quarta-feira, dezembro 10, 2014

AS CINZAS DE GRAMSCI, DE PIER PAOLO PASOLINI



AS CINZAS DE GRAMSCI

I

Não é de Maio este ar impuro
que torna o jardim sombrio e estrangeiro
ainda mais obscuro, ou o ofusca

com réstias de luz alucinadas… este céu
de baba sobre as mansardas amarelas
que em semicírculos velam como véus

os meandros do Tibre, os montes
turquesa do Lácio… É uma paz mortal,
resignada como os nossos destinos,

a que derrama sobre estes velhos muros
o outonal Maio. Há nele o cinzento do mundo
o fim do decénio em que nos parece

que as ruínas engoliram o profundo
e ingénuo esforço para recriar a vida:
o silêncio, húmido e infecundo…

Tu, jovem, naquele Maio em que errar
era ainda viver, naquele Maio italiano
que à vida ao menos acrescenta ardor,

muito menos descuidado e impuramente são
do que os nossos pais não pai, mas humilde
irmão já com a tua magra mão

delineavas o ideal que ilumina
(mas não para nós, que tu estás morto, e nós
Estamos mortos, contigo, no húmido

jardim) este silêncio. Não vês que só
podes repousar em terra
estranha, ainda desterrado? Um tédio

patrício reina à tua volta. E só te chega
um rumor abafado de bigorna
nas oficinas do Testaccio, adormecido

ao anoitecer: por entre míseros telhados,
nus montões de lata, ferro-velho, onde, vicioso,
um operário cantando dá por terminado

o seu dia, e em redor deixa de chover.

II

Entre os dois mundos, a trégua em que não estamos.
Escolhas, dedicações... outro som não tem
Já, senão este do jardim doloroso

E nobre, em que obstinado o engano
Que serenava a vida permanece na morte.
Nos cercos dos sarcófagos não fazem

Senão mostrar a sobrevivente sorte
De gente laica de laicas inscrições
Nestas cinzentas pedras, curtas

E imponentes. Ainda de paixões
Desenfreadas sem escândalo são queimados
Os ossos dos milionários de nações

Mais potentes; zumbem, quase nunca ocultas
As ironias dos príncipes, dos pederastas,
Cujos corpos nas urnas espalhados

Incinerados e ainda não castos.
Aqui o silêncio da morte é fé
De um civil silêncio de homens ainda

Homens, de um tédio que no tédio
Do parque, discreto muda: e a cidade
Que, indiferente, o confina no meio

De tugúrios e igrejas, ímpia na piedade,
Perde o seu esplendor. A sua terra
Gorda de ortigas e legumes dá

Estes magros ciprestes, esta negra
Humanidade que mancha os muros em torno
De pálidos vestígios de buxo, que a tarde

Serenando extingue em desadornados
Indícios de alga... esta erva magra
E inodora, onde violeta se precipita

A atmosfera, com um arrepio de hortelã,
Ou feno podre, e serena voz anuncia
Com diurna melancolia, a apagada

Trepidação da noite. Rude
De clima, dulcíssimo de história, está
Entre estes muros o solo onde transpira

Outro solo; este húmido que
Recorda outro húmido; e ressoam
- familiares de latitudes e

Horizontes onde selvas inglesas coroam
Lagos dispersos no céu, entre pradarias
Verdes como fosfóricos bilhares ou como

Esmeralda: “Ande O ye Fountains...” as pias
Invocações...

III

Um lenço vermelho, como o
Que trazem ao pescoço os partigiani
E, junto à urna, sobre a terra de cera,

Diversamente vermelhos, dois gerânios,
Aqui estás tu, exilado e com dura elegância
Não católica, alinhado entre estranhos

Mortos: as cinzas de Gramsci... entre esperança
E velha suspeita, me aproximo, vindo
Por acaso a esta seca estufa, frente

Ao teu túmulo, ao teu espírito que ficou
Aqui entre estes homens livres. (Ou é algo
De diverso, talvez de mais extasiado

E também de mais humilde, ébria simbiose
Adolescente de sexo com morte...)
E, deste país, onde não teve pausa

A tua tensão, sinto qual sem-razão
- aqui no silencia dos túmulos – e juntos
Qual razão – na inquieta sorte

Nossa – tu tivesses, escrevendo as supremas
Páginas nos dias do teu assassínio.
Eis aqui a atestar o sêmen

Ainda não disperso do antigo domínio,
Estes mortos ligados a um possuir
Que afunda nos séculos a sua aversão

E a sua grandeza: e juntos, furioso,
Como vibrar de bigornas, em surdina,
Sufocado e aflito – do modesto

