TRÍPTICO DQC: JANELINVENÇÃO, O SEGREDO DOS
SONHOS - Ao som de Un dia de noviembre, de Leo Brouwer.
– Vitalina trouxe da infância todos os medos: de papafigo a
bicho-papão, da perna-cabeluda aos monstros embaixo da cama, sacis, gnomos e
duendes. Isso afora a mãe: Não faça isso que o bicho vai lhe pegar! O pai: a La
Ursa vai lhe levar, maluvida! Avós, parentes e aderentes: Deus vai lhe castigar
sua traquina! Daí cresceu com medo de tudo: de altura, de ficar sozinha, de
escuridão, de espelhos, de fechar o olho ao tomar banho, de trovões e
relâmpagos, de neblinas ou sombras e réstias; de fantasmas e de carecas; de
baratas e outros tantos insetos e besouros; de ventríloquos e manequins, de
bonecos feios, de palhaços, de atravessar pontes, de pensar e ficar doida, de
pecar e ficar mal falada, de ter sonhos ruins, de mergulhar em rio ou mar e ser
devorada por um tubarão ou jacaré; de quem já morreu, das estrelas caírem do
céu, da Terra despencar no abismo, de todo tipo de doença, de ser enterrada
viva, de perder a virgindade e uma mania de perseguição de que seria estuprada
pela ruindade de um velho estranho ou um maconheiro safado e desalmado, enfim,
tinha pânico de qualquer coisa que não estivesse na sua zona de conforto. Para
se precaver, tinha remédio para tudo: comprimido pra isso, cachete praquilo,
drágeas praquiloutro, batesse a ansiedade ou depressão, qualquer mal-estar e já
se automedicava, batendo o punho fechado três vezes na madeira e se benzendo
mais de dez vezes com rezas de Pai-nosso, Creio-em-Deus-Pai e Ave-Maria. Era peculiar
uma tremedeira de gasguita, mas a qualquer alerta de cuidado, ela: Ué, sou prevenida
e saudável, oxente! E a parentalha, pelas costas, só nos cochichos: Coitado do Tomé! Nada, é outro esquisitão, Deus
fez, o diabo ajuntou. Quem a visse dava logo por uma desequilibrada. Há quem
dissesse que era uma quejuda porque a castidade encruou no quengo e deixou-la uma
mal-amada sujeita a paroxismos inusitados. Dizem: Inda bem que casou, imagino e
desmantelo de um casal tão temperante, avalie. Com o converseiro, dei as costas
e voltei para a janela. Lá estava Clarice Lispector em riste: O que
uma pessoa diz a outra? Fora 'como vai?' Se desse a loucura da franqueza, que
diriam as pessoas às outras? A loucura é vizinha da mais cruel sensatez. Engulo
a loucura porque ela me alucina calmamente. Não tenha medo de meu silêncio...
Sou uma louca mas guiada dentro de mim por uma espécie de grande sábio. Quero
que tudo seja intenso, exagerado e louco. Porque só assim fico satisfeita! Dar
a cara à tapa! Ser louca, estranha, chata! Eu sou assim. Ah, Clarice, sempre duvidei da minha sanidade mental,
principalmente agora, diante dos seus olhos.
