MOER A ESCURIDÃO - Imagem:
arte do poeta, professor,
quadrinista, ilustrador e artista visual Marcelo
Coutinho. - Os olhos no escuro, a distância de nada
existir, acho, apenas a chuva, chiados na noite, o silêncio do resto. Em algum
lugar estava, não sei onde, apenas vivo, mais nada. Se havia desembarcado, não
havia ninguém, nem sei de onde vim, o que estou fazendo aqui, nem para onde
vou. Parecia-me um triz, espaço sem tempo, vórtice paralisado. Na verdade, se era
vida ou sonho, ignorava. Sei que um coração pulsava nalgum lugar, vivia-o, isso
sim. Não havia simetria, equilíbrio não há, nem podia, harmonizo o caos em mim,
noitedia, mortevida, amanhojontem. Era ermo, só restava o delírio de inventar o
inexistente com zis perguntas, e entre a vigília e a vertigem nenhuma resposta
na insônia do imponderável. Voo ao antes: à face da natureza coberta de trevas.
E ouço uma voz perdida, alguém me chama, viro-me e identifico apenas sua
silhueta diáfana. Duvido, talvez reinventando a mim mesmo. Giro e ao redor
assimilo alguém insinuando falar o incompreensível, como se palíndromos
repetidos e quase me levando a entender ser Raar e que sou Arra e não sei de
mim, ainda não sou, ou nunca deveria ter sido. Nem sei quem age e quem vê, uma
semente germinada, apenas, ou talvez eu-outro, outridade. Esfrego os olhos,
quase nada vejo, sinto. Percebo que gesticula mansa e suavemente, fala como um canto,
mantras do porvir, parecia, no encontro do incomunicável. Aos poucos sua presença
se torna mais nítida, os olhos vivos e ternos, as mãos espalmadas como um convite
ao calor do abraço na rosa cálida emergente do seu coração. Hesitantes, titubeamos
um pouco até o abraço que me envolveu inteiro. Abraçamos-nos novamente e o seu
sorriso amanheceu tudo ao redor. Mostrou-me a Terra escorrendo entre os dedos, o
Ar alisando nossas faces, a Água corrente lavando nossos pés, e o Fogo formando
um círculo com labaredas saudando o Sol. Estendeu-me uma das mãos sem que lhe
distinguisse a voz e deu-me um pergaminho, pareceu-me, à primeira vista, a
versão de Alcuíno do livro de Jasher. Passei as vistas e tentei indagar quantas
vezes havia acontecido e se repetira? Deu de ombros, pouco importa, nem sei se
entendeu o que eu disse. Alma e ser desnudos, recitava repetidamente: arra olo
raar, raar olo arra, arraraar. E no abraço, a vida. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja
mais aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a música do violonista, compositor e regente
da Orquestra de Cuba, Leo Brouwer: La obra guitarristica 1 e 3 & de Bach aos Beatles; da
compositora, cantora e pesquisadora da cultura indígena brasileira, Marlui Miranda: IHU Todos os sons, Fala de bicho, fala de gente & Rio
acima; & muito mais nos mais de 2 milhões de acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir.
PENSAMENTO DO DIA – Fui moço, hoje
estou velho! / Pois o tempo tudo muda! / Já fui um dos cantadores / chamado
Deus nos acuda... / Este que estão vendo aqui / foi Zé Duda do Zumbi! / Hoje
Zumbi do Zé Duda! Poema de sete pés do poeta popular segipano, Mestre
José Duda do Zumbi (José Galdino da
Silva Duda – 1866-1931).
VIDA
REAL & COISAS DE HOJE EM DIA - [...] O fato de tudo
isto não ter ainda exercido um efeito mais deplorável sobre a vida das pessoas
deve-se à capacidade que elas têm de viver em compartimentos estanques — e é
este um dos pontos que sublinho no meu ensaio - de manter uma separação entre a
vida do lar e a vida exterior, entre a vida ‘real’ e a vida no mundo das
diversões. ‘Faz-nos pensar noutras coisas’; ‘Distrai, é uma diversão’. Enquanto
se distraem com essas coisas, as pessoas podem identificar-se com elas; mas no fundo
sabem que não são coisas ‘reais’; a vida ‘real’ é outra coisa [...] Esta dieta regular, constante e quase exclusiva de sensacionalismo
incorpóreo contribui para que aqueles que a consomem se tornem incapazes de encarar
a vida de frente e de forma responsável, e ainda para despertar nos leitores a
sensação de que a vida não tem qualquer objetivo, para além da satisfação de
alguns apetites imediatos. Essas almas que não tiveram oportunidade para desabrochar
continuarão fechadas, viradas para dentro, olhando ‘com olhos vazios,
semelhantes a janelas escancaradas’ para um mundo que é em grande medida uma
fantasmagoria de espetáculos transitórios e de estímulos falsificados. O fato
de não ser essa hoje em dia a situação de todos os membros das classes
trabalhadoras, deve-se à capacidade de resistência que caracteriza o espírito humano;
resistência no sentido do reconhecimento de que há outras coisas que são importantes
e que contam, se bem que esse sentimento nem sempre seja consciente [...] Trechos
extraídos da obra As utilizações da
cultura: aspectos da vida da classe trabalhadora, com especiais referenciais a publicações
e divertimentos – Vol. 2 (Presença, 1973), do sociólogo e crítico literário
britânico Richard Hoggart
(1918-2014).