Bairro – a atestar-nos o fim.
E eis-me aqui a mim próprio.... humilde, vestido
Com os panos que os pobres admiram nas montras

Com rude esplendor, e que distinguiu
A sujidade das mais dispersas estradas,
Dos assentos dos elétricos, dos quais estrangeiro

É o meu dia: enquanto sempre mais vigiadas
Tenho destas férias, no tormento
De manter-me em vida; e se me ocorre

Amar o mundo é só por violento
E ingênuo amor sensual
Assim como, confuso adolescente, outrora

O odiei, se nele me feria o mal
Burguês de mim burguês: e agora, fendido
- contigo – o mundo, motivo não ocorre

De rancor e quase de místico
Desprezo, a parte que dele tem o poder?
E todavia sem o teu rigor, subsisto

Porque não escolho. Vivo no não querer
Do naufragado pós-guerra: amando
O mundo que odeio – na sua miséria

Orgulhoso e perdido – por um obscuro escândalo
Da consciência...

IV

O escândalo de me contradizer, de estar
contigo e contra ti; contigo no coração,
à luz do dia, contra ti na noite das entranhas;

traidor da condição paterrna
- em pensamento, numa sombra de acção –
a ela me liguei no ardor

dos instintos, da paixão estética;
fascinado por uma vida proletária
muito anterior a ti, a minha religião

é a sua alegria, não a sua luta
de milénios: a sua natureza, não a sua
consciência; só a força originária

do homem, que na acção se perdeu,
lhe dá a embriaguez da nostalgia
e um halo poético e mais nada

sei dizer, a não ser o que seria
justo, mas não sincero, amor abstracto,
e não dolorida simpatia…

Pobre como os pobres, agarro-me
como eles a esperanças humilhantes,
como eles, para viver me bato

dia a dia. Mas na minha desoladora
condição de deserdado,
possuo a mais exaltante

das poses burguesas, o bem mais absoluto.
Todavia, se possuo a história,
também a história me possui e me ilumina:

mas de que serve a luz?

V

Não digo o individuo, o fenômeno
Do amor sensual e sentimento...
Outros vícios possui, outro é o nome

E a fatalidade do seu pesar...
Mas nele amassados quais comuns,
Congênitos, vícios, e qual

Objetivo pecado! Não são imunes
Os internos e externos atos, que o tornam
Incarnado à vida, por nenhuma

Das religiões que na vida existem,
Hipoteca de morte, instituídas
Para enganar a luz, para dar luz ao engano.

Destinados a serem sepultados
Os seus despojos no Verano, é católica
A sua luta com ele:  jesuíticas

As manias com que dispõe o coração;
E ainda mais dentro: tem bíblicas astúcias
A sua consciência... e irônico ardor

Liberal... e tosca luz, entre os desgostos
De dandy provinciano, de provinciana
Saúde... até às últimas minúcias

Em que se esfumam, no fundo animal,
Autoridade e anarquia... bem protegido
Por impura virtude e por ébrio pecar,

Defendendo uma ingenuidade de possesso,
E com que consciência! Vive o eu: eu,
Vivo, iludindo a vida, tendo no peito

O sentido de uma vida que é olvido,
Amargo, violento... Ah! Como
Compreendo, mudo no pobre sussurro

Do vento, aqui onde muda é Roma,
Entre ciprestes cansadamente perturbados,
Junto a ti, a alma de cujo grafito soa
Clareiras de erucas, onde dorme

Com o membro inchado entre farrapos de um sonho
Goethiano, o jovem camponês...
Na Maremma, escuras, estupendas fossas

De plantas em que se estampa clara
A aveleira, atalhos que o pastor
Desde a juventude percorre ignaro.

Cegamente fragrantes nas secas
Curvas da Versilla, sobre o mar
Emaranhado, cego, os tersos estuques
Shelley... como compreendo o vórtice
Dos sentimentos, o capricho (grego
No peito do patrício, nórdico

Viajante) que absorveu no oculto
Celeste do Tirreno; a carnal
Alegria da aventura, estética

E pueril> enquanto prostrada a Itália
Como dentro do ventre de uma enorme
Cigarra, se abre em brancos litorais,

Espalhados no Lácio por velados bandos
De pinheiros, barrocos, por amarelentas
Os mosaicos libertos da sua pascal
Campanha inteiramente humana,
Expõem-se, como sombra sobre Cinquale,

Estendidos sob as tórridas Apuanas,
Os azuis vítreos sobre rosa... escolhos,
Terras soltas, dispersos, como por um pânico

De fragrância, na Riviera, húmida,
Inclinada, onde o sol luta com a brisa
Para dar suprema suavidade aos óleos

Do mar... e em torno sussurra de alegria
O imenso instrumento de percussão
Do sexo e da luz: assim habituada

É a Itália que não treme, como
Morta na sua vida: gritam
De centenas de portos o nome

Do companheiro os jovens suados
No moreno das faces, entre a gente
Da riviera, junto ás hortas de cardos,

Em sórdidas praias...

