A VIDA ENTRE LIVROS & LEITURAS –
Imagem: foto da Biblioteca Pública Municipal Fenelon Barreto - Sempre fui um
menino travesso de fechaduras, brechas, postigos e combongós. Fresta que fosse,
lá estava eu curioso peregrino e contumaz. Vencia buliçoso todas as
dependências da casa, exceto um cômodo sempre de portas fechadas. Bastava eu me
aproximar, surgia a advertência de mãe para eu me afastar dali. Vez ou outra eu
esbarrava nela, sempre fechada, inheto por vencer a barreira, um interdito. Só
muito depois, certa feita, estava entreaberta, invadi: lá estava meu pai entre
livros e estantes. Ousei tocar um deles, logo a censura: mexa não! Tomava
distância, fazendo de nem nem, só esperando momento oportuno para atacar. Doutra
feita, meu pai levantou-se, remexeu nalguma coisa e me entregou um volume
colorido que muito me deixou afoito no afã de descobri o segredo ali contido.
Sentei-me no chão todo ancho pela posse, a folhear fisgado nas figuras. Daí a
pouco minha mãe ralhava: venha, seu pai está trabalhando. Trabalho? Sim,
trabalho. Maínha, trabalho. Não, seu pai está ocupado, venha. Bastava ela
descuidar e eu lá mexedor ao lado dele: Maínha, trabalho. E imitava meu pai
concentrado nos impressos. Eles riam. Outra vez, inadvertidamente, puxei um
volume maior do que eu na estante, um desastre. Acorreram em socorro e me
assustei com a aflição deles, enquanto eu repetia sem parar: trabalhar, maínha,
trabalhar. Nem adiantava. Assim fui crescendo e aprendendo furtivamente a invadir
aquele ambiente, vasculhando volumes e páginas às escondidas. Não sei quantas
vezes fui flagrado por minha mãe enquanto eu babava com as imagens de mulheres
nuas, as que mais me apeteciam. O tempo passou até aprender a ler e adquiri o
hábito até hoje, tornando-me um leitor assíduo. Com essas leituras aprendi que
o desejo é uma força de ação latente, somos todos seres de desejos entre
escolhas, tornando-nos deuses-homens criadores de um mundo fragmentado e
escravizados pelas ilusões do orgulho, da vaidade, das ambições, arrogâncias,
apegos, envolvidos entre o ter e o ser. Com os livros compreendi e optei pelo
ser, o ter seria uma consequência, nada mais. Com as recorrentes leituras me
preparei para experimentar do sofrimento, do sacrifício, das falhas, de suportar
as provas circunstanciais, enfrentando de forma reflexiva aos acontecimentos. Passei
a discernir que todo sofrimento e adversidades infligidas nada mais eram que
aprendizados que não careciam de explicação, apenas sentir e apreender. A
despeito de todos os obstáculos, nunca me dei conta das dores e tribulações
porque enriqueceram minha espiritualidade, vez que ao me harmonizar com a
aflição do mundo, pude me tornar mais complacente e tolerante, e isso me fez
senhor de mim mesmo: as minhas experiências me ensinaram as lições da vida. Graças
a elas fortaleci meu caráter e me libertei dos apetites, disciplinando a mente
para o trabalho construtivo com o estabelecimento de propósitos para uma vida
útil e plena: a de um buscador sincero da verdade, com senso de moral e
responsabilidade de prático e realista na direção da concretização digna do meu
projeto de vida. Nunca desisti. Não me vi vencido pelas vicissitudes que serviram
para promover um ideal voltado para o desenvolvimento e oportunidade para
servir à humanidade. Se não venci aos olhos alheios, pouco importa, purguei
falsas concepções, conheci o amor, a felicidade e a verdade da vida, a natureza
humana e o propósito real da existência. Valeu a pena, só valeu a pena.
Reconheci que trabalhei e sofri por um ideal: difundir a Luz em um mundo
obscuro de plena barbárie. Fiz disso a minha habilitação e passei a ter a noção
da força motriz pro incentivo, satisfação e entusiasmo de superar os desafios
lançados na capacidade de criar oportunidades e na construção de um ideal
altruístico: o acesso para todos à informação e ao conhecimento no desenvolvimento
do pensamento e bem-estar humanos. Aliando as experiências vividas ao hábito da
leitura para reflexão, passei a sabedor do quão importante é viver e interagir
com a experiência dos outros: eu vivo porque aprendi a viver com todos. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
Imagem:
com o bibliotecário João Paulo e
alunos da rede pública municipal durante a Semana do Centenário de Hermilo
Borba Filho, na Biblioteca Pública Municipal Fenelon Barreto, em Palmares –
Pernambuco.
