segunda-feira, abril 02, 2018

BORGES, RICHARD HOGGART, JOSÉ DUDA DO ZUMBI, MARCELO COUTINHO, LEO BROUWER & MARLUI MIRANDA

MOER A ESCURIDÃO - Imagem: arte do poeta, professor, quadrinista, ilustrador e artista visual Marcelo Coutinho. - Os olhos no escuro, a distância de nada existir, acho, apenas a chuva, chiados na noite, o silêncio do resto. Em algum lugar estava, não sei onde, apenas vivo, mais nada. Se havia desembarcado, não havia ninguém, nem sei de onde vim, o que estou fazendo aqui, nem para onde vou. Parecia-me um triz, espaço sem tempo, vórtice paralisado. Na verdade, se era vida ou sonho, ignorava. Sei que um coração pulsava nalgum lugar, vivia-o, isso sim. Não havia simetria, equilíbrio não há, nem podia, harmonizo o caos em mim, noitedia, mortevida, amanhojontem. Era ermo, só restava o delírio de inventar o inexistente com zis perguntas, e entre a vigília e a vertigem nenhuma resposta na insônia do imponderável. Voo ao antes: à face da natureza coberta de trevas. E ouço uma voz perdida, alguém me chama, viro-me e identifico apenas sua silhueta diáfana. Duvido, talvez reinventando a mim mesmo. Giro e ao redor assimilo alguém insinuando falar o incompreensível, como se palíndromos repetidos e quase me levando a entender ser Raar e que sou Arra e não sei de mim, ainda não sou, ou nunca deveria ter sido. Nem sei quem age e quem vê, uma semente germinada, apenas, ou talvez eu-outro, outridade. Esfrego os olhos, quase nada vejo, sinto. Percebo que gesticula mansa e suavemente, fala como um canto, mantras do porvir, parecia, no encontro do incomunicável. Aos poucos sua presença se torna mais nítida, os olhos vivos e ternos, as mãos espalmadas como um convite ao calor do abraço na rosa cálida emergente do seu coração. Hesitantes, titubeamos um pouco até o abraço que me envolveu inteiro. Abraçamos-nos novamente e o seu sorriso amanheceu tudo ao redor. Mostrou-me a Terra escorrendo entre os dedos, o Ar alisando nossas faces, a Água corrente lavando nossos pés, e o Fogo formando um círculo com labaredas saudando o Sol. Estendeu-me uma das mãos sem que lhe distinguisse a voz e deu-me um pergaminho, pareceu-me, à primeira vista, a versão de Alcuíno do livro de Jasher. Passei as vistas e tentei indagar quantas vezes havia acontecido e se repetira? Deu de ombros, pouco importa, nem sei se entendeu o que eu disse. Alma e ser desnudos, recitava repetidamente: arra olo raar, raar olo arra, arraraar. E no abraço, a vida. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a música do violonista, compositor e regente da Orquestra de Cuba, Leo Brouwer: La obra guitarristica 1 e 3 & de Bach aos Beatles; da compositora, cantora e pesquisadora da cultura indígena brasileira, Marlui Miranda: IHU Todos os sons, Fala de bicho, fala de gente & Rio acima; & muito mais nos mais de 2 milhões de acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir.

PENSAMENTO DO DIAFui moço, hoje estou velho! / Pois o tempo tudo muda! / Já fui um dos cantadores / chamado Deus nos acuda... / Este que estão vendo aqui / foi Zé Duda do Zumbi! / Hoje Zumbi do Zé Duda! Poema de sete pés do poeta popular segipano, Mestre José Duda do Zumbi (José Galdino da Silva Duda – 1866-1931).

VIDA REAL & COISAS DE HOJE EM DIA - [...] O fato de tudo isto não ter ainda exercido um efeito mais deplorável sobre a vida das pessoas deve-se à capacidade que elas têm de viver em compartimentos estanques — e é este um dos pontos que sublinho no meu ensaio - de manter uma separação entre a vida do lar e a vida exterior, entre a vida ‘real’ e a vida no mundo das diversões. ‘Faz-nos pensar noutras coisas’; ‘Distrai, é uma diversão’. Enquanto se distraem com essas coisas, as pessoas podem identificar-se com elas; mas no fundo sabem que não são coisas ‘reais’; a vida ‘real’ é outra coisa [...] Esta dieta regular, constante e quase exclusiva de sensacionalismo incorpóreo contribui para que aqueles que a consomem se tornem incapazes de encarar a vida de frente e de forma responsável, e ainda para despertar nos leitores a sensação de que a vida não tem qualquer objetivo, para além da satisfação de alguns apetites imediatos. Essas almas que não tiveram oportunidade para desabrochar continuarão fechadas, viradas para dentro, olhando ‘com olhos vazios, semelhantes a janelas escancaradas’ para um mundo que é em grande medida uma fantasmagoria de espetáculos transitórios e de estímulos falsificados. O fato de não ser essa hoje em dia a situação de todos os membros das classes trabalhadoras, deve-se à capacidade de resistência que caracteriza o espírito humano; resistência no sentido do reconhecimento de que há outras coisas que são importantes e que contam, se bem que esse sentimento nem sempre seja consciente [...] Trechos extraídos da obra As utilizações da cultura: aspectos da vida da classe trabalhadora, com especiais referenciais a publicações e divertimentos – Vol. 2 (Presença, 1973), do sociólogo e crítico literário britânico Richard Hoggart (1918-2014).

