DESMANTELOS SEM REMISSÃO – Imagem
do pintor, escultor, desenhista, gravador e ilustrador Farnese de Andrade (1926-1996) - João tinha muitos amigos, de copos
e de farras. Era amável, afobado sim, raivoso nunca, exceto com pusilanimidade,
grosserias, palavras desastrosas. Zangava-se vez ou outra, raramente, tinha lá
seus motivos. Era comum nem se atormentar com nada, levava a vida na prosa, às
risadagens. Não tinha inimizades, caçoava de todos, estreitos laços de amizade.
Uma censura aos seus modos, relevava com muxoxo e saía qual raio, para se render
ao perfume cativante das saias femininas, a sua perdição. Tinha lá suas
extravagâncias, nem parecia haver um inferno em ebulição dentro dele, mar
agitado de águas pútridas fervendo no peito, fera indomável. Coisa de amor
desfeito, paixão recolhida envenenando seu ser. Ninguém sabia, vaidade ferida,
destronado, coisa só dele. Disso nem falava, só dizia que coração de mulher era
terreno de areia movediça, coisa que esconde o reino das traições. Ele se ria e
mudava de assunto, coisa de se vingar com o pé no acelerador do automóvel na
maior das carreiras, ou na montaria de um cavalo zarpando terra afora, ou na
pesca de mão de peixes no rio ou no mar, força brava no roçado, levando mata
nos peitos, tudo aos extremos, violência do muque na força do pulso, coisas de
derrotar. Era assim que se vingava de dele só. Fosse longe, vencia em
instantes; fosse firme, derrubava toras; fosse pedra, arrancava com
brutalidade. Era como se vingava do amor perdido. Corria mundo e em alta
velocidade: um dia tu te estupora, João. Ele, nem nem. Houvesse limite, era pra
superar. Invencível, desconhecia adversário, fosse quem viesse, sempre campeão
de si. Dava vazão ao seu orgulho, diligente, perdia as estribeiras, desafiava a
si de nem ser indulgente e se esforçava para ser o melhor, efeitos
devastadores. Até que uma curva, um seixo, o inopinado: estrepou-se de quase se
desmanchar carcaça toda. Não havia osso que não fosse fraturado, face
irreconhecível, corpo destroçado, tudo rendido e inutilizado. Cadeira de rodas,
imóvel. Quase nem batia os olhos, não falava, vegetava. Hoje só tem olhos pra
chorar. © Luiz Alberto Machado.
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RECIFE –
VÁRZEA: ÚLTIMO RETORNO
Joaquim
Cardozo
Terra macia, formada de muitos longes
Trazidos pelas águas.
- Essa terra do meu nascer alhures
Que seja, e seja, e seja, no fim, no sempre,
A minha terra de morrer.
Entre as bátegas de chuva:
- Das suas chuvas de junho até setembro...
- (Depois... Depois.... Quando depois...) –
talvez se ouça ainda
O meu bater de coração.
Entre palmas e franjas de espuma branca,
Entre ramos de renda verde,
Um pouco do ar, que nessa terra respirei,
Passará, sem que ninguém disso se aperceba,
Na aragem das manhãs.
E os meus pés sepultados,
Meus pés, e o percorrido por meus pés,
Mergulhados, confundidos, sedimentados
Na espessura desses longes,
- Tímidos, incertos, sem destino –
Por baixo do chão dos seus caminhos
Continuarão a caminhar.
Poema
extraído de Réquiem por uma vida
desnecessária, das Poesias Completas
(Civilização Brasileira/MEC/INL, 1971), do poeta, dramaturgo,
engenheiro civil, desenhista, professor e editor Joaquim Cardozo (1897-1978). (Imagem: Visão Romântica do Porto de
Recife (1930), do artista plástico Cícero Dias). Veja mais aqui.
RETRANCAS DO FUTEBOL E DECEPÇÕES - Como todos os meninos uruguaios, eu também
quis ser jogador de futebol. Jogava muito bem, era uma maravilha, mas só de
noite, enquanto dormia: de dia era o pior perna-de-pau que já passou pelos
campos do meu país. [...] Os anos se
passaram, e com o tempo acabei assumindo minha identidade: não passo de um
mendigo do bom futebol. Ando pelo mundo de chapéu na mão, e nos estádios
suplico: - Uma linda jogada, pelo amor de Deus! E quando acontece o bom
futebol, agradeço o milagre – sem me importar com o clube ou o país que o
oferece. [...] foi uma Copa sem
surpresas. Um espectador a resumiu assim: - Os jogadores têm uma conduta
exemplar. Não fumam, não bebem, não jogam. Os resultados recompensaram isso que
agora chamam de sentido prático. Viu-se pouca fantasia. Os artistas deram lugar
aos levantadores de peso e aos corredores olímpicos, que ao passar chutavam uma
bola ou um adversário. Todos atrás, quase ninguém na frente. Uma muralha
chinesa defendendo o gol e algum Cavaleiro Solitário esperando o contra-ataque.