CONFIDENCIAL
Fenelon
Barreto
... E agora é a gente vil nos censurando! É o
riso
Das amantes que eu tive e das mulheres feias.
Meia dúzia de maus, de cérebros sem juízo,
Que desejam colher aquilo que semeias.
Querem mesmo findar o sonho que idealizo.
Gostam também de entrar nas relações alheias,
Tão cínicas enfim, que às vezes é preciso
Mostrarmos o rancor que ferve em nossas
veias.
Crê em minha afeição, minha jovem rosada!
E longe dessa turba estúpida e maldita
Teremos algum dia a paz desejada!
E após ouvir-me assim, ei-la a sorrir...
repleta
Desse orgulho que tem toda mulher bonita
Convicta de possuir o coração de um poeta.
Poema
extraído da antologia Poetas de Palmares
(Palmares, 1973), seleção e introdução de Juareiz Correya.
FENELON BARRETO – O
dramaturgo, advogado, professor e poeta palmarense Fenelon Barreto, colaborou em diversos jornais e revistas, deixando
inéditos uma gramática portuguesa e um livro sobre contabilidade. Autor de
peças teatrais como Adoração, O náufrago da Mafalda, entre outras
tantas tragédias que foram encenadas. Veja mais aqui.
A BIBLIOTECA – Desde Alexandria, o sonho da biblioteca
universal excita as imaginações ocidentais. [...] a leitura pública supõe que a biblioteca saia dos seus muros, vá ao
encontro dos leitores, com ônibus-bibliotecas, as bibliotecas circulantes
instaladas nos bairros, as bibliotecas nas empresas. [...] É um movimento cuja inspiração continua
sendo útil. Neste mesmo momento em que estamos conversando, está ocorrendo uma
revolução técnica, com o que ela tem de promissor e temerário. É por isso que
se deve conservar, no interior do debate sobre a biblioteca eletrônica, senão
as fórmulas ou os instrumentos da leitura pública, ao menos o espírito que ela
possuía. [...] as bibliotecas, sejam
elas nacionais, públicas, ou universitárias, tornam-se um recurso absolutamente
indispensável [...]. Trechos extraídos da obra Aventura do livro: do leitor ao navegador (Unesp, 1998), de Roger Chartier. Veja mais aqui
& aqui.
OS AMBULANTES DE DEUS – [...]
O período foi de calamidade: houve um
carnaval triste porque tudo o que ia acontecer estava pairando no ar, na cidade
e no rio [...] é, houve um carnaval
triste, com uns pobres caboclinhos descendo a ladeira, arcos e flechas na
batida monótona e sem gosto, penas descoloridas, cocares desbotados, dançava
prum lado e outro pra nem-te-ligo, mal acertava, o passo, assim mesmo
persistiram na beira do rio os três dias convencionais, mas os da jangada nem
bem nem mal prestavam atenção, não prestavam, estavam mesmo encafifados, havia
coisa no ar, estava para acontecer, aconteceu. Houve um golpe militar, um
tritíssimo golpe militar em nome da liberdade; e nesse golpe militar viam-se
cabeça rolando no meio da rua, pernas penduradas nos fios elétricos, testículos
nos açougues, intestinos enlaçados; e houve a morte lenta, conseguida depois de
cada centímetro de dor; e houve um morto em cada casa e os homens se
transformaram em inimigos dos homens e houve paradas militares e os civis se
refugiaram em tocas de bichos; e a jangada teve de permanecer parada à espera
de ordens; e houve viúvas puxando pelos cabelos os cadáveres dos maridos no
meio da rua; e houve mortos que mesmo depois de mortos vinham passear no meio
da rua, as feridas abertas, de cara triste, e os soldados passavam e atiravam
neles e abriam novas feridas e riam e bebiam; e houve quem dissesse que ia
chegar um vaso de guerra para bloquear a fuga dos subversivos pelo rio e as
patrulhas passaram a policiar as margens e vez por outra, por desfastio, davam
rajadas de metralhadoras nos viajantes da jangada; e houve mais: missas negras,
necrofilia, torturas do coração, luto perene, lágrimas de sangue, empalamentos,
pesadelos revividos, interrogatórios indolores, fornos de cremação, hinos
nacionais, oratória democrática e desfiles. [...] De há muito já não eram mais eles mesmos, também ninguem o era na
cidade, mas disto não sabiam; e quem era nos antigamentes gente humana podia ser agora uma pedra, uma
partícula de pó, um fruto podre, ou no vice-versa, quem fora um torrão de
areia, nos presentes podia ser um homem que gritava ou uma mulher que chorava,
uma criança que engatinhava, descangotada a certeza, tudo nos arrevesados da
sorte e do destino, cidade quase vaia de tão culposa, a galiqueira campeando
pelos males da fornicação e por mui fermosas que ainda fossem as adolescentes a
sustança dos tutanos aquosa era, o que as tornava umas desinfelizes com
olhos-de-peixe-morto, a alegria ida [...]. Trechos extraídos da obra Os
ambulantes de deus (Civilização Brasileira, 1976), do escritor, dramaturgo,
tradutor e advogado Hermilo Borba Filho.