TARTARUGAS,
CREPÚSCULO E CORTINA – Ao som de Cantora de Yala, do
álbum Junjo (2006), da contrabaixista
e cantora estadunidense Esperanza Spalding. - Ela me levou para um teatro imenso. Era a minha primeira
vez naquele local e muitas pessoas iam e viam, me cumprimentavam e eu a espera dela
que me deixou ali de mão abanando. Virei a atenção para o ensaio de Tórtolas, crepúsculo y ... telón (Escelicer, 1972) porque o
autor, o premiado dramaturgo espanhol, Francisco
Nieva (1924-2016), apareceu explicando aos atores e atrizes no palco e na
plateia: Sob o pretexto de manter uma quarentena, forçado pela
propagação de um desconhecido vírus, uma companhia de teatro é sequestrada no
próprio coliseu, onde tem que agir, sujeitá-lo - como ratos de laboratório -
para experimentos cruéis, cujo objetivo é revolucionar e renovar o mundo da
cena, até mesmo agindo e comportamento do público. Os incidentes que marcam
esta situação são numerosas e adquirem diferentes ou seja, até terminar em uma
espécie de festa, Dionisíaco e caótico, celebrando a próprio existência do
teatro. Depois ele
desceu do palco, cumprimentou alguns sentados na plateia e, em seguida, veio ao
meu encontro e me falou: O teatro é uma vida alucinante e intensa. Não é o mundo,
nem manifestação à luz do sol, nem comunicação a vozes da realidade prática. É
uma cerimônia ilegal um crime voluntário e impune. É alteração e disfarce:
Atores e público usam máscaras, maquiagens, eles usam fantasias diferentes...
ou eles vão nus. Ninguém se conhece, todos são diferentes, todos são "os
outros", todos são intérpretes do coven. O teatro é uma tentação sempre
renovada, canto, choro, arrependimento, complacência e martírio. É a grande
cerca orgiástica sem evasão; É o outro mundo, a outra vida o além de nossa
consciência. É remédio secreto feitiçaria, alquimia do espirito, fúria jubilosa
sem trégua. Fiquei admirado por
ter tido contato com o seu teatro, aquela que já foi denominado
tanto de furioso, como de farsa e calamidade, ou de crônica e selo. Ele me
sorriu e saiu.
TRÊS PARA AS SEIS
- Imagem: A arte da fotógrafa, modelo e artista canadense Petra Collins, ao som de Lacrimae, do compositor e alaudista
britânico John Dowland (1563-1626), na interpretação do premiado musicólogo,
professor, luthier e performer Christopher Morrongiello. -
Ela retornou e era Nelly Sachs: Uma porta é uma faca: ela divide o mundo em
duas partes. E me puxou
apressada para saída do teatro, descendo a escadaria e seguindo pela descida da
margem de um rio. Não é para irmos para lá? Não. E mais se aproximada das águas
no íngreme declive até à beira. Que rio é este? O seu. O Una? Sim. Nunca o vi
assim. E virou-se encarando-me e citando Jorge Semprún: Senti com a força do meu sangue que circulava rapidamente
que minha morte não roubaria esta árvore de sua beleza irradiante, apenas
roubaria o mundo de meu olhar. Olhei atrás de mim e havia sim uma árvore jamais vista.
Venha, quero amar você e ser batizada neste rio secular! Seguiu saltitante por entre
as pedras, e se despiu para mergulhar nas águas rasas. Vem! Ao sentir meu corpo
no seu, disse-me Pierre Louÿs: Ninguém ainda afirmou que possuir o que desejamos é
felicidade, ou prazer, ou bem-estar ou apenas equilíbrio. E beijou-me intensamente e me recitou Emily Dickinson: Tudo o
que sabemos do amor, é que o amor é tudo que existe. E esqueci
as dores do mundo. Ainda disse-me: O que você quer e o que você precisa: poesia
no seu dia-a-dia. E amamos à noite alagados de prazer.
Até mais ver.
A ARTE DE LÍVIA FALCÃO
A arte da atriz Lívia Falcão, que iniciou sua carreira no teatro e foi premiada como atriz revelação por sua atuação na peça A cantora careca, ainda adolescente, aos 17 anos de idade. Depois atuou em peças teatrais como Caetana, Mamãe Não Pode Saber, Lisbela e o Prisioneiro, e A Máquina, entre outros espetáculos. Em 1986 foi premiada com o monólogo Criadas da Glória, de João Falcão, no I Festival Nacional de Humor. Enveredou posteriormente pelo cinema atuando em vários longas-metragens e, também, pela televisão, atuando em novelas. Veja mais aqui e aqui.