BOA NOITE PENEDO, ÀS MARGENS DO SÃO FRANCISCO
- Aqui estou, Velho Chico, o sol nos olhos de janeiro e a rua espia a
calma das pessoas no seu lar. Aqui estou, menino grande e que o telefone saiba
que eu existo neste quarteirão de mundo, a esperar que a cerveja anime uma
emoção que valha o filme da televisão, a esperar que o cinzeiro não esborre a
quietude de bulir no coração. Aqui estou, Velho Chico, e o Sol, meus
companheiros nesse crepúsculo tão maravilhoso. Julgava saber tudo até
presenciar escunas burilando meu sangue e eu pudesse dizer ao mundo o quanto é
lindo poder viver aqui, neste lugar, nesse recanto de mundo, nessa margem do
tempo. A quinta-feira já se despede dizendo ao mundo que a vida prossegue
amanhã. E amanhã de manhã estarás aí, Velho Chico, e o Sol nos saudará para que
incautos nos possam ver tão mágicos quanto lúcidos na vida. E se o Sol morre
agora lá na serra, ele nasce noutra pradaria. E nós, na escuridão da noite, nos
despedimos como se fosse a última vez. Pois é, Velho Chico, tua serenidade me
seduz pro amor, acaso possa eu ser capaz de tal iniciação na minha teimosia de
viver. Se eu sei, quem saberá? Pra quê saber das coisas, dos seres, das gias
mais confusas dos pedantes? Na verdade
eu sequer sei, como também não sabes, nem o vórtice da ciência, nem o douto
julgador. Pois é, meu velho amigo, dessas horas diminutas, tão miúdas, tão
presentes, nem sequer sabemos da poesia tão pobre, tão pura, mera versificação
duma louca vontade de dizer até o fim o que a própria deidade mais profana
poderia dizer. Dizer do quê? Pra quê dizer? A boca fala do que está cheio o
coração em possessão de segundos minutos horas e eu digo que há dias meses anos
décadas séculos, quanta sede, quanta explosão de sentimentos tão vulneráveis, tão
superficiais, tão fingidos do que deveras sente, a quem é só coração numa noite
já sem crepúsculo já sem Sol sem noite sem nada, verdadeira catarse do próprio
José sem ter para onde ir não chegou a lugar nenhum. Ah, que eu nem sei nem
ousaria saber! Salve nós molambos cegos retraços soltos sujos nojentos bagaços
trapos inermes e a infinitude imensa do glutão que abocanharia até plutão! Oh!
não! Ah! Só a ti, Velho Chico, a minha segunda catarse. Agora sexta-feira mais
íngreme que qualquer outra, mais lúcida que a overdose da criação no estigma do
trejeito poético e no anátema das cinzas, a quem o ser não é mais que reduzido
a pó, barro que é alma, alma que é sonho, sonho que é nada, nada é o que me faz
dizer asneiras loucas próximas do sábio doido que não existe e é infante sem
saber de si, sem saber do longe, sem saber do perto, sem saber de ontem ou
anteontem, sem saber amanhã de manhã! Que calendário mais hostil prá quem não
sabe da desvairada transcendência do triz do cis do pró do pré do pós do mú de
escorpião do leirão e da pedra de mó do dó da canção meu sermão sem refrão sem
praia sem raiz pra laia mais luzente no sol poente de Alagoas as loas as coisas
boas do Pernambuco lavor tão louco do kabuki do trabuco que o homem do canavial
carrega nas faces queimadas da safra e espinafra o suor insone de quem pende o
outro lado da corda da banda do Chico Buarque de Hollanda polindo o verniz pra
gente fiéis mais descrentes da fé mais desvalida do que me diga de Fridda ou de
Florbela Espanca ou da mais singular carranca de Caruaru. Já estou nu, Velho
Chico, nem mesmo rei mais despido no cós no vestido partido no meio o veio que
dá para o mar sabe da sua nudez. Não há mais cabeça pra imaginar o possível no
mais contrário factível de se encontrar. Há e por haver imaginação ou loucura teor
maior da emanação desvão tresloucado do lado do não. Meu velho amigo Chico, estou
na rua alma nua transparente, o que dizer se mente, se ela só sabe lembrar o
que dói ou o que alegra, refrega dum labirinto, brinco da loucura e a voz mais
pura solfeja o que é amar. Boa noite, Penedo, vou pra Maceió onde o vento canta
ao meu ouvido em dó menor. Vou para Maceió descer para Recife e se o que eu
disse foi despudor, maior o calor de sentir a emoção do verdadeiro amor. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui e aqui.
