelos curtos, túnicas justas sobre calças e
parecem destemidas; elas se comunicam por espécie de esperanto, parece. Ao chegar
ao templo de Maaia, a deusa-mãe da maternidade, fui apresentado, não sei
se por sorte ou não, a Charlotte Perkins Gilman: Não existe mente feminina. O cérebro não é um órgão do sexo. Também falar de um fígado feminino. E mostrou-me Anita Malfati contando para outras mulheres a sua sensação de morte
ao perder o pai na infância: Nada
ainda me revelara o fundo da minha sensibilidade. Resolvi, então, me submeter a
uma estranha experiência: sofrer a sensação absorvente da morte... Um dia saí de casa, amarrei fortemente as
minhas tranças de menina, deitei-me debaixo dos dormentes e esperei o trem
passar por cima de mim. Foi uma coisa horrível, indescritível. O barulho
ensurdecedor, a deslocação de ar, a temperatura asfixiante deram-me uma
impressão de delírio e de loucura. E eu via cores, cores e cores
riscando o espaço, cores que eu desejaria fixar para sempre na retina
assombrada. Foi a revelação: voltei decidida a me dedicar à pintura. Ao me ver, ela sorriu e fui conduzido a um outro espaço onde estava a sempre
exuberante Maria Callas conversando com outras ao seu
redor: O amor é muito
melhor quando não se está casada. Alguns dizem que tenho
uma bela voz, outros dizem que não. É uma questão de opinião. Tudo o que posso dizer é
que aqueles que não gostam não deveriam vir me ouvir. Não me fale sobre regras,
querida. Onde quer que eu fique,
faço as malditas regras. Ela percebeu a minha satisfação
em vê-la, mas logo fui tocado que era hora de partir. Adiantei-me e disse: Eu
juro! A minha passagem por ali havia chegado ao final. Despediu-se, deu-me uma
edição atualizada do seu livro Herland
(Via Leitura, 2019) e me deixou partir sob juramento:
jamais contar. Não sei para onde, perdido de volta.
JANELA DO TEMPO - Imagem: a arte da multi-artista polaca Teresa
Tyszkiewicz (1953-2020), ao som de A window in time (Telarc, 1998), de Rachmaninoff. – Ela apareceu nua e linda: Tem dedo do tempo no
meio. No centro da cena, pigarreou, afinou a voz, respirou fundo e disse: Sou Luiza, Maria Luiza Flores da Cunha Bierrenbach!, e passou o texto: Ele me disse: ‘Se você sair viva daqui, o
que não vai acontecer, você pode me procurar no futuro. Eu sou o chefe, sou o
Jesus Cristo [codinome do delegado de polícia Dirceu Gravina]’. Ele falava isso
e virava a manivela para me dar choque. Ele também dizia: ‘Que militante de
direitos humanos coisa nenhuma, nada disso, vocês estão envolvidos’. E virava a
manivela. Havia umas ameaças assim: ‘Vamos prender todos os advogados de
direitos humanos, colocá-los num avião e soltar na Amazônia’. Nos outros
interrogatórios, eles perguntavam qual era a minha opção política, o que eu
pensava, quem pagava os meus honorários, quais eram os meus contatos no
exterior, o que eu pensava do comunismo. Para mim, ficou muito claro que eles
queriam atemorizar advogado de preso político. Havia uma mudança no tom das
equipes. Eram três, e ia piorando. Durante o interrogatório da segunda equipe,
eu levei uma bofetada de um e o outro me segurou: ‘Está bravinha porque levou
uma bofetada?’. E os homens da terceira equipe diziam: ‘Saia disso, onde já se
viu defender esses caras, gente perigosíssima, não se meta nisso!’. Eu estava
formada havia menos de um ano, e trabalhava desde o segundo ano no escritório
do advogado José Carlos Dias, defendendo presos políticos. Essa era a forma que
eu tinha de resistir à ditadura militar, foi minha opção de participação na
resistência. Eu fui presa sem nenhuma acusação, fiquei três dias lá sem saber
porque estava presa. No terceiro ou quarto dia, eu descobri o motivo: teriam
achado num ‘aparelho’ um manuscrito do Carlos Eduardo Pires Fleury, que tinha
sido banido do país e que foi meu colega e cliente no escritório. Eu não fui
das mais torturadas. Levei choque uma manhã inteira, acho que para saber se eu
tinha algum envolvimento com alguma organização clandestina e para que os advogados soubessem que não era fácil
para quem militava. E chorava muito soluçando: Sou a filha de outras filhas da dor. Inconsolável, aproximei-me e demonstrei meu apoio ao lembrar de uma
frase do escritor e antropólogo peruano José
María Arguedas (1911-1969), ao seu ouvido com um abraço terno: A luta é um bem, o maior bem que foi concedido ao homem,
mas enquanto a luta não for irremediavelmente estéril ou inútil, porque então
não é mais uma luta, é o Inferno. Ainda chorosa respondeu-me com Edmond Rostand: O que é a vida sem um sonho. Todas as nossas almas estão escritas nos
nossos olhos. E abraçados permanecemos por longo tempo até darmos conta de
nosso prazer inenarrável. Até mais ver.
A ARTE DE AURORA DICKIE
Eu amo o meu trabalho e o trabalho que é feito na companhia em Berlim.
Dançamos do clássico ao contemporâneo, sempre acompanhados de orquestra ao vivo
e com o teatro lotado. Também já fiz turnê para a Espanha e Itália com a
companhia nesses últimos dois anos. Berlim é uma cidade energética que
transpira arte em todos os cantos e essa atmosfera me anima e inspira para
continuar crescendo como bailarina e pessoa.
A arte
da bailarina Aurora Dickie, que hoje é solista do Ballet
Estatal de Berlim, na Alemanha. A sua primeira experiência foi na Cisne Negro
Cia. de Dança, em 2006, sendo depois contratada pela Companhia Danças
de São José dos Campos, no interior de São Paulo. Veja mais aqui & aqui.