Pedir-me-ás, tu, morto desadornado
Que abandone esta desesperada
Paixão de estar no mundo?

VI

Vou-me embora, deixo-te na tarde
Que, embora triste, tão doce desce
Para nós viventes, com a luz de cera

Que à cidade em penumbra se condensa.
Agita-a. Fá-la maior, vazia,
Em torno, e, mais ao longe, reacende-a

De uma vida ansiosa que do cavo
Rumor dos elétricos, dos gritos humanos,
Dialectais, faz um concerto rouco

E absoluto. E sentes como nos longínquos
Seres que, em vida, gritam, riem,
Nos seus veículos, dos doloridos

Casarios onde se consuma o infiel
E expansivo dom da existência –
Aquela vida é apenas um calafrio;

Corpórea, coletiva presença;
Sentes a falta de qualquer religião
Autêntica; não vida, mas sobrevivência

- talvez mais leda que a vida – como
De um povo de animais, em cujo arcano
Orgasmo não há outra paixão

Que para operar cotidiano:
Humilde fervor que dá um sentido de festa
A humilde corrupção. Quanto mais é vão

- neste vazio da história, nesta
Ruidosa pausa em que a vida emudece –
Cada ideal, melhor é manifesta

A estupenda, adusta sensualidade
Quase alexandrina, que tudo reduz
E impuramente acende, quando aqui

No mundo algo desaba, e se arrasta
O mundo, na penumbra, reentrando
Em vazias praças, em desesperadas oficinas...

Já se acendem as luzes, iluminando
A rua Zabaglia, a rua Framklin, o inteiro
Testaccio, desadornado entre o seu grande

Sórdido monte, as marginais do Tibre, o negro
Do fundo, para além do rio, que Monteverde
Concentra ou esfuma invisível sobre o céu.

Diademas de luzes que se perdem,
Brilhantes e frias de tristeza
Quase marinha... é quase hora do jantar;

Brilham os raros autocarros do bairro,
Com cachos de operários à janela,
É isto que me desespera e me tem fora do jogo.
E grupos de militares vão, sem pressa

Para o monte que oculta no meio de aterros
Infectos e montes secos de resíduos
Na sombra, escondidas colunas

Que esperam irosas sobre a sujidade
Afrodisíaca; e, não longe, entre casas
Abusivas nas margens do monte, ou no meio

Dos edifícios, quase à solta, rapazes
Ligeiros como trapos jogam à brisa
Já não fria, primaveril; ardentes

De distração juvenil, a romanesca
Sua tarde de Maio, escuros adolescentes
Assobiam pelos passeios, na festa

Vespertina; e rumorejam as portas
Das garagens de repente, alegremente,
Se o escuro tornou serena a tarde,

E no meio dos plátanos da Praça Testaccio
O vento que cai em tremor de tufão
É bem doce, ainda que, ao roçar os telhados

E os tufos de Matadouro, se embeba
De sangue podre, e por toda a parte
Agite resíduos e odor de miséria.

É um sussurro a vida, e os homens perdidos
Nela perdem-na serenamente
Se o coração têm cheio: a gozar

Ei-los, míseros, a tarde: e potente
Neles, inermes, por eles, o mito
Renasce... mas eu, com o coração consciente

De quem apenas na história tem vida,
Poderei alguma vez com pura paixão operar,
Se sei que a nossa história é finita?


PIER PAOLO PASOLINI – O cineasta italiano Pier Paolo Pasolino (1922-1975) também foi escritor, jornalista e professor. Formado em Literatura pela Universidade de Bolonha, pertenceu ao Partido Comunista Italiano combatendo o Fascismo. As cinzas de Gramsci escrito em 1954, que foi publicado pela primeira vez em uma coletânea homônima de 1957 sob a responsabilidade da editora italiana Garzanti, trazendo a profunda inquietação do poeta acerca dos meios expressivos capazes de dar forma literária à representação do povo.


REFERÊNCIA
PASOLINI, Pier Paolo. Poemas. Assírio & Alvin, 2005.
SIMÕES, Manuel. Pasolini, poeta. Lisboa: Plátano, 1978.


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