Imagem: a arte do artista francês Marcel Duchamp
(1887-1968). Veja mais aqui.
Curtindo os álbuns Bach: Sonatas &
Partitas for violin solo
(Channel Classics, 2002), do compositor alemão Johann Sebastian Bach
(1685-1750), na interpretação da violinista britânica Rachel Podger.
PESQUISA:
Nomes não lhe faltaram. Enganosos, uns, como o de Ilha de Vera Cruz,
retificantes outros, tal o de Terra de Santa Cruz. Pindorama parece haver sido
a contrafação indigenista de algum tupi,, que já conhecesse a concepção
burguesa de Pátria e houvesse percorrido as páginas sisudas de Martius e de
Barbosa Rodrigues [...] Quanto
aos ruidosos motivos de Terra dos Papagaios, ainda continuam vivos, embora
batendo em retirada, depois de haverem deslumbrado a Europa renascentista e
barroca e de figurarem no tropicalismo equivoco da Política de Boa Vizinhança.
Brasil, acabou definitivo, salvo mudança gráfica menor. Testemunhava a
perenidade dos interesses mercantis quando se assenhoream da riqueza realizada
pelo produtor direto. É deste construtor, responsável pela atividade que faz
da formação social brasileira uma estrutura viva, em perene transformação [...].
Trecho da
obra Pequena história da formação social brasileira (Graal, 1986), do professor, geógrafo
e historiador Manoel Maurício de
Albuquerque (1927-1981). Veja mais aqui, aqui e aqui.
LEITURA
[...] Tarai
Januária, naquele momento justo no couro de boi, não devia dormir. Pensaria
nele, Tonho Beré, e nos ossos de Pedro Cobra. Índia pataxó, aquela mãe que tem,
capaz de todas as raivas. E ele mesmo, Tonho Beré quanto pataxó não lhe corre
nas veias! Deitado, a rede parada, a fogueira. E escuta a voz que, ordenando,
exclama: — Eu quero os ossos! [...] Eu vi no momento o sangue do Calupo na terra, morrendo para fazer o que
tínhamos, seus ossos no chão. Vi também os umbigos dos meus filhos plantados
neste mesmo chão. Tudo isso eu vi, de repente, com a garganta apertando e os
olhos já cheios de sangue. Não, nem ele, nem eu, ninguém sairia do que era
nosso! Isso eu disse, gritando, e nos prepararmos para a guerra. — Pois então
seja assim – Coé concordou. [...].
Trecho da obra As
velhas (Civilização Brasileira, 1977), do escritor, jornalista e crítico
literário Adonias Filho (1915-1990).
PENSAMENTO DO DIA:
[...] é triste dizer que a humanidade consciente
continua sendo minoria: ela reconhece o direito a adquirir, a conservar, ou a
consumir racionalmente, mas ela exclui, em princípio, a despesa improdutiva. [...]
o ódio à despesa é a razão de ser e a
justificativa da burguesia: ele é, ao mesmo tempo, o princípio de sua
assustadora hipocrisia.
Trecho
da obra La part maudite (Editions de
Minuit, 1967), do escritor francês Georges Bataille (1897-1962).
Veja mais aqui.
IMAGEM DO DIA:
A arte da fotógrafa Karin van der Broocke.
Veja mais sobre Zine Nascente Poético, Ludwig Feuerbach, Freud &
as mulheres, Denis Diderot, Marcel Duchamp,
Ernest Chausson, Mário Souto Maior & o Dicionário da Cachaça, Luis Fernando
Veríssimo, Sandrine Piau, Ana Maria Magalhães & Claudia Ohana aqui.
DESTAQUE:
A arte da atriz, cantora, vlogueira, apresentadora e
escritora Kéfera Buchmann.
CRÔNICA DE AMOR POR ELA
A arte
do pintor tcheco Jaroslav Zamazal (1900-1983).
CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Zine vietnamita
Vanguard, criado por Thanh Nu Mai e
Aiden Nguyen, para divulgação das artes visuais e literárias.
Recital
Musical Tataritaritatá - Fanpage.