Até poucos anos atrás, os atacantes eram cinco. Agora só resta um, e nesse
ritmo não ficará nenhum. Como comprovou o zoólogo Roberto Fontanarrosa, o
atacante e o urso panda são espécies em extinção. Trecho extraído da obra Futebol ao sol e à sombra (L&PM,
2009), do jornalista e escritor uruguaio Eduardo
Galeano (1940-2015). Veja mais aqui, aqui & aqui.
CRISE & EDUCAÇÃO AMBIENTAL - Torna-se necessário introduzir, nos
processos de planejamento, estratégias participativas que venham a se apoiar
nas forças utópicas da democracia radical e nas forças distópicas de destruição
não pacifista, provocada pelos inconciliáveis antagonismos,
sócio-politico-culturais, entre indivíduos, grupos e sociedades. Ou seja, a
participação passa a ser vista, assim, como uma forma estratégica de
interrelacionar – através da critica, técnico-política, das ações de
planejamento – “kultur” e “zivilization”, harmonizando-se na direção de um
bem-comum, como um futuro compartilhado possível. Sob tal perspectiva, o
impacto “mundializado” da crise ambiental origina-se em conflitos racionais
advindos da aplicação de referências da realidade baseadas nas teorias
científicas da natureza, mas propaga-se mobilizando-se sobre provocações de
cunho ético-humanístico – sobre uma crítica latente do “ocidente” como
civilização, abrindo-se como ponto de cisão entre alternativas de futuro no
confronto cultura-natureza e suas interações. A crise ambiental é, portanto,
uma crise política da razão, que não encontra significações dentro do esquema
de representações científicas existentes para o reconhecimento da natureza
social do mundo, que foi histórica, técnica e civilizatoriamente produzida. Uma
crise política da razão frente à não explicação da natureza social da natureza
e de suas implicações sobre o conhecimento e suas relações com a sociedade e o
futuro. [...] Trecho do ensaio O
pensamento contemporâneo e o enfrentamento da crise ambiental: uma análise
desde a psicologia social, da física e pós-doutora em Ciências Sociais, Edla Terezinha de Oliveira Tassara,
extraído da obra Pensar o ambiente: bases filosóficas para a educação ambiental
(MEC/SECAD, 2009), organizado por Isabel Cristina de Moura Carvalho, Mauro Grün
e Rachel Trajber. Veja mais aqui, aqui & aqui.
O SISTEMA & O FILOSOFAR - O comportamento originante do filosofar e a
possibilidade de esclarecer a problemática que tal comportamento coloca [...]
parte do pressuposto de que a coloração fundamental de uma filosofia já se
determina, em certo sentido, a partir mesmo da atitude inicial assumida por
todo filósofo. Trata-se, portanto, de problemática implicada no ponto de
partida do filosofar. Referimo-nos ao filosofar. [...] A atitude inicial do filósofo determina o caráter último de sua
filosofia. Mas esta determinação, profundamente enraizada no ato de filosofar,
não deve ser confundida com o problema do primeiro princípio filosófico, com a
primeira afirmação, a partir da qual um determinado filósofo poderá alicerçar e
desdobrar o todo de seu pensamento, obediente à incoercitível tendência para a
sistematização, que é inerente à natureza mesma da filosofia. [...] Em verdade, a ideia de sistema traz consigo
todos os quesitos do que deva ser um problema: responde a um anseio legitimo e
inscreve-se na própria natureza do real. O que deve ser repensado é o sistema,
não enquanto decorrência do processo entificador do ser, e sim enquanto
abertura para a diferença ontológica. Não se trata, pois, de fundar o sistema
dedutivamente em um ente determinado, mas de pensar a sua possibilidade a
partir da diferença ontológica. Trechos extraídos da obra Introdução ao filosofar: o pensamento
filosófico em bases existenciais (Globo, 1978), do filósofo, professor e
crítico de teatro brasileiro Gerd Bornheim (1929-2002). Veja mais aqui,
aqui e aqui.
ADAPTAÇÃO DO INDIVÍDUO - O interesse constante e crescente pelo
indivíduo e sua adaptação é talvez um dos fenômenos mais importantes do nosso
tempo. Mesmo a guerra e a propaganda serviram para pôr em evidencia a ideia
fundamental da importância do individuo e do seu direito a uma adaptação
satisfatória como um dos elementos dos nossos objetivos bélicos. [...]. É absolutamente vital reconhecer que o
processo que ocorre na entrevista é tão delicado que as suas potencialidades de
desenvolvimento podem ser inteiramente destruídas pela manipulação forçada que
caracteriza a maior parte das nossas relações. Compreender as forças sutis que
atuam, reconhecer e cooperar com elas exige a máxima concentração e o maior
estudo, e o caráter integral dos relatórios que descrevem o processo.
Trechos extraídos da obra Psicoterapia e consulta psicológica (Martins Fontes,
1987), do psicólogo norte-americano e criador da abordagem psicoterapeuta
Terapia Centrada na Pessoa, Carl Rogers (1902-1987). Veja mais aqui, aqui, aqui & aqui.
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arte do pintor, escultor, desenhista, gravador e ilustrador Farnese de Andrade (1926-1996).
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