(1917-1976). Veja mais aqui.
URBANIZAÇÃO BRASILEIRA - [...]
Em nosso país, já conhecemos desde muito
uma flexibilização tropical do trabalho, que é o mecanismo pelo qual se criam
tantos empregos urbanos, evitando a explosão das cidades. A forma como se dá o
processo de involução urbana assegura trabalho para centenas de milhares de
pessoas dentro das cidades. Essa é uma pergunta crucial: como será o trabalho
nos próximos anos? Da forma como ele for, dependerá a forma como a urbanização
se dará, também, porque aí pode estar a semente de nova consciência política.
Ora, a vontade política é o fator por excelência das transfursões sociais.
Nesse particular, as tendências que a urbanização assume neste fim, de século
aparecem como dado fundamental para admitirmos que o processo irá adquirir
dinâmica política própria, estrutural, apontando para uma evolução que poderá
ser positiva se não for brutalmente interrompida. Trecho extraído da obra A urbanização brasileira (EdUsp, 2009), do
geógrafo e professor Milton Santos (1926-2001. Veja
mais aqui.
A MULHER - [...] Mas através de toda a época patriarcal –
época de mulheres franzinas o dia inteiro dentro da casa, cosendo, embalando-se
na rede, tomando o ponto dos doces, gritando para as mulecas, brincando com os
periquitos, espiando os homens estranhos pela frincha das portas, fumando
cigarro e às vezes charuto, parindo, morrendo de parto; através de toda a época
patriarcal, houve mulheres, sobretudo senhoras de engenho, em quem explodiu uma
energia social, e não simplesmente domesrtica, maior que a do comum dos homens.
Energia para administrar fazendas, como as Donas Joaquinas do Pompeu; energia
para dirigir a política partidária da família, em toda uma região,c Omo as
donas Franciscas do Rio Formoso; energia guerreira, como a das matronas
pernambucanas que se distinguiram durante a guerra contra os holandeses, não só
nas duas marchas, para as Alagoas e para a Bahia, pelo meio das matas e
atravessando rios fundos, como em Tejecupapo, onde é tradição que elas lutaram
bravamente contra os hereges. Trecho do estudo socioantropologico A mulher e o homem, extraído da obra
Sobrados e mocambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do
urbano (José Olympio, 1968), do sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987). Veja mais aqui.
O AMOR HOJE - [...] O amor romântico, ameaçado de perder o que
lhe dava vitalidade – os atrativos do sentimento, da privacidade e da formação
da identidade -, parece cada dia mais restrito aos episódios de êxtase
sentimental e sexual. Seu estatuto é semelhante ao dos ideais emocionais
arcaicos: belos e luminosos no passado ou em recintos fechados; frágeis e
desbotados no presente e ao ar livre. Resta, portanto, como aconselha Solomon,
procurar inventar um “neo-romantismo” mais comprometido com o mundo e, até lá,
“ser humildes quanto a nosso entusiasmo” pelo amor erótico. Sem isso, o
declínio do amor-paixão pode deixar um vazio identitário que não sabemos como
ocupar. Durante séculos, a metáfora amorosa nos ensinou a buscar a felicidade
na companhia do outro e a acreditar que esse ideal era imortal. Hoje, trata-se
de pensar no que significa “outro”, “companhia”, “felicidade” e “ideal
imortal”, para não termos de nos perguntar, como a Macabéa de Clarice Lispector,
para que serve a felicidade. Trecho extraído da obra Sem fraude nem favor: estudos sobre o amor romântico (Rocco, 1998),
do psicanalista e professor Jurandir Freire Costa. Veja
mais aqui.
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