OS HOMENS OCOS – Imagem: Portrait of Stanislao Lepri, da pintora,
designer, ilustradora e autora surrealista argentina Leonor Fini (1907-1996). - Marcelino Silva é professor, ele e a
esposa. Ambos trabalham três expedientes, três filhos: dois universitários e
uma quase adolescente na escola. No lar, uma meia água própria, a austeridade
de nenhum luxo: nada de tevê, micro-ondas, coisas simples, preferiu investir na
educação dos filhos e numa biblioteca particular: qual mundo pros filhos, que
filhos pro mundo, refletia. Afora móveis e utensílios comuns, apenas dois
computadores com acesso a internet: evitavam uma casa emburrecedora, maior
bagunça. Na garagem, um Corcel 73 conservado, podia ter aproveitado a onda Lula
e ter adquirido um veículo zero quilômetro, temia endividamento: Vida de
professor nunca se sabe. Aos finais de semana reunia os filhos e suas
namoradas, a esposa e a filha para sábado de manhã debater sobre cidadania
prática e participação social; de tarde, impressões numa roda de leitura:
escolhiam um autor para todos lerem durante a semana e questionarem as obras;
de noite, sala de cinema com apreciação de filmes de determinado diretor
escolhido; domingo de manhã: audição musical; de tarde, questões polemizadas da
vida e do ser humano à luz filosófica e científica; de noite, agenda da semana
com campeonato de xadrez. Naquela tarde, havia almoçado em casa e guiava o seu
Corcel 73 pra dar aula, quando, de repente, um estibado se intrometeu num
tranca com seu BMW. No susto deu uma freada que triscou no para-choque do
carrão. Respirou fundo e arregalou os olhos ao ver descer do veículo
estacionado na frente, o filho do prefeito e agropecuarista Elesbão Torreta, o
Brothão, aquele mesmo impune que descascou a doce Melzinha. O sujeito foi até a
traseira do seu possante veículo, conferiu, alisou e voltou-se furioso contra o
de Marcelino, dando um murro de entrar a mão com soco inglês para-lama motor
adentro. Esmurrou a porta amassando quase toda lataria do seu veículo ao
arrodeá-lo. Berrou pra ele que, providente, levantou o vidro da porta lateral,
recebendo um soco de arrebentar tudo e alcançá-lo pela beca, puxado pela goela
porta afora, ser quase estrangulado, balançando no ar: Você é um demônio
aloprado, cara! Não vale a porca de um parafuso do meu carro! Ainda bem que só
triscou no friso, senão ia morrer de bofete na cara, tá entendendo, diabo? Você
só vale essa borreia! E sacudiu-lo por cima de cair do outro lado na calçada. A
cidade em peso silente presenciando tudo. Brothão mais invocado que antes,
lançou um urro para todos e saiu enraivecido, cantando pneus rua afora. Foi aí
que o povo foi ajudá-lo a se erguer, de quase não ficar em pé de tanta tremedeira.
Demorou para acertar a chave na ignição, conseguiu insistentemente que o motor
pegasse, engatou primeira e nela foi até a escola. Estacionou ainda passado,
foi pra sala de aula, nenhum aluno; dirigiu-se ao banheiro e diante do espelho
não era sua face que refletia: era o Brando do Apocalipse de Coppola, recitando
Eliot: Nós
somos os homens ocos / Os homens empalhados / Uns nos outros amparados / O elmo
cheio de nada. Ai de nós! (Baseado no incidente-relato do poeta e
professor Marcelo Coutinho: A alucinação é crescente no país que nasci.
No caminho para a Universidade sou bruscamente fechado por uma destas
motocicletas BMW. Por pouco não houve uma colisão. O motoqueiro rico se colocou
ao meu lado e bradou sem parar, salivando sob o capacete: "tu és o
demônio!", "tem a cara do demônio!" "é barba de
demônio!". Enquanto os alunos não chegavam, fui ao banheiro e me olhei no
espelho. Continuo achando minha barba elegante. Seria eu a delirar? Ou seria o
país que delira e espuma de raiva de si mesmo?). Minha
solidariedade. © Luiz Alberto Machado.
Direitos reservados. Veja mais aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a música do saxofonista e flautista Raul Mascarenhas: Sabor carioca, Búzios Live & Lilibye blues; da
cantora e compositor Luciana Mello: Ao vivo, Nêga & Na luz do samba; & muito mais nos
mais de 2 milhões de acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir.
PENSAMENTO DO DIA –[...] Nós vos pedimos com insistência: Nunca digam
- Isso é natural! Diante dos acontecimentos de cada dia, numa época em que
corre o sangue, em que o arbitrário tem força de lei, em que a humanidade se
desumaniza, não digam nunca: Isso é natural, a fim de que nada passe por
imutável. Sob o familiar, descubram o insólito. Sob o cotidiano,
desvelem o inexplicável. Que tudo que seja dito ser habitual, cause
inquietação. Na regra é preciso descobrir o abuso, e sempre que o abuso for
encontrado, é preciso encontrar o remédio.