AS RUÍNAS CIRCULARES – [...] No sonho do homem que sonhava, o sonhado despertou. [...]. Em geral, eram-lhe felizes os dias; ao fechar os olhos pensava: Agora estarei com meu filho. Ou, mais raramente: O filhe que gerei me espera e não existirá se eu não for. [...] Percebia com certa palidez os sons e formas do universo: o filho ausente se nutria dessas diminuições de sua alma. O proposito de sua vida fora atingido; o homem persistiu numa espécie de êxtase. [...] Temeu que seu filho meditasse nesse privilégio anormal e descobrisse de alguma maneira sua condição de mero simulacro. Não ser um homem, ser a projeção do sonho de outro homem, que humilhação incomparável, que vertigem! A todo pai interessam os filhos que procriou (que permitiu) numa simples confusão ou felicidade; é natural que o mago temesse pelo futuro daquele filho, pensado estranha por estranha e traço por traço, em mil e umas noites secretas. [...] Caminhou contra as línguas de fogo. Estas não morderam sua carne, estas o acariciaram, e o inundaram sem calor e sem combustão. Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando. Trechos de As ruinas circulares, extraído de Ficções (Globo, 1976), do escritor, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino Jorge Luis Borges (1899-1986). Veja mais aqui.

ELE MOIA A ESCURIDÃO – [...] Arra olo raar - arra. pron. pess. da 1ª pessoa singular. 1. algo de funcionamento intenso destinado a reter e reconduzir as várias retenções e reconduções vindas de outros algos. 2. algo que balbucia através de outro algo que também balbucia. 3. algo que é fruto de uma matriz perdida, e que, por sua vez, será uma matriz perdida para outro algo. [...] olo. prep. 1. Partícula gramatical usada para pôr em movimento de devir palavras e outros fragmentos da língua. Quando juntas a esta preposição, verbos, adjetivos, pronomes, adverbios passam a ter seus sentidos desfeitos para tornarem-se, junto com o que se unem, uma terceira coisa. 2. Para além de um elemento conectivo puro, olo destitui de sentido particular os termos gramaticais envolvidos em uma sentença para fazer surgir uma terceiro sentido. Diz-se p. ex. “arra olo raar”, “mavio olo africo”, etc. [...] raar. pron. pess. da 2ª pessoa singular. 1. Enodamento fibroso geralmente momentâneo, cujas inúmeras fibras organizam-se em forma de bola, postado um palmo abaixo do pescoço, mais precisamente entre os dois mamilos. Este enodamento ganha a forma de inúmeros brotos que estendem-se por entre os membros, cabeça, nuca e genitália, ultrapassando a epiderme em busca de floração. 2. Elemento que instaura a ligação orgânica entre duas temporalidades, lançando sobre a presente uma suspensão e sobre a futura um chamado inexato. [...] 13.12.2002 – Acredito que a arte não pode tomar o lugar de centro organizador da vida de uma pessoa. Acho, ao contrário, que o centro deve ser a vida. Ou ainda, usando o infinitivo, o viver. E nas periferias, orbitando em torno do viver, o resto. Esta centralidade da arte me incomoda muito. Acho, por exemplo, que as relações humanas são muito mais importantes do que uma obra de arte. [...]. Trechos extraídos de Ele moía a escuridão (Santander Cultural, 2012), da exposição realizada entre 15 de agosto a 30 de setembro de 2012, do poeta, professor, quadrinista, ilustrador e artista visual Marcelo Coutinho.

A ARTE DE MARCELO COUTINHO
A arte do do poeta, professor, quadrinista, ilustrador e artista visual Marcelo Coutinho, que trabalha com várias linguagens, de performance à instalações e intervenções em paisagens. É autor de Antão, O Insone (Documento Areal/Zouk, 2008) e Isso (Documento Areal/Confraria do Vento, 2016). As imagens foram extraídas da exposição Ele moía a escuridão (Santander Cultural, 2012).

  

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O Doro e a maldição do Pinóquio, a literatura de Nikolai Gogol, a música de Tori Amos & Gracy Gausmann, a arte de Georges Lévis & a pintura de Roberto Ferri aqui.