AS RUÍNAS CIRCULARES – [...] No
sonho do homem que sonhava, o sonhado despertou. [...]. Em geral, eram-lhe felizes os dias; ao
fechar os olhos pensava: Agora estarei com meu filho. Ou, mais raramente: O
filhe que gerei me espera e não existirá se eu não for. [...] Percebia com certa palidez os sons e formas
do universo: o filho ausente se nutria dessas diminuições de sua alma. O proposito
de sua vida fora atingido; o homem persistiu numa espécie de êxtase. [...] Temeu que seu filho meditasse nesse privilégio
anormal e descobrisse de alguma maneira sua condição de mero simulacro. Não ser
um homem, ser a projeção do sonho de outro homem, que humilhação incomparável,
que vertigem! A todo pai interessam os filhos que procriou (que permitiu) numa
simples confusão ou felicidade; é natural que o mago temesse pelo futuro
daquele filho, pensado estranha por estranha e traço por traço, em mil e umas
noites secretas. [...] Caminhou
contra as línguas de fogo. Estas não morderam sua carne, estas o acariciaram, e
o inundaram sem calor e sem combustão. Com alívio, com humilhação, com terror,
compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando. Trechos
de As ruinas circulares, extraído de Ficções (Globo, 1976), do escritor,
tradutor, crítico literário e ensaísta argentino Jorge Luis Borges
(1899-1986). Veja mais aqui.
ELE MOIA A ESCURIDÃO – [...] Arra
olo raar - arra. pron.
pess. da 1ª pessoa singular. 1. algo de
funcionamento intenso destinado a reter e reconduzir as várias retenções e
reconduções vindas de outros algos. 2. algo
que balbucia através de outro algo que também balbucia. 3. algo que é fruto de
uma matriz perdida, e que, por sua vez, será uma matriz perdida para outro
algo. [...] olo. prep. 1.
Partícula gramatical usada para pôr em movimento de devir palavras e outros
fragmentos da língua. Quando juntas a esta preposição, verbos, adjetivos,
pronomes, adverbios passam a ter seus sentidos desfeitos para tornarem-se,
junto com o que se unem, uma terceira coisa. 2. Para
além de um elemento conectivo puro, olo destitui de sentido particular os
termos gramaticais envolvidos em uma sentença para fazer surgir uma terceiro
sentido. Diz-se p. ex. “arra olo raar”, “mavio olo africo”, etc. [...] raar. pron.
pess. da 2ª pessoa singular. 1.
Enodamento fibroso geralmente momentâneo, cujas inúmeras fibras organizam-se em
forma de bola, postado um palmo abaixo do pescoço, mais precisamente entre os
dois mamilos. Este enodamento ganha a forma de inúmeros brotos que estendem-se
por entre os membros, cabeça, nuca e genitália, ultrapassando a epiderme em
busca de floração. 2.
Elemento que instaura a ligação orgânica entre duas temporalidades, lançando
sobre a presente uma suspensão e sobre a futura um chamado inexato. [...] 13.12.2002 – Acredito que
a arte não pode tomar o lugar de centro organizador da vida de uma pessoa.
Acho, ao contrário, que o centro deve ser a vida. Ou ainda, usando o
infinitivo, o viver. E nas periferias, orbitando em torno do viver, o resto.
Esta centralidade da arte me incomoda muito. Acho, por exemplo, que as relações
humanas são muito mais importantes do que uma obra de arte. [...]. Trechos
extraídos de Ele moía a escuridão (Santander Cultural, 2012), da
exposição realizada entre 15 de agosto a 30 de setembro de 2012, do poeta,
professor, quadrinista, ilustrador e artista visual Marcelo Coutinho.
A ARTE DE MARCELO COUTINHO
A arte
do do poeta, professor,
quadrinista, ilustrador e artista visual Marcelo
Coutinho, que trabalha com várias linguagens, de performance à
instalações e intervenções em paisagens. É autor de Antão, O Insone (Documento Areal/Zouk, 2008) e Isso (Documento Areal/Confraria do Vento, 2016). As imagens foram
extraídas da exposição Ele moía a escuridão (Santander Cultural, 2012).
O Centro
Cultural Vital Corrêa de Araujo & a Biblioteca
Fenelon Barreto informam:
&
O
Doro e a maldição do Pinóquio, a literatura de Nikolai Gogol, a música de Tori
Amos & Gracy Gausmann, a arte de Georges Lévis & a pintura de Roberto
Ferri aqui.