Pensamento do dramaturgo, encenador e poeta alemão Bertolt Brecht
(1898-1956). Veja mais aqui.
BRASILEIRO CONDENA BRASILEIRO – [...]
Nossa tradição cultural, por diversas
razões, criou um ideal de cidadania política sem vínculos com a efetiva vida
social dos brasileiros. Na teoria aprendemos que devemos ser cidadãos; na
prática, que não é possível, nem desejável, comportarmo-nos como cidadãos. A
face política do modelo de identidade nacional é permanentemente corroída pelo
desrespeito aos nossos ideais de conduta. [...] o brasileiro vem sendo coagido a reagir de duas maneiras. Na primeira,
com apatia e desesperança. É o caso dos que continuam acreditando nos valores
ideais da cultura e não querem converter-se ao cinismo das classes dominantes e
de seus seguidores. [...] Na segunda
maneira, a mais nociva, o indivíduo adere à ética da sobrevivência ou à lei do
vale-tudo: pensa escapar à delinqüência, tornando-se delinquente. Nos dois
casos, perde-se confiança na ideia de justiça, legalidade e interesse comum. É
o primeiro passo para o império do banditismo – o modo de convívio social em
que a lei se confunde com o interesse de um indivíduo ou de um grupo e a força
substitui o diálogo. No banditismo, as leis dão lugar ao mercado da violência,
que tende à expansão ilimitada. Numa sociedade regida pela moral da
delinqüência, a cada dia se inventam novas formas de transgressão e de
desmoralização das leis e novas formas de submissão dos mais fracos aos mais
fortes [...]. Trechos extraídos de O
brasileiro condena o brasileiro (Superinteressante, 1991), do psicanalista e professor Jurandir Freire Costa.
Veja mais aqui, aqui e aqui.
ALÉM DAS FORÇAS - [...] BRATT – Ah, tenham confiança meus amigos,
estamos atingindo o fim. Mas, principalmente, nada de discórdias, nada de
lutas, e saibam sacrificar ao interesse comum os seus rancores pessoais. Uma
vez senhores de vocês mesmos, logo o serão dos outros! Ah, pensem então, se
realmente for a nossa geração, se realmente formos nós a fazer subir todas as
gerações futuras do fundo das sombras e do sofrimento para o pleno sol da vida
(Emoção geral, Bratt esconde a cabeça entre as mãos. Silêncio. Depois de uma
pausa). Agora, vamos ao escritório da greve; a caixa está pronta para pagar...
(Sinais de alegria). E quando tiverem recebido seus socorros, não se esqueçam
de ir votar na eleição dos delegados que devem falar a Holger. Pois vocês sabem
que é hoje que eles devem levar-lhe nossa resposta (Aprovação geral. Vários se
encaminham em direção a Bratt e lhe apertam a mão. Depois, sobem novamente,
conversando, e desaparecem). [...]. Trecho extraído da peça teatral Além
das forças (Delta, 1962), do escritor norueguês Björnstjerne Björson (1832-1910), Prêmio Nobel de Literatura em
1903.
VÉSPER – Pálida estrela da tarde, / por céus longínquos perdida, / cuja fronte
rasga os véus, / dize, - que avista no prado / teu vago olhar sonolento, /
caindo do firmamento, / - dos paços azuis dos céus? / Calmou-se tormenta e vento;
/ e a floresta murmurante / derrama orvalho corante / nas plantas murchas do
chão; / louros insetos ligeiros / pelas floridas campinas, / dentre as moitas
de boninas, / rutilam na escuridão. / Que vês na terra dormente?... / Mas já
por trás das montanhas / vejo a luz de que te banhas / docemente vacilar, /
enquanto, ó pálida amiga, / tu foges na etérea plaga, / nela, sorrindo, se
apaga / teu melancólico olhar. / Formosa estrela que desces / por sobre a verde
colina, / da noite no manto frio, / alvo do olhar da pastora / que vem da serra
cantando / enquanto a segue badalando / seu nédio armento tardio. / Ah! Por
essa noite imensa, / que busca a luz feiticeira? / - Fresco leito, d’água à
beira, / onde te possas dormir? / - Ou nas horas de silêncio / no vasto seio
dos mares, / - Pérola solta nos ares, / vais de repente cair? / Se deves morrer
tão cedo... / se hão de afundar-se nos mares / teus merencóreos luares / e os
louros cabelos teus, / astros do amor, ah! Detêm-te! / Teu curso leve suspende,
/ no azul do espaço te prende! / Não desças nunca dos céus! Poema do poeta,
novelista e dramaturgo francês Alfred
Musset (1810-1857). Veja mais aqui.
A ARTE DE LEONOR FINI
A arte da
pintora, designer, ilustradora e autora surrealista argentina Leonor Fini (1907-1996).
&
O
que parecia ser não é mais porque nunca foi ou deixou de ser, A lenda
da mandioca, a música de Paula Cole, a escultura de Butch
Charlan & Giovanni Duprè, a fotografia de Damir Simic, a arte de John Jinks & Edna Fialho aqui.